16 de agosto de 2018

Cancer. Tilda Markström (Mmmnnnrrrg)


Se não estamos em erro, esta é a primeira vez que o autor por trás deste seu longo projecto heteronímico, Tiago Manuel, explora uma projecção de personalidade e autoral que já morreu. Tilda Markström é uma artista plástica sueca falecida em 2012, não nos sendo fornecida a data em que terá criado este livro. Apesar de se incluir uma brevíssima biografia na contra-capa do volume, e três excertos do seu diário dos anos 1990, quando terá regressado a Estocolmo para viver, mas revelando viagens pelo norte de Espanha, não conseguimos re-construir com precisão ou certeza que percurso terá sido o da autora até fornecer todos os materiais conducentes a este livro. Na ausência dessas informações, e aceitando com rigor a distância de um heterónimo, que não nos permitiria – nada nos permite, mas a confusão entre o nome do autor e a sua pessoa convida os mais distraídos leitores a provocar esse problema de interpretação – aproximar a obra da vida, é o texto em si, com um título tão directo, que deve ser enfrentado, sem esses instrumentos de conforto. (Mais) 

Com efeito, conforto é uma palavra que não entra de forma alguma no vocabulário deste livro (como, de resto, em toda a obra de T.M.), e é discutível se de uma forma mais acerba de que em outros projectos. Com a excepção dos excertos dos diários, que surgem em anexo no fim do volume, todo ele é composto por imagens que ocupam somente a página ímpar do livro, sem uma só palavra. Desta forma, o título exerce uma força inextinguível e permanente na narrativa. E há uma narrativa, já que é perfeitamente possível identificar os “núcleos” ou “episódios”, se se quiser, das imagens que se vão substituindo, como numa animação de dores. Dessa forma, quase seria possível retraduzir as imagens para uma sinopse trivial – mulher X sofre de cancro da mama, faz tratamentos, lida com o problema, sofre as consequências –, mas isso faria entender o leitor que haveria alguma preocupação banal em criar um arco narrativo, uma segurança em “contar a história” com vista a uma satisfação final na intriga, quando a exploração de Cancer é antes a de uma permanente travessia de níveis, não apenas de significação, como do próprio corpo humano e até da sua existência e da forma como a entendemos.



Se compreendermos que o cancro poderia ser descrito, metaforicamente mas não só, como uma doença de informação, compreendemos que este trabalho transforma o comportamento dessa mesma doença, o crescimento metastático, numa expansão de linhas, padrões e cores. No campo da banda desenhada, estamos em crer que o autor que melhor explorou essa possibilidade, num programa clássico de narração e representação, foi David B., em L'ascension du haut mal, ainda hoje uma obra, parece-nos, sub-avaliada. E estamos longe, longe, de todas aquelas narrativas de “sobreviventes do cancro”, de que hoje se pode dizer ser quase um género estabelecido. O trabalho de Markström/Manuel não está interessado numa subsunção narrativa, muito menos numa intriga redentora ou moralmente recompensadora, mas na capacitação dos meios gráficos de uma presença e efeitos próprios. Não quer pedir aos seus leitores uma lágrima simpática, nem uma consciência de cidadania. Não pede nada a não ser tão-somente a honestidade da sua leitura, de enfrentar a sua verdade.

A divisão em “núcleos”, como vimos, é possível, mas não se esgota nessa descrição. Tentemo-los, ainda assim. Há o momento inicial a que se poderia chamar de “mamografia”, seguido de uma transmutação da mama numa teia de aranha, a qual, extremamente reminiscente na sua forma à escultura monumental Maman, de Louise Bourgeois (e cujo título é tão promissor se se prosseguisse uma leitura intertextual), ganha uma autonomia que se traduz, por sua vez, em amputação, ou no seu termo mais técnico e por isso menos eficaz, mastectomia. Depois, há uma exploração das estratégias de disfarce e a necessidade da protagonista se confrontar com a sua própria imagem. Há mais uma sequência em que mergulhamos no corpo, em que as veias vão tomando conta de todo o corpo, se é que não se trata de um novo crescimento de metástases e, finalmente, uma parte em que a mulher convalescente, vestida de negro contra um cenário minimalista, se parece com uma figura de Bergman (convidaríamos a ler este livro sob a luz de Persona).

A primeira imagem do livro é de uma brutalidade e sinceridade desarmantes. O que vemos é uma mama (não se trata de um poético “seio”, não é uma titilante “teta”, não é um “peito” materno; é uma vítima de carne) na aparência que ganha quando esmagada pelos compressores durante uma mamografia. Imediatamente entramos aqui para além da superfície da pele, para entrar sob ela, no trânsito das artérias e veias, e compreendermos então aquela imagem tão vetusta na tradição do ocidente de olharmos para nós mesmos como um mero saco de carne, pó e vento... Essa penetração continua no livro, até ao nível celular, mas vai desvendando igualmente leituras interpretativas, metáforas visuais, e assim, outros trânsitos. Acima de tudo, está aquela pergunta da Antiguidade: se um homem cortar uma mão, deixa de ser homem? Se uma mulher cortar uma mama, deixa de ser mulher? A pesquisa do livro coloca essas perguntas e vai revelando a continuidade do ser humano mesmo no seio (não é inocente esta palavra aqui) de um processo de corte, de descarte, de perda, e de luto.

Lutuoso, é também outra maneira de descrever o livro, mesmo quando com os seus instrumentos marcam os aspectos que sobrevivem da vida. Isto é, não a sobrevivência do seu humano central, carcomido lentamente pela doença, derradeiramente ausente das imagens, mas aquilo que é de mais vivo durante a vida, aquilo que se destaca. A última imagem é um vestido negro, despojado, desmaiado, caído sobre um longo sofá. Tratar-se-á do último invólucro abandonado, agora que não resta mais carne nem sangue? Ou terá sido algo que se largou, para poder explorar outro tipo de existência?

Os apontamentos diarísticos de Markström fazem entender que a autora tem a carpir o desaparecimento de uma companheira, uma amante, com a qual terá descoberto também o seu próprio corpo e o amor. O livro será então uma carta a essa companheira, amada numa cidade que fora um “paraíso de onde fui expulsa pela morte”, mas ao mesmo tempo uma recuperação dela mesma, na sua fragilidade e evaporação última, tornando todo o Cancer num “jogo hábil, com novas regras, para iludir a morte”.

Walter Benjamin, que tanto escreveu sobre a beleza ser o resultado do encontro entre quem ama e a aparência do que é amado, exemplificando que uma maçã é bela não pela sua pele, mas por essa pele estar no seu fruto, pois o “belo permanece na esfera da aparência”, demonstra como a exigência que Cancer determina em olharmos a essas “peles” que se descosem (a mama amputada, a cortina que se abre na mente da protagonista, a cicatriz que ganha uma nova vida arbórea, os padrões que se estendem e transmitem ao outro) não é mais que uma celebração da vida que permanece também.

Benjamin escreveu, em Origem do Drama Trágico Alemão, que “Uma obra importante, ou funda o género ou se destaca dele, e nas mais perfeitas encontram-se as duas coisas”. Não sabemos se Cancer chega a ser uma obra dessa natureza, duvidamos que esteja a fundar um género, desconhecemos em que género se estaria a destacar. Mas que há um encontro, bruto, directo, franco, doloroso, sim.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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