7 de julho de 2019

Tutti Fruti. Marco Mendes (Mundo Fantasma)

Foi com alguma expectativa e alegria que anunciámos o início da publicação do trabalho de Marco Mendes, num ritmo diário, no Jornal de Notícias. Infelizmente, essa colaboração nem sequer perfez um ano quando chegou ao fim, talvez antes adivinhado, aos soluços e que simplesmente teve lugar. Nesse mesmo anúncio, havíamos escrito “é possível que algumas características mais risqué sejam domesticadas”. Em que medida se verificou isso? (Mais) 
A publicação de um imenso volume reunindo todas as tiras que foram publicadas no seio da colaboração com o jornal leva a que, de uma forma feliz, não haja uma grande distância da sua publicação hodierna e a sua possível transformação em texto “livresco”, e a consequente nova respiração, circulação, memória e integração na “obra” de Marco Mendes. Naturalmente, e como não cessamos de o repetir sempre que falamos do trabalho deste autor, ele entrosa a sua prática, digamos comum, em cada circunstância que possa advir do novo projecto, mesmo que essas mesmas circunstâncias alterem as condições de produção.

Uma das alterações “físicas” ou em termos prático-artísticos foi a do formato das pranchas. De papéis usualmente maiores e com uma grande variedade de materiais riscadores, assim como da própria maneira de lançar o esboço e completar as artes-finais, Mendes passou a criar a esmagadora destes trabalhos em aguarela sobre folhas A4. Isso permite-lhe uma maior rapidez no desenho, influindo igualmente numa certa plasticidade fora do alcance do controlo total, o que resulta em imagens deslumbrantes sobretudo em paisagens desafogadas ou fenómenos naturais, uma certa leveza nas personagens (sem nunca descurar o virtuosismo da correcção e observação precisa das expressões e emoções), assim como uma escolha judiciosa na escolha das cores e tons quando se tratam de tiras monocromáticas, e sobretudo nos cruzamentos quando se verificam maiores misturas.

Mesmo que depois haja correcções sobre estas pranchas originais, inclusive através dos meios digitais (limpezas de texto, imagem, posicionamentos das vinhetas, proporções, etc.), o resultado final mantém a gestualidade original.



Mas a grande alteração terá a ver com a variedade de temas, de tratamentos, de humor e de atenções. A produção diária, obrigatória, foi algo de inédito para o autor, cujo ritmo de produção era significativo, sólido e expresso (através das publicações de fanzines, livros e o blog), mas que aqui ganhava uma urgência distinta. Neste campo, para além desse mesmo ritmo diário, o autor via-se a enfrentar uma certa resposta editorial, uma responsabilidade, digamos assim, em “dizer alguma coisa” sobre o mundo à sua volta, mais alargado, por força de participação num jornal.

Não abdicando jamais do seu olhar poético sobre o quotidiano, a capacidade em desvendar os sentimentos mais comezinhos do ser humano, o abandono à auto-derisão, a forma como evita uma patina de “bem-pensante” interrompendo o fluxo da poesia, do bon mot, do pensamento profundo com uma bordoada ou um arroto (uma característica que partilha com Miguel Carneiro, com quem havia fundado A Mula), encontramos aqui uma mais contínua conversa com o mundo da política (que já fazia, sobretudo com os desenhos a lápis de indivíduos, deixando alinhadas algumas frases e pensamentos nas margens).

Todavia, há um recuo a esse seguimento das “notícias”. Uma das aparentes “recusas” do autor foi a de enfrentar a dita espuma dos dias da política, ou melhor, da politiquice portuguesa, os fait divers ou controvérsias de bolso da semana, que leva aos desdobramentos de comentários e “posicionamentos” nas televisões, colunas e redes sociais em torno de um compadrio camarário ou uma bordoada arrotada à saída do Parlamento por um qualquer elemento eleito. Surge-nos como fulcral aqui a diferenciação que Jacques Rancière fez entre a chamada “polícia”, isto é, a política tal como exercida pelos mecanismos de poder e as regras que impõe – quem fala, como fala, quando fala, o que é necessário para se poder falar, usualmente encarcerado em papéis institucionais, das eleições à assinatura da coluna do jornal, da pertença a partidos políticos organizados ao currículo dado pelos pares, e por aí fora – e a “política propriamente dita”, que é sempre a criação de um espaço público de participação na cidade, o qual, as mais das vezes, se nota quando ele mesmo se funda, isto é, quando se conquista mais espaço de fala. E a banda desenhada não deixa, de forma alguma, de participar como um espaço de fala dessa natureza (como esperamos ter demonstrado na ocasião de SemConsenso).

