20 de agosto de 2018

Álvaro. The Worst of/Balcão Trauma Redux (Escorpião Azul/Insónia)


Tal como a dois coelhos, é de uma cajadada só que se dá conta do recado a estes dois livros. A sua leitura conjunta é consentânea na descoberta dos instrumentos próprios do autor e pela força das circunstâncias editoriais. De facto, por coincidência, deu-se a proximidade da publicação de uma antologia de trabalhos primitivos de Álvaro, pela Escorpião Azul e a do conjunto total da série Balcão Trauma, pela chancela do próprio autor. Estes dois livros poderão ser vistos então como uma oportunidade única de ver os primeiros passos do autor no campo da banda desenhada e aquilo a que veio destilar nos últimos tempos. (Mais) 

The Worst of Álvaro foi uma iniciativa da parte da Escorpião Azul em agregar alguns trabalhos que se encontravam inéditos sob a forma de livro (com os perigos que isso pode acarretar, e a forma como dehistoriciza e descontextualiza os diálogos permanentes que teria com os materiais em seu redor no gesto original, como discutimos a propósito de O espião Acácio, mas ao mesmo tempo permitindo esse acesso). Tratam-se de quatro histórias curtas datadas de 1994 e de 1997, e nalguns casos apresentam tendências narrativas, temáticas e de humor que, apesar de conterem a virulência conhecida do autor, têm tons ligeiramente distintos. “Arca Lilith”, por exemplo, é menos humorística que sarcástica mas também séria, e não destoaria de alguns contributos na Mundo de Aventuras ou outras publicações, tratando-se de um comentário sobre a soberba humana, com laivos de ficção científica. “Salvai-vos, Irmão!” e “Jeremias” estão bem mais próximas do olhar clínico de Álvaro sobre a hipocrisia de tantas (todas?) instituições sociais, nos casos presentes, o da igreja, ou mais concretamente as igrejas evangélicas com presença televisiva, maioritariamente de origem brasileira, e a ideia de “empreendorismo” (anos antes desse vocábulo emético estar nas modas da novilíngua).

Nesse sentido, é curioso descobrir os instrumentos en herbe de Álvaro, tal como descobrir o caminho do qual jamais se desviaria, por hipótese pela razão de uma putativa maturidade, compromisso social, adaptação a formas de ver mais domesticadas, ou coisa que o valha. Está fora de questão. O ácido de Álvaro mantém-se e é certeiro, não se compadecendo com qualquer espécie de acomodação.

Mas a grande peça de The Worst, a melhor história do volume é, sem dúvida, “A derrota dos porcos”. De acordo com a breve nota introdutória do autor (todas as histórias as têm), trata-se de uma peça que começara para acompanhar uma brochura para ser distribuída por toxidependentes, aliado a um programa de prevenção de doenças e informação, mas não chegaria a esse porto. Não sabemos se a recusa se deveu a circunstâncias editoriais, questões de encaixe ou decisões que tivessem a ver com algum tipo de juízo sobre a produção do autor, mas não há dúvida de que estamos perante uma história que não apenas foi mais além do provavelmente se esperaria de um projecto bem-pensante para a solidariedade social, como acaba por funcionar como uma espécie de tiro pela culatra, ou mecanismo de auto-destruição. Ninguém sai incólume desta história...

O traço de Álvaro é mais titubeante na peça “Arca Lilith”, mas já aí encontramos a sua assinatura, desde as personagens altamente estilizadas até ao seu grosso traço de contorno. “Porcos” ainda não está nesse registo final (de que Balcão Trauma é sintomático e apurado), mas contém também algumas características que se evolariam nos trabalhos futuros. Seguimos nestas mais de 30 pranchas uma complexa novela, cujos protagonistas são, paradoxalmente, uma família pseudo-nuclear. Mas a tessitura da intriga espraia-se em torno de muitas personagens, algumas das quais cruzando-se em geometrias de relações bem mais densas do que pareceria ao princípio. É também um ensaio sobre as hierarquias sociais que existem de facto e que se continuam a alimentar quer pelas distribuições de poder quer pelas hipocrisias dos “valores”. Esta história não é sobre redenção, não é sobre culpa, não é sobre esperança, não é sobre miséria, não é sobre aproveitamentos políticos, não é sobre a crueldade. É sobre todos esses temas, mas afundando-os numa ingenuidade, num ponto cego do trajecto das personagens.

