4 de setembro de 2018

Dragomante: Fogo de Dragão. Filipe Faria e Manuel Morgado (Comic Heart/G. Floy)


Há algo de libertador quando somos confrontados com um objecto cuja clareza é patente e genuína. Uma capa apelativa, clara nos seus propósitos, apresentando objectos cujo sentidos não exigem uma interpretação secundária, mas vivem quase de uma presença denotativa absoluta. Uma mulher guerreira, ostentando duas espadas longas, seguras de forma marcante, com uma armadura total e, junto a si, um imenso dragão, de dentes de diamante, ameaçando os seus inimigos fora de campo. Uma única palavra como título, concentrado e icónico, com um sub-título que pouco parece adiantar à promessa feita já por tudo o resto. Sabemos o que nos espera. Aventura de género de alta-octanagem. (Mais)

John Cawelti propôs uma teoria dos géneros cinematográficos que se viria a tornar muito influente quer nos estudos dessa arte em particular quer noutras áreas contíguas ou comparáveis. Basicamente, a sua ideia é que os géneros existem sempre numa linha de tensão entre a inovação e a convenção, não podendo existir uma sem a outra. Uma obra totalmente “original” (vocábulo que, de tanto abusado e tornando num conceito empedernido e sobrevalorizado, perde a sua capacidade explicativa, teórica e acaba por se tornar somente um fetiche) não poderia, de forma alguma, encaixar-se num género existente, e as mais das vezes sofreria de um isolamento feroz. A questão está, portanto, em usar as convenções, procurando variações significativas, surpreendentes ou que infleccionem o próprio género numa direcção de expansão das suas possibilidades. O propósito dos géneros convencionalizados, formulaicos e populares visa um prazer psicológico basilar humano, de reconhecimento e padronização.

Os géneros ou sub-géneros conhecidos como high-fantasy, heroic fantasy, sword and sorcery, ou outras nomenclaturas irmanáveis ou de contiguidade, têm tido recentemente um recrudescimento na sua recepção popular, graças quer aos desenvolvimentos técnicos que permitiram uma maior elegância na apresentação dos seus elementos mais maravilhosos no campo audiovisual quer ao facto de que essas matérias são agora apresentadas em canais de forma tão séria quanto outros géneros dramáticos. Daí se compreenda a glória, se não de crítica, pelo menos de sucesso comercial e de fãs de objectos tão distintos quanto O Senhor dos Anéis, Reign of Fire, Eragon, Crónicas de Nárnia, Guerra dos Tronos, The Witcher, etc. Tendo em consideração o trajecto destes dois autores nestes mesmos géneros - Filipe Faria, nos seus romances, sobretudo, e Manuel Morgado, na sua presença no mercado comercial franco-belga -, o regresso à colaboração entre ambos - já haviam publicado antes Talismã (Devir, 2006) – é feito não somente com um domínio diferente pelos dois como numa plataforma mais conducente à sua recepção.

Todos os ingredientes se encontram presentes. Rituais e obras arcanas, citadas parcial mas promissoramente. Profecias que servem para insuflar a acção. Pérolas de sapiência que tanto parece ser fundamental na cultura como segredos de poucos, conforme a necessidade. Patronímicos e toponímias de consoantes guturais (digam rápido “Dragomante Armitaunin de Castro Drago”). Linguajares que mimam práticas formais e antigas e se afastam da linguagem quotidiana da nossa experiência. Modos de organização social altamente hierarquizadas e compartimentadas para depois criar tensões entre os “individualistas” e os “tradicionalistas”. Uma mitografia basilar que poderá ser expandida. Famílias, feudos e pavilhões iconicamente diferenciados. A típica, e profundamente problemática, estratificação racial e étnica criada entre as personagens. Heróis cuja soberba, hubris ou casmurrice lhes augura a queda. Vilões cujo fácies transporta o ricto que os esclarece num relampejar. 

No entanto, as tensões das vontades autorais notam-se em demasia no progresso do livro. Não estamos perante um equilíbrio especular e sustentável entre a imagem e o texto.

