2 de setembro de 2018

Cinco Mil Quilómetros por Segundo. Manuele Fior (Devir)


Como saberão os leitores deste espaço, a leitura é feita sobre livros lidos. Este é um local para leitores, não para promessas de leitores, pelo que não nos coibimos de tratar as narrativas pelos seus fins, resoluções ou enigmas desvendados. Não é que o livro de Manuele Fior se apresente como um enigma, ou algo oculto que se revele no fim, reescrevendo toda a narrativa tecida até esse momento, mas há um efeito de organização que permite criar uma história linear por sobre a história cronológica que se desenvolve por trechos isolados. Manuele Fior parte de um ponto de partida clássico, para não dizer cliché – o do triângulo amoroso – para o explodir pelo tempo, a vida real, o afastamento, formando uma pequena pérola de estrutura narrativa com os seus elementos. (Mais) 

Esta é uma história cuja sinopse esgotaria quase toda a trama em si. Dois jovens amigos de infância, Piero e Nicola, vêem a sua rotina e adolescência interrompida pela chegada de uma nova vizinha, Lucia, que se tornará rapidamente objecto de obsessão sexual de ambos, neste momento-chave da aprendizagem desse admirável mundo novo. O livro pouco mais que 140 páginas de banda desenhada contém, quase todas oscilando entre pranchas regulares de 2 x 3 ou 3 x 3 vinhetas, ou variações dessas composições. A esmagadora maioria destas vinhetas apresenta planos médios das personagens, ora isolados ora em conjunto. Há também uma insistência em dar a ver generosos establishing shots, sem texto, sobretudo no início de cada capítulo, judiciosamente introduzidos por uma chuva que se inicia, até à chuvada final. Isso é já um sinal, em retrospectiva, de que todos os capítulos são afinal tão somente o prólogo para o encontro final entre Lucia e Piero, ou as causas dessa mesma consequência, ou então as réstias da memória que sobreviveram nesse ponto de resolução.



Mas apesar dessa distribuição, a história tem lugar durante uma vintena senão mesmo uma trintena de anos e atravessando vários países e até continentes. O título nasce do espaço que afasta Lucia de Piero numa conversa telefónica. Mas há outro elemento que os afasta, ou afastou ou afastará. Nicola.

Este é um livro que pede ao leitor que faça muitas inferências para ir compreendo a trama da narrativa. Nada de particularmente obscuro nem difícil, mas não deixa de ser significativa a mestria com que Manuele Fior vai deixando informações textuais, visuais, emocionais de modo implícito, fazendo com que os leitores depois cosam esses mesmos pontos numa tessitura mais densa e complexa. Apesar de virmos a compreender que Piero e Lucia foram amantes, apenas os veremos a fazer amor no último capítulo, quando já as suas vidas adultas os levaram por caminhos bem distantes e divergentes entre si. Aquela relação entre os capítulos que aventámos acima, sobre a chuva começando, é assim reforçada ou tornada explícita pela ideia de que eles fazem amor pela primeira vez – no espaço folheado deste livro – apenas naquele momento, para nós, tornando tudo o que está antes numa típica expectativa de amantes.

Não deixa de ser curioso igualmente que apesar de toda a trama, jamais veremos Nicola, Lucia e Piero juntos, senão numa única cena, e essa cena é um sonho de Piero. Paradoxalmente um sonho soteriológico – uma vez que “cura” Piero da sua febre –, esse sonho, passado numa paisagem a um só tempo dos locais atravessados e de uma tela de De Chirico, é no fundo um pesadelo pois dá corpo à dúvida imensa que o protagonista teve sobre a fidelidade da sua namorada com o seu melhor amigo. E recordemo-nos como Shakespeare chamou ao ciúme um “monstro de olhos verdes”, cor que o ladeia e invade nesse capítulo.

Na verdade, este é o momento certo de introduzir a questão do controlo das cores por Fior, talento que já havíamos mencionado quando lemos o seu Mademoiselle Else. Cada capítulo está codificado cromaticamente, podendo-se analisar cada um dos seus jogos particulares para compreender o espectro ambiental e até emocional em causa nessa mesma parte. O capítulo de Lúcia na Noruega, por exemplo, começa em óbvios azuis e brancos, dando a temperatura das paisagens visitadas, que vão dando lugar aos amarelos e verdes do interior; num segundo momento, mais à frente e durante a Primavera, os espaços são tomados por rosas e verdes claros, depois um vermelho mais intenso que se torna a marca do conflito entre Lucia e Sven. Quando Piero chega ao Egipto, as paisagens estão saturadas com demasiadas texturas, misturando vermelhos, ocres e verdes, os quais, invadindo o rosto do protagonista, o mostram como enjoado. Depois de um breve sonho em que a cor das areias toma conta de tudo, ele desperta para uma paleta mais tranquila e sólida. Quando regressarmos pela segunda vez àquelas paragens, há uma divisão entre um vistoso, saudável e vistoso verde viçoso e um sólido castanho nocturno. Além disso, poder-se-iam descrever o primeiro capítulo e o epílogo como tendo escolhido um glorioso amarelo e o verde vivo como sendo a da presença de um estio juvenil, intenso, dinâmico e promissor, reforçando o ponto de partida no final, como uma rememoração do momento mais alto da relação entre Piero e Lucia, ao passo que o último capítulo, com os seus pequenos espectros nocturnos de roxos, lilases e rosas preenche as funções, mais que expectáveis, de um crepúsculo nas suas vidas e relação.

Cinco Mil Quilómetros por Segundo é, também, um livro que mescla duas atitudes perante o amor. Tratar-se-á de um livro realista, sem ilusões, para adultos na sua maturidade vivida, que compreendem que nem sempre os ideais e fantasias da adolescência podem ser mantidos com a vida, as suas responsabilidades, compromissos, sonhos mortos, e desistências? Ou será para essa adolescência esperançosa, que agarra a vida de uma forma completamente entregue e intensa, que acredita que será sempre Verão? Mais, que vive esse sempiterno Verão? Mostrará adolescentes que sentem a chuva aproximando-se? Ou será, afinal, para adultos que não esquecem o luminoso calor que lhes alimenta ainda a memória, e lhes permite um amor, ainda que fugaz e clandestino, não por isso menos real, menos sentido, menos verdadeiro?
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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