6 de setembro de 2018

Jardim dos Espectros. Fábio Veras (Escorpião Azul)

Há 20 anos sucedeu algo nas paragens de Núvia que amaldiçoaria os seus jardins. Um segredo, talvez, cuja insatisfatória conclusão lançaria um fel venenoso que transformaria a terra numa sombra fraca de si mesma, azedando tudo à sua volta, desde a vida dos vivos até mesmo ao descanso dos mortos. Tornando-se um famoso enigma nestas terras, Núvia parece ter passado a ser um desafio àqueles que se julgam capazes de o desvendar, aspirante a Édipo. Porém, ao contrário deste, sem ter pago o óbulo de um verdadeiro sentimento de perda e desenraizamento, terão falhado essa suposta “missão”, deixando o caminho aberto sempre para quem de direito. Este livro abre-se para o dia em que quem de direito finalmente atinge os limites dos jardins de Núvia, disposto a atravessá-los, para buscar o seu coração e, talvez, feri-lo de morte. (Mais) 

O autor apresenta-nos aqui uma pequena intriga digna de um conto semi-tradicional. Mas como se esses contos, de finais felizes e em paisagens maravilhosas, tivessem uma continuidade desencantada após os seus términos consabidos, apodrecessem por dentro e, passado longo tempo, os seus personagens regressassem aos locais do crime, dobrados pelo peso da sua amargura, e tentassem recuperar, sem o conseguir, conquistar alguma da fagulha dessa juventude. Apesar das suas poucas páginas, e Veras não estar preocupado propriamente com estratégias primárias de worldbuilding, ainda assim Jardim dos Espectros faz emergir uma unidade espácio-temporal bem mais alargada daquela que tem lugar e duração somente entre as capas deste livro.

De uma forma clara, o autor cria o espaço onde decorrerá a acção principal, que tem tudo de arquétipo mítico: a travessia da fronteira entre o mundo usual e o mundo maravilhoso, que neste caso assume a forma do jardim de Núvia, que se assemelha a um cemitério pagão: ainda que não seja claro se os corpos são ali ou não sepultados, nem como, em cada árvore encontra-se um objecto, um ícone, um memento, que servirá não apenas para recordar o ente perdido, mas também para lhes ancorar as almas, já que estas, descorporizadas, flutuam em etéreas e transparentes sombras, como numa segunda vida. Apesar de não parecer ser uma existência particularmente minaz, mas bem pelo contrário tranquila, todos parecem afirmar o contrário, insistindo na sua “maldição” (que jamais compreenderemos que consequências tem, apesar de algumas frases parecerem dá-lo a entender). O protagonista ganha direito de entrada e travessia desse jardim, com o fito de solucionar o problema, e chega mesmo a ser coadjuvado por uma jovem alma, mas que também, a dado momento, se recusa de mergulhar no imo daquele bosque.

Jardim dos Espectros apresenta, sem dúvida, todos os nichos de função a serem preenchidos pelos elementos conducentes a uma intriga completa, mas não deixa de haver alguns pontos incongruentes (o jardim que é um cemitério que é um bosque ou floresta; a “maldição” que todos juram ser tormentosa mas que não ganha corpo na acção; os intervalos de tempo a que todos se referem: “vinte anos de angústia”, mas uma alma-criança morta aparentemente há mais de cem anos, um protagonista adulto de que alguém se poderia recordar) ou até irresolúveis. Em analepses visuais, “descobrimos” o que atormentava o protagonista (a um só tempo, forasteiro e retornado), o “crime” perpetrado e que lhe terá custado a família, o seu “inimigo” que ganhou carne, e até a aparente recompensa na tranquilidade final, mas faltam elos de ligação que tornassem mais clara a relação entre todas essas partes.

Há um limite muito ténue entre deixar-se informação por contar, que leve o leitor a procurar, por entre aquilo que lhe é apresentado, pistas para a completação da ideia, e o não se saber à partida, da parte dos autores, o que será essa mesma ideia. Quando a presença da informação não é explícita mas é possível criar-se essa rede de maior finalização conceptual, estamos perante uma excelente gestão desse equilíbrio. Caso contrário, poderá acontecer um fenómeno mais perto da confusão e de perguntas que ficam sem resposta, resolução e satisfação. Julgamos que, após a travessia deste bosque de almas reviventes, da sua árvore-coração-espírito-da-culpa, de toda uma população indecisa quanto ao seu papel em relação ao que os atormenta, nem todos os leitores estarão munidos de modo suficiente com o mapa que cartografe a intriga completa.



Fábio Veras surge-nos aqui totalmente formado, quase como Palas Atena. A sofisticação do desenho, esculpido em finas linhas sobrepostas e a um só tempo nervosas e sólidas, recorda-nos algumas das tendências do final dos anos 1980 com artistas tais como John J. Muth, Kent Williams ou Georges Pratt. A sua figuração, sobretudo no que diz respeito aos rostos, é mais estilizada, com claríssimas influências mais cartoonescas ou da banda desenhada japonesa, mas integradas numa clássica e alicerçada tradição de composição e storytelling visual ocidentais. Dada a necessária repetição de representação do protagonista e da sua jovem deuteragonista, Veras tira partido de subtis mudanças de ângulo e planos dos rostos, posicionamentos físicos e micro-expressões dos mesmos, já para não falar dos inventivos empregos dos claros-escuros proporcionados pela sua escolha de local. Com efeito, o uso de vários graus de cinzento, de aguadas, de planos secundários, e do mecanismo narrativo da patina semi-transparente para as almas retornadas ao domínio dos vivos, permite ao autor uma gestão das linhas, sombras e transparências que torna cada página numa experiência visual enriquecedora. Aliado a todas estas técnicas, a variabilidade da composição, a que aludimos, é particularmente feliz e dinâmica, sem nunca jamais cair num mero cardápio técnico, mas antes numa judiciosa variação que reforça os propósitos narrativos ou emocionais, apesar da incompletude de que, a nosso ver, enferma o projecto.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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