O regresso de Filipe Abranches à banda desenhada é feito com um fulgor que faz colidir a nostalgia, a homenagem, a memória da banda desenhada e outros lazeres da infância (o modelismo, o radioamadorismo, os soldados de plástico, as leituras de aventura, os jogos paramilitares, as brincadeiras com bonecos e a mimetização de um certo discurso infantil, que por sua vez mimava o que se imaginava ser o linguajar dos adultos em filmes de guerra). Até certo ponto, Selva! é um livro para os miúdos que fomos. Todavia, é um livro para os miúdos que fomos enclausurados nos adultos que somos agora, e é possível observar, como a um tronco cortado, todos os anéis das camadas marcadas, e encontrarmos os nódulos que estiveram um dia no centro, e agora se perdem na polpa, deixando apenas a forma mais expansiva à sua volta. (Mais)
É quase impossível ler este livro sem
nos recordarmos de que as suas sementes temáticas e obsessivas
estiveram presentes em War is Hoover... e, mais tarde, no
filme À tona. Todos estes textos tinham como objecto central
os aviões da Segunda Grande Guerra, reminiscentes tanto de Howard
Hawks como de Buck Danny, numa fantasmática memória de
fantasia.
Há algo de regressivo em toda esta
matéria: a ausência de personagens femininas, os vários modos da
camaradagem masculina, as modalidades militares visitadas... E até a
própria construção física das páginas, optando por composições
absolutamente convencionais, ortogonais, domesticadas, parece
convencionalizar e reterritoiralizar a banda desenhada. Importa,
porém, ver para que é que serve todo esse território: servir uma
narrativa cuja organização de planos atravessa relações
impossíveis. O piloto que se atasca nas águas ao princípio lê uma
banda desenhada na qual entramos, e não sabemos se saímos ou não
dela, apesar de vermos outras personagens a consultá-la. Os soldados
regressam à caserna, que é uma caixa de papelão guardada num
sótão, onde se abre outra banda desenhada, no interior da qual uma
criança sonha com outra banda desenhada ainda, comprada num quiosque
onde o líder militar também as lê... Chama-se a estes níveis de
“histórias dentro das histórias” níveis hipodiegéticos, mas
Selva! apresenta labirintos impossíveis de resolver, como
figuras não-orientáveis, tal qual como a garrafa de Klein.
Interessa menos “resolver” o enigma, sair do labirinto, do que
apreciar estar perdido na sua travessia.
Produto de uma prática célere, a
pincel (se bem que existam lápis primários de marcação e
construção das páginas), a assinatura de Filipe Abranches tem uma
fluidez que sempre se lhe assistiu na obra, mas que com os anos foi
sendo apurada e que ganhou no trabalho de animação – na sua
transformação em trabalho colectivo, em imagem animada, em filme e
fita – uma presença ainda mais moldável.
Um pouco como o trabalho de
Marc-Antoine Mathieu, algumas das experiências de Grant Morrison ou
mesmo alguns autores do campo experimental, Selva! é
menos um livro com uma intriga e um foco de atenção a algo que se
coalesce como um objecto externo ao livro – se bem que existem
“missões” (apanhar o espião, chegar à ilha, descobrir a imagem
em falta) –, mas a própria metatextualidade do livro. O grande
McGuffin é a “última vinheta”. O grande objectivo é chegar ao
fim. A missão é acabar. E se estas frases têm muito de banal, é
porque é isso mesmo que se vai sublinhando. Repare-se, por exemplo,
a quantidade de vinhetas que, fechando as páginas ímpares, mostram
personagens a apontar, a enquadrar, a correr na direcção do
horizonte ou do virar da página. Se há algo em falta no livro,
talvez fosse um contínuo “(continua...)” na margem das páginas,
como a incessante repetição na revista Tintin, recompensada
por um ocasional “fim.”, incluindo o ponto final. Selva!
termina com uma promessa
de regresso, criando redes sempre abertas de intertextualidades, mas
é também como se este fosse um livro que sempre estivemos a ler...
Nota: não tendo estado envolvido na
criação do livro, o nosso envolvimento na equipa de redacção da
Umbra significa ter estado envolvido noutras etapas.
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