30 de agosto de 2019

fêmea. Uma história ilustrada das mulheres. Inês Brasão e Ana Biscaia (Santillana)


Não se tratando propriamente de um dicionário, ou enciclopédia organizada, fêmea está organizado de uma maneira que permitirá usos idênticos ao desses objectos livrescos: uma consulta, em vez da leitura linear, e uma descoberta, abrindo a maior pesquisa pontual. As secções são claras e reveladoras: a primeira é dedicada a “artefactos”, ou objectos e invenções que, de uma maneira ou outra, vieram, alterar as possibilidades dos movimentos sociais da mulher, para bem ou para mal, e as mais das vezes, para ambos; a segunda reúne “manifestos”, no sentido do que é manifestado, encarnado, que ganha corpo, por entre personagens histórias ou papéis colectivos que poderão servir de modelo maximal ao esforço feminino na História, ainda muitas vezes escrita no masculino; a última focando “territórios”, isto é, campos profissionais que vieram a ser ocupadas de uma maneira especial por mulheres, ou por pressões sociais que as confinavam a esses papéis, ou por pressões sociais que as impediam de ocupar esses papéis e que acabaram por ocupar de modo especial. (Mais) 

Depois, cada capítulo, texto, cada “entrada”, por assim dizer, 12 por secção, vai exemplificando-a: fala-se da lixívia e do vibrador, dos véus e das máquinas de lavar roupa, das revistas femininas e do diário; arrolam-se os nomes de Nina Simone, Anaïs Nin, e Sara Baartman, dita a “Vénus Hotentote”; exploram-se as classes das freiras, costureiras e enfermeiras, de bailarina e operária fabril, de atleta, juiz e professora.

Não será este o livro que pesquisa de forma profunda e balizada histórica e sociologicamente um papel específico da “mulher” - da pluralidade dessa categoria – em cada sociedade determinada – a “mulher” da Antiguidade grega não é a mesma da “Cristandade Europeia pós-medieval”, nem elas são as sufragistas de ontem ou a mulher de hoje. E mesmo hoje, há muitas diferenças, de classes sociais, profissionais, étnicas, culturais, sexuais, e por aí adiante. Aliás, o livro em si admite precisamente a potencialidade da pluralidade desse descritivo, não apenas alcançando mulheres não-ocidentais e de outros tempos, como ainda personagens ficcionais (a mulher “balzaquiana” e a Mafalda de Quino) como categoriais colectivas (as bruxas, as pitonisas).

Os textos em si não procuram ser, de forma alguma, secos e directos e objectivos (num sentido de “objectualidade”), mas antes abertos a cruzamentos cronológicos, mostrando os ecos que perduram nos nossos dias de algo da Antiguidade, solidariedades de lutas anciãs com as que hoje se mantêm, elos comunitários entre mulheres de culturas distantes entre si mas pertencentes à mesma sororiedade por alguma razão.

E os desenhos de Ana Biscaia tentam sempre criar uma respiração paralela ao texto, criando laços narrativos ou aberturas de intepretação, que deverão pouco à âncora do texto. É assim que o baú de noiva arde por dentro e destila sonhos lúbricos por fora; que a criada se vê isolada num tabuleiro de xadrez mas mesmo assim votada à inércia e a costureira se erga como uma máquina desconstruída de Léger; que a exuberância da prosa de Nin se apresente como fiapos de linhas a grafite, aguadas de café, e fantasmas de sombras; que cores ocres e térreas e composições africanistas componham o friso das atletas mas a Khoisan que serviu de “peça de zoológico” surja contra um glorioso salmão vivo. Os desenhos não encerram, nem esclarecem, reduzem ou explicam: abrem. Desabrocham. E quase sempre celebram, com uma alegria inerente à figuração, de linha nervosa mas suave, de cores poucas mais vívidas.

Uma última parte é reservada a “testemunhos” (as aspas são de citação, não de reservas à natureza dos textos): relatos na primeira pessoa de 6 mulheres, numa linguagem despojada, cheias de traços de oralidade e urgência em não esquecer, uma linguagem descontraída que revela memórias fugazes, subtis, de alegrias e dores, revelando experiências que têm tanto de individual como de repetível, pela sua própria comunalidade merecedora de recuperação e de transformação em texto perene. De várias estações sociais e momentos da nossa história colectiva, estas mulheres portuguesas mostram um retrato feito pelos seus corpos e almas, por vezes a um ponto insuportavelmente comovente. Sobretudo para que não esqueçamos (não peço desculpa de me meter nesse número, como homem), nós que aqui estamos e não estivemos lá, num tempo e espaço em que a luta era maior, que a luta foi maior. Não terminou, decerto, mas é feita na sombra de outras conquistas entretanto já havidas. fêmea assinala-as.



Nota final: agradecimentos à artista, pela oferta do livro.

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