15 de agosto de 2019

Pimenta no cu dos outros para mim é refresco. José Feitor (Imprensa Canalha)


Fosse José Feitor escritor medíocre, ou editor banal, provavelmente teria dado como título a este opúsculo “Tratado da crueldade humana”, ou algo assim, exercício insonso a que estas mesmas palavras, de crítico sempre votado à segunda palavra, derivada, incorre. Todavia, esse apodo descritivo ou putativo sub-título tão explicativo como redutor, é tão-somente uma tentativa de começar a dar a ver este segundo volume de uma planeada trilogia que começara com Uma perna maior que a outra, de que já faláramos. Se um título destes, de provérbio de pouco uso, não capta desde logo o futuro leitor, então não estaremos a falar sequer de um leitor digno desse papel. (Mais)

De novo, temos pelas mãos deste autor uma pequena grande obra auto-editada que, existisse maior fortuna e justiça nas letras, nas imagens ou mesmo nas letras-com-imagens nacionais, teria seguramente uma maior circulação e recepção, ainda que suspeitemos que jamais ao alcance das massas, no seu sentido mais social e também pejorativo. Se nós, símios, gostamos de ver espelhos, somos mais movidos ora pela facécia (em relação ao outro) ora pela soberba (em relação ao próprio), raras vezes pelo desejo de uma escavada introspecção. Que é o que se leva a cabo aqui. Não se tratando já de uma prosa cujos instrumentos revelam da autobiografia, como o caso de Uma perna..., mesmo assim o autor não se escusa de se incluir no “macaco nu” que pinta nestas páginas, pelo uso de pronomes na primeira pessoa como fórmula de pertença a esta espécie.

A prosa de Feitor é de um requinte de joalheiro. É pelo vocabulário, a sintaxe e o sarcasmo fino que o escritor mostra a sua lavra e distância do uso diário da linguagem, elevando-a a exercício de uma mais contundente razão. As pequenas prosas, dactilografadas sob as imagens, como se se tratasse de um arquivo antigo, bebe (é citado no fim) de obras díspares como Hobbes e Freud, Elias Canetti e Stephen Jay Gould, entre outros. Existem trechos reconhecíveis, ou temas repetentes e sobejamente conhecidos da lavra desses autores, e aquilo que a psicanálise, a economia, a sociologia, a biologia, têm em comum é a maneira como interrogam o bicho humano. As lições colhidas e arranjadas neste ramalhete entrelaçam-se em torno da ideia do que significam as comunidades humanas, seja a pátria seja a família, e como nenhuma delas é suficientemente forte, ainda assim, para apagar a besta que se nutre no nosso interior. Ou pior ainda, são essas mesmas comunidades quem alimenta a bestialidade pronta a ser redistribuída pelos outros. O verniz estala a qualquer momento e por dá cá aquela palha, e nem na morte encontraremos sossego dos falsos moralismos e hipocrisia. É aí que Pimenta no cu dos outros para mim é refresco discorre.



A beleza desta prosa parece ter afinidades, ainda que não directas, mas de tradição, com autores tais como Augusto Abelaira ou M.S. Lourenço. Cada palavra um acerto, obrigando a uma leitura pausada e em voz alta. Não se trata de avançar rapidamente para o desenlace de um conceito, mas a degustação de um pensamento articulado.

Se nas palavras há um afastamento da autobiografia – enquanto género literário – nas imagens há também uma deriva do projecto anterior. Do registo mais realista e baseado em fotografias de foro antropológico de Uma perna, Pimenta abandona-se a composições mais fantasiosas. A assinatura gráfica do autor mantém-se, com as suas linhas de contorno grossas, em alto contraste, e uma composição central, quase de citações clássicas, das personagens, em momentos pregnantes de um qualquer drama cuja causa e desenlace apenas podemos imaginar. Mas o cruzamento entre o humano e o animal, ou o vegetal, o monstruoso, o dilacerado, aumenta. Os rictos e máscaras ganham cidadania modelar. O fantástico e o absurdo tomam conta da cena. A realidade humana não é feita somente de realidade.

“O homem não é aquilo que aparenta ser, apesar da atmosfera prevalecente de altos pensamentos e nobres aspirações.” Esta é uma frase de Ralph Steadman a propósito das ditas caricaturas de Leonardo da Vinci, cuja colecção de desenhos de fácies tremendamente grotescas e distorcidas são provavelmente menos fruto da hipérbole física que os irmãos Carracci transformariam numa disciplina específica do desenho humorístico do que parte da contínua pesquisa da realidade humana. Sentimos algo similar nestes “retratos” de seres humanos: por detrás de mecanismos científicos avançados, mantêm a mesma face embevecida senão imbecil; perante o desconhecido, o estranho ou o mais fraco, colocam caretas de fúria; junto aos seus pares, haja hierarquia, esvaziando o brilho dos olhos; apanhados sozinhos e sem lei, encontram-se maçãs do rosto e punhos.

Podemos revelar, parcialmente, que o terceiro volume se encontra em produção, e cujo lançamento terá lugar no seio de uma exposição significativa que reunirá os trabalhos destes três títulos. Ensaio sobre a espécie humana, o gesto final fará ver em que medida se articulam estas três partes. Para já, ficamos com estas ofertas sobre o fechamento da cultura local e agora sobre a universalidade do bestial. Um gesto literário e imagético, que age como um álbum sobre o humano, demasiado humano, pateta alegre e criatura triste, esboçada na terrível franqueza das palavras e nos distorcidos reflexos de Pimenta no cu dos outros.
Nota final: agradecimentos ao autor-editor, pela oferta do volume.

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