Entre 1972
e 1973, Tatsumi criou cem histórias curtas, oscilando entre as 15 e
as 20 e poucas páginas para uma panóplia de revistas diferentes,
cada qual com o seu espectro de géneros, atitudes sociais, e níveis
de maturidade. Logo à partida, essa mera informação aponta para o
tipo de entrega assombrosa à sua arte, impulsionada sem dúvida por
uma ética e desejo artístico, mas igualmente por necessidade, como
os leitores de A Drifting Life
poderão facilmente contextualizar. Todavia, mais importante é
parecer-nos que o autor se mantinha numa mesma veia nessas mesmas
diferentes histórias, que o tornara afinal o pai da gekiga,
ou uma tendência de empregar a banda desenhada num tom mais atento à
realidade do Japão seu contemporâneo. Mesmo que não abandonasse
algumas estruturas de géneros – o policial, a ficção científica,
a narrativa histórica, o conto tradicional (estes últimos agregados
num volume me inglês, Fallen
Words) –, elas seriam
empregues não para a titilação mais comum desse mesmo género, mas
para desvendarem um desses cantos obscuros que o país, na sua senda
de desenvolvimento material do pós-guerra, quereria esquecer ou pelo
menos não revelar à luz do dia. (Mais)
Seguir
essa produção não tem sido tarefa fácil para o leitor
não-japonês, uma vez que apenas depois dos anos 2000 se começou a
fazer uma recepção mais consistente destes autores menos
comerciais, mas sem uma substancial e dirigida política editorial.
Por outro lado, talvez este desejo seja mais informado por uma quase
tipificada doença de “coleccionador” que se pode, em última
análise, tornar-se contra-producente. Seja como for, para ler
Tatsumi, temos oscilado entre edições francesas, espanholas,
inglesas e norte-americanas/canadianas para poder, jamais completar
provavelmente, mas pelo menos aproximarmo-nos de uma leitura mais
substancial desse corpo de trabalho. A presente edição é a
tradução espanhola de um volume que havia sido lançado em 2016 em
língua inglesa, fruto de uma selecção do próprio Tatsumi,
reunindo nove histórias curtas, quase todas daquele período.
A ideia
destas histórias arrastarem para a luz do dia algo que estava
obscurecido pelas regras sociais é algo que parece presidir a todas
as histórias. Longe da sociedade burguesa e feliz, democrática e
equilibrada, confortável e culta a que tantas vezes o Japão é
reduzido nas suas versões mais populares, comuns e de postal, os
protagonistas de Tatsumi são sempre marginais, ora por razões
económicas ora por razões “morais” (cujas raízes são,
naturalmente, económicas também). Párias que vivem de esquemas, da
prostituição (inclusive a masculina, menos vezes alvo de atenção),
artistas de espectáculos eróticos, pobres pescadores, funcionários
de limpeza municipal. Dissemos “longe”, mas a verdade é que a
relação desta sociedade com aquela outra mais respeitosa é antes
feita num eixo vertical. Existe uma clara tematização entre o
“cimo” e o “baixo”, que também se traduz pela oposição
entre “noite” e “dia”. É claríssima a existência de uma
fronteira social que estas personagens atravessam, por vezes em busca
da felicidade, por outras na ilusão dessa mesma felicidade. Quase
sempre há um regresso ao ponto de partida, quebrados pela realidade.
Existem
excepções nessa metáfora espacial, como são os casos de “Expreso
de medianoche”, em que um jovem homem quer visitar o terreno que
acaba de comprar e onde poderá vir a construir a casa do seus
sonhos, ou “El palacio de la mujer”, um conto de ficção
futurista mas que acaba por também explorar a relação directa
entre as pessoas e a sua terra ou moradia como sinal de uma
genuinidade ou sobrevivência face aos princípios impostos de fora.
No fundo, estas duas histórias quase que são uma versão invertida
uma da outra.
Muitas
destas histórias seguem personagens de uma forma quase documental,
desapaixonada, ainda que nos dêem acesso a momentos de focalização
interna: sonhos, relampejos das suas fantasias ou medos, jogos
complexos de percepção. Nada disso nos ajuda, todavia, a nutrir
simpatia para com estas personagens, já que todas elas, ou quase
todas, parecem ser uma prova da banalidade do mal, da crueldade, ou
pelo menos da indiferença para com o sofrimentos dos outros. Os
“pescadores da meia-noite”, metáfora que nascida de um título
de uma das histórias maus urbanas, será como que um baixo contínuo
de quase todas elas, buscam presas e tesouros. Mas o que arrancam
sobretudo, afinal, mesmo que não o desejem, são as trevas que
ascendem ao coração dos humanos. Não é preciso viajar até ao fim
da noite, ou pelas selvas indómitas. Elas brotam no nosso interior.
Tatsumi é
um mestre do conto. Todas as qualidades maiores deste modo se
encontram: a velocidade e economia da intriga, a concentração de
informação que permite inferências sólidas, o magistral
equilíbrio entre as transições de tempo e a montagem de momentos
distintos, as pinceladas certeiras e suficientes. A situação é
estabelecida rapidamente, as relações entre as partes é clara, e
depois o âmago da acção emocionalmente desgastante é desferida.
Não existem fins chocantes e surpreendentes. A maior parte deles são
até mesmo anti-climáticos. Não se criam expectativas, dúvidas ou
questões que construam uma espécie de “futuro imaginário” a
essas narrativas. Não há enigmas lavrados que os leitores
fantasiariam. Não há, muito menos, “lições morais” a tirar
das breves intrigas. Há um só um necessário término da atenção
sobre a vida destas personagens, quase sempre entaladas entre a
resignação, a apatia ou uma incongruente distracção.
Não há,
também, comédia propriamente dita, mas haverá sorrisos arrancados
aos leitores, se prestarem atenção ora à loucura que move estas
personagens a abusar da sua sorte, ou de um alívio delas terem
escapado um fim terrível ou, mais raramente, um comovido sentimento
de que haverá ali algo de esperançoso.
"Tatsumi é um mestre do conto. Todas as qualidades maiores deste modo se encontram: a velocidade e economia da intriga, a concentração de informação que permite inferências sólidas, o magistral equilíbrio entre as transições de tempo e a montagem de momentos distintos, as pinceladas certeiras e suficientes. "
ResponderEliminarAcho que isto é a coisa mais certeira que vi escrita sobre ele. Acho que o exemplo perfeito do que fala é o conto Sky Burial