30 de agosto de 2019

Três zines da Sapata Press.



Serão hoje mesmo lançados três novos títulos pela Sapata Press, cujo papel não é tão somente criar a possibilidade de publicar fanzines de novos “autorxs” (que me perdoem, mas não domino ainda esta novilinguagem), como a de proporcionar um importante espaço público para todo um debate complexo em torno das questões da identidade, que não se reduz de forma alguma apenas ao sexo, sexualidade, género ou outras categoriais sociais. (Mais) 

Dirão os detractores de muitos destes combates que existirá uma “ideologia de género”, dito de maneira a que ambas as palavras ganhem um tom pejorativo, e jogando como que a responsabilidade de um suposto “outro lado” da barricada, não enxergando como se inscrevem, as mesmas pessoas que empregam tais termos, também elas num campo ideológico. Não faz mal repetir até à exaustão: o primeiro passo das ideologias dominantes é apagarem-se enquanto tal, e revestirem-se de apodos tais como os de “naturalidade”, “normal”, “são assim as coisas”, “foi sempre assim”, e por aí adiante. Para assim criar a ideia de que a radicalidade de um movimento que tenta conquistar mais liberdade, mais individualidade, mais empatia, mais abertura, acabe por ser retratado de forma negativa. Mas como não compreender a “militância”, se é um gesto de defesa contra inúmeras violências que – nem sempre, mas quase sempre disfarçadas pelo menos – surgem “pequenas”, “invisíveis” (aos olhos da normal, não de quem a sofre), e que se disfarçam de palavras, gestos, olhares, disponibilidades, atitudes, escolhas, campos e condições mesmo de possibilidade?

É assim que o trabalho de Cecília Silveira, editora da Sapata Press, lança bases inabaláveis de um novo e mais alargado “campo e condições de possibilidades”.


As três publicações são Tom Boy, de Vitorelo, Plexo Lunar, de Félix Rodrigues e Salomé Honório, e Jacaré, de Sara Tanganho. Objectos bem distintos entre si, entre o desdobrável (Tom Boy) e o pequeno livro (Jacaré e Plexo Lunar), entre a estrutura mais ortogónica da banda desenhada (Jacaré), a da tira (Tom Boy) e o texto ilustrado (Plexo Lunar), entre o tom confessional e autobiográfico (Tom Boy), o fantástico-humorístico-metafórico (Jacaré) e o poético (Plexo Lunar), esta súbita oferta é um bom retrato da diversidade material, tonal e estilística que a Sapata escava.


Jacaré é um relato sem texto que cria uma metáfora divertida, mas ao mesmo tempo acutilante, do mênstruo mas cuja interpretação pode ir bem além da anedota, com implicações de descrição física, sensação fisiológica, sugestão anímica e, claro, até questões simbólicas e sociais.

Plexo Lunar dá palavra a uma pessoa, que sente na pele as violências de que falámos acima, e descreve um mecanismo de defesa, mas ao mesmo tempo de resistência, resposta e combate. Num tom íntimo, poético, desincrustar os sentidos deste texto (isto é, o conjunto imagem-textual) estará nas mãos do leitor.


Tom Boy, de uma forma desarmante, responde à pergunta que os não-binários enfrentam repetidamente: “você é menino ou menina?”. Não nos subtraímos ao número de pessoas que ainda batalha com a compreensão de que certas categoriais se esboroam, e mesmo que não tenhamos uma resposta cabal neste projecto de Vitorelo, é um começo feliz.

E livros de banda desenhada entrarem na esfera pública enquanto esboço de respostas felizes é um óptimo voto.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta dos títulos.

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