Não é difícil encontrar paralelos de trabalho para trabalho e até se poderia imaginar que, no fundo, Álvaro trabalharia como Osamu Tezuka no sentido de empregar um grupo fechado de “actores de papel”, que depois vão cumprindo funções ligeiramente diferentes entre cada título. Não serão as Donas Lulu e Rozette, à porta da escola de Ritinha, e a falar mal da mãe desta criança, as mesmas velhas insuportáveis que não se calam no hospital e Trauma?

A grande característica que Álvaro ainda tem nesta história e nos parece dissipar-se quase por completo em trabalhos posteriores é a simpatia clara que o autor nutriria por algumas das suas personagens, nomeadamente a Ritinha, a sua mãe e a o antigo companheiro desta. É discutível, já que, não o revelando, o autor prepara-lhes um destino que poderá não ser o mais feliz de todos. Lido com atenção, chega mesmo a ser doloroso... compreendemos a angústia e até o receio do autor em perseguir esta linha de desenvolvimento. “A derrota dos porcos” está muito próxima de uma certa linha da banda desenhada dos anos 1980, tentada em muitos locais, inclusive em Portugal, de temática urbano-realista, de que um exemplo maior é Sangre de Barrio, de Jaime Martin. Álvaro matiza e suaviza a história, todavia, com as fugas do seu humor...

Balcão Trauma mergulha totalmente no humor sarcástico, à beira do paroxismo, da histeria, do absurdo. O volume reúne todos os materiais desta “série”, passada nas urgências de um qualquer hospital da nossa malha nacional. Uma leitura cruzada dos vários livros de Álvaro, a descoberta das suas “séries”, daria continuidade àquela ideia da trupe de personagens que aventámos acima, mas as ligações diegéticas entre as narrativas são ainda mais explícitas entre este livro e o anterior Sexo, Mentiras e Fotocópias, da qual o desesperado cliente se torna o desesperado consulente do hospital em Balcão Trauma.

O autor já tira partido aqui de instrumentos gráficos bem distintos. Não apenas a estilização está apurada, e o minimalismo dos traços o aproxima daqueles clássicos das tiras norte-americanas (à la Ernie Bushmiller ou Max Cannon) ou de certas tendências da banda desenhada infanto-juvenil, como o Photoshop passa a ser um aliado para criar variações de textura, saliência, distância, etc., permitindo assim variações subtis de agência e importância mesmo quando se repetem núcleos de desenhos. Em termos de composição, Álvaro opta por uma quase contínua grelha regular, ora de 6 vinhetas quadradas, ora de 3 horizontais, mais há toda uma série de variações ou estratégias subtis, como o balcão de atendimento principal, que cria uma divisão em cada vinheta. Esta insistência nestas estruturas poderia ser, à partida, demasiado repetitiva, mas aliada precisamente à inexorável repetição dos diálogos inconsequentes e a desatenção e descuido de quem de direito, torna esta “perspectiva permanente” ainda mais uma forma de nos manter obrigados a sofrer com as personagens...

Balcão Trauma é uma espécie de sitcom, com várias acções paralelas a decorrer, espalhadas em vários “sets” no interior deste hospital, e com todas as personagens a percorrê-los, levando às mais variadas interacções entre eles. É também um reality show, no sentido moral, porque chafurda na mais profunda das ignorâncias, mesquinhezes e estupidez de que os humanos são capazes. E estamos em crer, para nosso profundo horror, que, tal como ocorre com Conversas com os putos, não estamos perante um imenso talento do autor em escrever diálogos hilariantes e capazes de criar situações e personagens absurdamente ridículas, mas antes a de um autor capaz de memorizar,com um rigor científico e documental, a mais pura e aterrorizante das realidades que nos rodeiam. Caso clássico de rir para não chorar.
Nota final: agradecimentos à Escorpião Azul, pela oferta do volume dessa editora.

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