3 de novembro de 2019

Selva! Filipe Abranches (Umbra Livros)


O regresso de Filipe Abranches à banda desenhada é feito com um fulgor que faz colidir a nostalgia, a homenagem, a memória da banda desenhada e outros lazeres da infância (o modelismo, o radioamadorismo, os soldados de plástico, as leituras de aventura, os jogos paramilitares, as brincadeiras com bonecos e a mimetização de um certo discurso infantil, que por sua vez mimava o que se imaginava ser o linguajar dos adultos em filmes de guerra). Até certo ponto, Selva! é um livro para os miúdos que fomos. Todavia, é um livro para os miúdos que fomos enclausurados nos adultos que somos agora, e é possível observar, como a um tronco cortado, todos os anéis das camadas marcadas, e encontrarmos os nódulos que estiveram um dia no centro, e agora se perdem na polpa, deixando apenas a forma mais expansiva à sua volta. (Mais)

É quase impossível ler este livro sem nos recordarmos de que as suas sementes temáticas e obsessivas estiveram presentes em War is Hoover... e, mais tarde, no filme À tona. Todos estes textos tinham como objecto central os aviões da Segunda Grande Guerra, reminiscentes tanto de Howard Hawks como de Buck Danny, numa fantasmática memória de fantasia.

Há algo de regressivo em toda esta matéria: a ausência de personagens femininas, os vários modos da camaradagem masculina, as modalidades militares visitadas... E até a própria construção física das páginas, optando por composições absolutamente convencionais, ortogonais, domesticadas, parece convencionalizar e reterritoiralizar a banda desenhada. Importa, porém, ver para que é que serve todo esse território: servir uma narrativa cuja organização de planos atravessa relações impossíveis. O piloto que se atasca nas águas ao princípio lê uma banda desenhada na qual entramos, e não sabemos se saímos ou não dela, apesar de vermos outras personagens a consultá-la. Os soldados regressam à caserna, que é uma caixa de papelão guardada num sótão, onde se abre outra banda desenhada, no interior da qual uma criança sonha com outra banda desenhada ainda, comprada num quiosque onde o líder militar também as lê... Chama-se a estes níveis de “histórias dentro das histórias” níveis hipodiegéticos, mas Selva! apresenta labirintos impossíveis de resolver, como figuras não-orientáveis, tal qual como a garrafa de Klein. Interessa menos “resolver” o enigma, sair do labirinto, do que apreciar estar perdido na sua travessia.

Produto de uma prática célere, a pincel (se bem que existam lápis primários de marcação e construção das páginas), a assinatura de Filipe Abranches tem uma fluidez que sempre se lhe assistiu na obra, mas que com os anos foi sendo apurada e que ganhou no trabalho de animação – na sua transformação em trabalho colectivo, em imagem animada, em filme e fita – uma presença ainda mais moldável.



Um pouco como o trabalho de Marc-Antoine Mathieu, algumas das experiências de Grant Morrison ou mesmo alguns autores do campo experimental, Selva! é menos um livro com uma intriga e um foco de atenção a algo que se coalesce como um objecto externo ao livro – se bem que existem “missões” (apanhar o espião, chegar à ilha, descobrir a imagem em falta) –, mas a própria metatextualidade do livro. O grande McGuffin é a “última vinheta”. O grande objectivo é chegar ao fim. A missão é acabar. E se estas frases têm muito de banal, é porque é isso mesmo que se vai sublinhando. Repare-se, por exemplo, a quantidade de vinhetas que, fechando as páginas ímpares, mostram personagens a apontar, a enquadrar, a correr na direcção do horizonte ou do virar da página. Se há algo em falta no livro, talvez fosse um contínuo “(continua...)” na margem das páginas, como a incessante repetição na revista Tintin, recompensada por um ocasional “fim.”, incluindo o ponto final. Selva! termina com uma promessa de regresso, criando redes sempre abertas de intertextualidades, mas é também como se este fosse um livro que sempre estivemos a ler...
Nota: não tendo estado envolvido na criação do livro, o nosso envolvimento na equipa de redacção da Umbra significa ter estado envolvido noutras etapas.

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