Criado
na sequência do convite estendido ao artista de estar presente no
Festival de Treviso, no qual Portugal foi o país convidado, e se
publicou uma colectânea de trabalhos traduzidos editados por Marcos
Farrajota, este pequeno fanzine é na verdade um projecto de resgate
em duas acepções. Num sentido da prática artística e no da
narrativa aqui oferecida. (Mais)
Em
primeiro lugar, é preciso compreender que Abranches, no seu desejado
mas lento regresso à banda desenhada, que apenas se tem cumprido nos
últimos anos através de histórias curtas espalhadas em várias
antologias, se estava a moldar em torno de um livro que misturaria
várias linhas de desenvolvimento: projecto autobiográfico,
exercício de regresso às leituras de banda desenhada da infância,
em que Buck Danny, por exemplo, tem um papel fundamental,
desejo em experimentar abordagens formais consistentes com alguma
prática clássica, como a grelha de 2 x 3 vinhetas, e a capacidade
camaleónica do autor em tecer vários modos do desenho e execução,
procurando-se sempre um qualquer nível meta-textual.
Nesse sentido,
um projecto começou a tomar lugar com uma certa forma, uma certa
estrutura, um certo fito, mas aos poucos foi sendo alterada em busca
de outro tipo de investigação. Podemos dizer, até certo ponto, que
War is Hoover... nasce de uma manipulação de objectos originais
em grau duplo: por um lado, em parte, uma apropriação de pranchas
de várias bandas desenhadas clássicas norte-americanas dos anos
1940 e 1950, ou de outros azimutes, em torno de géneros como os de
guerra, da aviação mais propriamente, policiais, de espionagem, e
por aí fora, e por outro, uma manipulação directa sobre as
primeiras pranchas que haviam nascido daquele diálogo. No interior
do livro, é ofertado um postal dobrado que contém uma das pranchas
originais de Abranches, e a que cita, retirada da revistinha
Aventuras do FBI.
A
esmagadora maioria das páginas desta pequena publicação têm uma
vinheta isolada, colocando os soldados retratados igualmente no
centro de uma tempestade da qual não têm escapatória. O início e
final da “narrativa” mostram uma explosão de um vulcão, o de
Tarurvur, na Nova-Guiné, como forma de ancorar a acção que se
desenrola, supostamente na segunda Guerra Mundial. E um spread
central mostra um piloto, em grande plano, no centro da teia de
comunicação impossível que se vê preso.
Em
segundo lugar, como dissemos, a ideia de “resgate” preenche mesmo
a diegese do livrinho. No fundo, temos aqui a história de soldados
abandonados num combate na selva, impossibilitados de receber apoio
aéreo, e que se vão atolando cada vez mais nos pântanos que tentam
atravessar. Mas ao perscrutarmos os seus diálogos, entendemos que
algo se passa a um nível que não os enclausura apenas numa
história: eles referem-se às onomatopeias escutadas na banda
desenhada, referem-se às técnicas de pintura ou retoques sobre
soldadinhos de chumbo ou outros materiais, ao mesmo tempo que
reparamos que todos eles têm bases nos pés, como brinquedos, e
depois há uma quebra total na comunicação que tentam estabelecer
com o apoio aéreo, reduzido ele também a modelo de plástico e a
acidente numa poça de lama. E os vários níveis diluem-se entre si,
desaparecem, e não compreendemos totalmente onde, como, quem e o quê
estivemos a testemunhar. A presença de uma máquina de lavar roupa
Hoover da década de 1960 – uma Keymatic – parece deitar fora
roupa, na forma de fantasmas, de fragmentos de corpo (à la
Vaughn-James?), de fumo, que depois ganham densidade e acção na
narrativa.
Como
escrevemos uma vez num texto longo sobre Abranches, e cuja
palavra-chave já empregámos acima, o desenho deste autor é
verdadeiramente camaleónico. Não naquele breve trecho em que
usualmente é empregue essa palavra para se falar de uma pequena
variedade de assinatura estilística das parte dos autores. De uma
forma profunda e extremamente complexa, Abranches foi cultivando
vários registos e caminhos ao longo da sua carreira, até ter
atingido uma certa fluidez na arte do encontro entre desejo e
execução, pulso e olho. Aqui flutua por vários dos caminhos já
trilhados, e tanto vemos Milton Caniff como Solano Lopez, Tardi ou
Pratt, como se toda essa tradição, toda essa memória, se formasse
e dissipasse para concorrer nestas linhas e segundas cores.
Pequeno
exercício de nostalgia, de regresso, de reinvenção, de re-início
de uma movimento interno à leitura e criação da banda desenhada, e
um encontro entre linguagens clássicas e contemporâneas, War is
Hoover... é um pequeno mas possante gesto da própria memória,
talvez, que a banda desenhada constitui.
Nota
final: agradecimentos ao artista, pelo envio de algumas das imagens,
sendo quase todas provenientes do blog da editora.
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