Se
não estamos em erro, esta é a primeira vez que o autor por trás
deste seu longo projecto heteronímico, Tiago Manuel, explora uma
projecção de personalidade e autoral que já morreu. Tilda
Markström é uma artista plástica sueca falecida em 2012, não nos
sendo fornecida a data em que terá criado este livro. Apesar de se
incluir uma brevíssima biografia na contra-capa do volume, e três
excertos do seu diário dos anos 1990, quando terá regressado a
Estocolmo para viver, mas revelando viagens pelo norte de Espanha,
não conseguimos re-construir com precisão ou certeza que percurso
terá sido o da autora até fornecer todos os materiais conducentes a
este livro. Na ausência dessas informações, e aceitando com rigor
a distância de um heterónimo, que não nos permitiria – nada nos
permite, mas a confusão entre o nome do autor e a sua pessoa convida
os mais distraídos leitores a provocar esse problema de
interpretação – aproximar a obra
da vida,
é o texto em si, com um título tão directo, que deve ser
enfrentado, sem esses instrumentos de conforto. (Mais)
Com
efeito, conforto
é uma palavra que não entra de forma alguma no vocabulário deste
livro (como, de resto, em toda a obra de T.M.), e é discutível se
de uma forma mais acerba de que em outros projectos. Com a excepção
dos excertos dos diários, que surgem em anexo no fim do volume, todo
ele é composto por imagens que ocupam somente a página ímpar do
livro, sem uma só palavra. Desta forma, o título exerce uma força
inextinguível e permanente na narrativa. E há uma narrativa, já
que é perfeitamente possível identificar os “núcleos” ou
“episódios”, se se quiser, das imagens que se vão substituindo,
como numa animação de dores. Dessa forma, quase seria possível
retraduzir as imagens para uma sinopse trivial – mulher X sofre de
cancro da mama, faz tratamentos, lida com o problema, sofre as
consequências –, mas isso faria entender o leitor que haveria
alguma preocupação banal em criar um arco narrativo, uma segurança
em “contar a história” com vista a uma satisfação final na
intriga, quando a exploração de Cancer
é antes a de uma permanente travessia de níveis, não apenas de
significação, como do próprio corpo humano e até da sua
existência e da forma como a entendemos.
Se
compreendermos que o cancro poderia ser descrito, metaforicamente mas
não só, como uma doença de informação, compreendemos que este
trabalho transforma o comportamento dessa mesma doença, o
crescimento metastático, numa expansão de linhas, padrões e cores.
No campo da banda desenhada, estamos em crer que o autor que melhor
explorou essa possibilidade, num programa clássico de narração e
representação, foi David B., em L'ascension
du haut mal, ainda
hoje uma obra, parece-nos, sub-avaliada. E estamos longe, longe, de
todas aquelas narrativas de “sobreviventes do cancro”, de que
hoje se pode dizer ser
quase um género estabelecido. O trabalho de Markström/Manuel não
está interessado numa subsunção narrativa, muito menos numa
intriga redentora ou moralmente recompensadora, mas na capacitação
dos meios gráficos de uma presença e efeitos próprios. Não quer
pedir aos seus leitores uma lágrima simpática, nem uma consciência
de cidadania. Não pede nada a não ser
tão-somente a honestidade
da sua leitura, de enfrentar a sua verdade.
A
divisão em “núcleos”, como vimos, é possível, mas não se
esgota nessa descrição. Tentemo-los, ainda assim. Há o momento
inicial a que se poderia chamar de “mamografia”, seguido de uma
transmutação da mama numa teia de aranha, a qual, extremamente
reminiscente na sua forma à escultura monumental Maman,
de Louise Bourgeois (e
cujo título é tão promissor se se prosseguisse uma leitura
intertextual), ganha uma
autonomia que se traduz, por sua vez, em amputação, ou no seu termo
mais técnico e por isso menos eficaz, mastectomia. Depois, há uma
exploração das estratégias de disfarce e a necessidade da
protagonista se confrontar com a sua própria imagem. Há mais uma
sequência em que mergulhamos no corpo, em que as veias vão tomando
conta de
todo o corpo, se é que não se trata de um novo crescimento de
metástases e, finalmente, uma parte em que a mulher convalescente,
vestida de negro contra um cenário minimalista, se parece com uma
figura de Bergman (convidaríamos a ler este livro sob a luz de
Persona).
A
primeira imagem do livro é de uma brutalidade e sinceridade
desarmantes. O que vemos é uma mama (não se trata de um poético
“seio”, não é uma titilante “teta”, não é um “peito”
materno; é uma vítima de carne) na aparência que ganha quando
esmagada pelos compressores durante uma mamografia. Imediatamente
entramos aqui para além da superfície da pele, para entrar sob ela,
no trânsito das artérias e veias, e compreendermos então aquela
imagem tão vetusta na tradição do ocidente de olharmos para nós
mesmos como um mero saco de carne, pó e vento... Essa penetração
continua no livro, até ao nível celular, mas vai desvendando
igualmente leituras interpretativas, metáforas visuais, e assim,
outros trânsitos. Acima de tudo, está aquela pergunta da
Antiguidade: se um homem cortar uma mão, deixa de ser homem? Se uma
mulher cortar uma mama, deixa de ser mulher? A pesquisa do livro
coloca essas perguntas e vai revelando a continuidade do ser humano
mesmo no seio (não é inocente esta palavra aqui) de um processo de
corte, de descarte, de perda, e de luto.
Lutuoso,
é também outra maneira de descrever o livro, mesmo quando com os
seus instrumentos marcam os aspectos que sobrevivem da vida. Isto é,
não a sobrevivência do seu humano central, carcomido lentamente
pela doença, derradeiramente ausente das imagens, mas aquilo que é
de mais vivo durante a vida, aquilo que se destaca. A última imagem
é um vestido negro, despojado, desmaiado, caído sobre um longo
sofá. Tratar-se-á do último invólucro abandonado, agora que não
resta mais carne nem sangue? Ou terá sido algo que se largou, para
poder explorar outro tipo de existência?
Os
apontamentos diarísticos de Markström fazem entender que a autora
tem a carpir o desaparecimento de uma companheira, uma amante, com a
qual terá descoberto também o seu próprio corpo e o amor. O livro
será então uma carta a essa companheira, amada numa cidade que fora
um “paraíso de onde fui expulsa pela morte”, mas ao mesmo tempo
uma recuperação dela mesma, na sua fragilidade e evaporação
última, tornando todo o Cancer
num “jogo hábil, com novas regras, para iludir a morte”.
Walter
Benjamin, que tanto escreveu sobre a beleza ser o resultado do
encontro entre quem ama e a aparência do que é amado,
exemplificando que uma maçã é bela não pela sua pele, mas por
essa pele estar no seu fruto, pois o “belo permanece na esfera da
aparência”, demonstra como a exigência que Cancer
determina em olharmos a essas “peles” que se descosem (a mama
amputada, a cortina que se abre na mente da protagonista, a cicatriz
que ganha uma nova vida arbórea, os padrões que se estendem e
transmitem ao outro) não é mais que uma celebração da vida que
permanece também.
Benjamin
escreveu, em Origem do
Drama Trágico Alemão,
que “Uma obra importante, ou funda o género ou se destaca dele, e
nas mais perfeitas encontram-se as duas coisas”. Não sabemos se
Cancer
chega a ser uma obra dessa natureza, duvidamos que esteja a fundar um
género, desconhecemos em que género se estaria a destacar. Mas que
há um encontro, bruto, directo, franco, doloroso, sim.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
obrigado nós por tão boa crítica!
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