Grande parte dos plot points são explícitos pelos diálogos, sem haver tempo ou suficiente elaboração nas acções levadas a cabo pelas personagens. Muitas vezes, as sensações, emoções ou segredos psicológicos são revelados pelas palavras, não pelas acções ou expressões das personagens. Isto torna alguns dos acontecimentos previsíveis, o que poderia não ser um problema, já que, como dissemos, parte do prazer dos géneros convencionais é passar pelas etapas expectáveis. O problema é quando a sua aparição não comporta, no interior do mecanismo narrativo da história em curso, o mesmo peso ou prazer emocional, mas tão-somente a mecanicidade da etapa atingida de forma quase automática. É o que sucede, a nosso ver, quando Nereila atinge os seus poderes máximos de controlar o dragão. O fogo que arde nela, por exemplo, recorda por demais o da Fénix de Jean Grey, mas não observamos qualquer progresso paulatino em Dragomante: essa ideia é apenas apresentada textualmente e, fora a cena de introdução, ainda demasiado descontextualizada para importar, não se volta a consolidar até à sua resolução.

As relações entre as personagens, também, acabam por se pautar mais por blocos pré-fabricados do que por personalidades suficientemente buriladas, e cujas consequências emergiriam de forma mais natural e implicando a empatia dos leitores. A caracterização é pouco desenvolvida. Cumprem as suas funções de forma vincada e explícita, por vezes de sobra, deixando pouco a ser completado pelos leitores. A quase ausência de um mundo social diverso, pela concentração quase exclusiva nos protagonistas, leva a que não se compreendam bem as putativas “lições” de aprendizagem de cada um. E se Nereila e Ékión se acabam por aproximar, é mais pelo forçoso de terminar a história do que pela interacção ou compreensão emotiva entre ambos.


Os dragões, por exemplo, que tanto parecem ser importantes nas relações pessoais que estabelecem com os seus guerreiros-companheiros, acabam por ser permutáveis entre si, sem quaisquer complexidades que não breves traços superficiais na sua aparência. É verdade que não estaremos perante um design à la Marie Brennan ou William O'Connor, ou até James Gurney ou Vicente Segrelles, mas esperar-se-ia maior desenvoltura na sua fabricação.

A arte de Manuel Morgado é apropriada a este género, no claríssimo arrojo e hábito em construir estas paisagens fantásticas. Uma figuração algo empedernida, soluções de composição tão-somente preocupadas com a eficácia directa do que mostram, subsumida à urgência da narração, sem particular entrega a uma segunda camada de expressividade estética, porém, ficam algo aquém.



No spread constituído pelas páginas 42-43 prometia-se um desdobramento das acções espectacular e dinâmico. Imaginamos que com transições que dessem a ver, de forma clara e distinta, o progresso dos movimentos e de cada gesto do guerreiro: os ângulos de ataque, a sua queda sobre os inimigos, o desferir e voltejar da espada. Na verdade, há algo na composição da página, que se lê na horizontal pelo spread, que nos fez recordar imediatamente de uma cena de Conan, pelo elegantíssimo Barry Windsor-Smith, senão estamos em erro silenciosa, em que o famoso cimério despachava dois ou três atacantes. Esta seria a oportunidade para demonstrar finalmente os talentos imensos de Ékión, o escudeiro, temperado pelo seu rito de elo à dragomante. Infelizmente, cada vinheta apresenta tão-somente mais um momento distinto, sem clara distinção entre os seus interpelantes, que surgem somente como peões inertes a ser despedaçados como toros de manteiga, nem de como as técnicas avançam (de onde surgiu a segunda lâmina?). Aliás, se Morgado insiste em vistas espectaculares, poses icónicas e planificações de pormenor em todo o aspecto materialista deste género – armaduras e espadas engalanadas, pavilhões ao vento, armaduras com mais pormenores para o espectáculo que a praticabilidade, entradas de choque, expressões faciais de grande melodramatismo –, já no que diz respeito à gestão da clareza dos movimentos, algo fica pelo caminho. O abuso de efeitos de fluidez (cabelos fulvos a esvoaçar, sangue a espirrar e pingos mais “expressivos” do que realistas, linhas cinéticas) e a paleta digital, algo descurada e excessivamente acentuada, retira alguma da elegância que ainda se poderia manter.

Na cena final, como havia sido prometido, revelam-se as encostas de paragens do outro lado da baía em que estão postados, talvez expectantes, múltiplos dragões. De novo, têm diferenças superficiais entre si, mas não o suficiente para encontrar uma inflexão num mundo draconiano desenvolto e diverso. Dragomante encosta-se assim ao género a que quer pertencer, mas sem lançar a sua asa num vento distinto. Veremos quando atravessarem as águas, se o farão então. 
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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