Portanto, encontramos muitas tiras em torno de Donald Trump e dos vários horrores para o qual ele contribui, dando a ideia de “tudo normal” para o exercício da boçalidade, ou de Bolsonaro, que também contribuiu para a ideia de uma “normalidade do abjecto”; encontramos algumas curiosas chamadas para a realidade turca, por força da sua intimidade com esse país (através da companheira – tudo elementos representados no interior do texto, que jamais abdica das suas raízes autobiográficas, não se tratando de indiscrição); e respostas emotivas e poderosas perante acontecimentos impossíveis de evitar: a hecatombe no Mediterrâneo, os incêndios de Pedrogão, desastres naturais, os fenómenos de extrema-direita um pouco por toda a Europa... E alguns comentários também em relação a acontecimentos portugueses, mas não muitos. Não é que Marco Mendes não tenha, possivelmente, pensamentos ou atitudes perante essas realidades, mas o “peso” dessas mesmas notícias é tão fugaz, que duas semanas longe deles tudo se dissipa. Mesmo assim, há um retrato caloroso de Jerónimo de Sousa, uma atenção para com os fins de contrato selvagens do arrendamento nas cidades de Lisboa e Porto, lições sobre compadrios... E o autor terá evitado encher o seu trabalho com essa matéria friável, preferindo antes reforçar as possibilidades de uma memória perene de questões bem mais prementes.



O retrato do próprio autor – falámos de autobiografia, mas saberão os leitores deste espaço que essa noção engloba questões de fantasia, distorção, logro, jogo, humor, caricatura, sonho – continua, e será curioso entender, a longo prazo, quais os sinais de transformação interna que ocorrem sobre a sua personalidade (enquanto personagem, repitamos, nunca estaremos a falar do autor empírico). A comensalidade, mesmo quando reduzida a “copos” é um tema recorrente nestas tiras, e isso é revelador do tipo de companheirismo que este “Marco” procura entre os seres humanos, expresso igualmente noutros episódios, desde a forma como cumprimenta efusivamente os vizinhos, apoia um aluno, aceita os seus amigos tal qual são (alguns dos quais igualmente transformados em “personagens recorrentes”) ou compreende a empatia necessária e silenciosa que devemos ter para com aqueles menos afortunados que nós mesmos. E, claro, a sua mulher ganha os papéis igualmente de fonte de sabedoria e ternura, âncora e rasteira, consolidando aquela transformação que abordámos.

As pressões editoriais – discutidas publicamente, logo também aqui não estaremos a fazer inconfidências – foram sentidas, talvez desde um momento inicial, e é extremamente produtivo, interessante e revelador que a escolha editorial tenha sido feita a que não apenas surjam as datas de cada tira, como tenham incluído aquelas que foram recusadas e as que as “substituíram”, seja parcial ou totalmente. Desta maneira, caberá aos leitores o tentar compreender as razões dessas recusas. E se nalguns casos, não que se aceite a censura, mas se compreenda as limitações morais, políticas ou sociais que terão informado essa decisão – não temos de as aceitar nem deixar de criticar, é apenas a compreensão dessa posição –, há casos outros em que a ambivalência e as próprias características deste autor tornam incompreensível essa mesma decisão.



E a questão da “domesticação”? Verificou-se? É inevitável que o amadurecimento altere certas prioridades e disponibilidades da vida, e crie enfoques mais concentrados. Não nos pode deixar de surpreender que a necessidade de responder todos os dias a um trabalho desta natureza, onde o acompanhamento de uma equipa e uma verdadeira responsabilidade diária e pública exerça o seu peso. Há uma acalmia, portanto, natural. Mas se perdermos de vista a maneira como o autor se ri das suas próprias piadas sem no-las revelar, mostra a podridão e crueldade de que somos capazes, bastas vezes disfarçada com palavras como “tradição”, “realpolitik”, “naturalidade”, “inevitável”, como observa as estrelas e a aurora, deixa que as crianças revelem a sua profunda compreensão de quem somos, se deixa abandonar no abraço dos amigos e amante, então não estaremos a ver a diversidade frutífera com que o Diário Rasgado é capaz de mudar as suas páginas, sem nunca perder a sua urgência.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. Indicamos ainda que o volume foi publicado com três cores diferentes para as capas (vivos e claros verde, amarelo e rosa), todos numerados e assinados.

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