A
angariação deste pequeno objecto, que parece revestir-se de uma
natureza descartável, para esta constelação mínima de
livros-de-artista, poderá, à luz das anteriores publicações, soar
deslocado, um desvio demasiado grande para uma força agregadora, um
salto demasiado abusivo de um gesto concentrado. Poderá, mas a
natureza fluida que queremos ajuizar nestes mesmos objectos terá de
permitir que, mesmo na existência de uma imensa torrente central,
cujas margens pareçam perenes e unidireccionais, haverá sempre
espaço para afluentes, lagoas, reentrâncias, desvios, baías,
pântanos, mangais, com toda a espécie de vegetação e vida animal,
por vezes demasiado movente para que se a consiga catalogar. Ou pior,
tanto movente que no momento da sua catalogação, já se mutou em
formas novas.
É
precisamente isso o que nos parece ocorrer sempre que nos deparamos
com os gestos de Mattia Denisse. (Mais)
Poderíamos
dizer tão-somente que esta publicação é a brochura que acompanhou
uma exposição de desenhos na Galeria Bessa Pereira, intitulada
Histórias assimptotas do homem sem cabeça, da mulher geométrica,
do macaco e da morte. A capa desdobra-se num “mapa” da
galeria, identificando as peças expostas por núcleos e títulos
singulares. Cada núcleo tinha uma disposição geográfica
(geométrica?) no interior da galeria, e identificado no mapa por uma
cor, também poderia convidar a uma interpretação de que
constituiriam “ciclos” particulares (tais como aqueles que
tentamos identificar em Gonçalo Pena). Mas queremos concentrar-nos
nesta “brochura”: ela contem um conjunto de desenhos que estavam
presentes na exposição, a saber, nove, dispostos ao longo do
pequeno caderno, com um deles ocupando o spread central; o
texto que preenche a sua parte de leão é uma entrevista ao autor,
sub-titulada “Conversa acerca de uma nova geometria”.
Com
tal descrição, as coisas até parecem simples, e sem grandes
complicações, mas se o fosse, não estaríamos a navegar pelas
águas tumultuosas e sem afeição pela abordagem trivial aos embates
possíveis entre a escrita, o desenho, a projecção do pensamento e
o esforço além-categorial que se podem exercer. A entrevista
trata-se de um exercício de auto-ficção algo complexo. Baseia-se
numa entrevista real (com Catarina da Ponte), para criar a figura de
“Arthur Dessine” entrevistando Mattia Denisse, mistura excertos
dos seus escritos (recordemos que Denisse, para além de artista
visual, decididamente conquistou o território do “literário”,
mesmo que explodindo-o), dos seus diários do Brasil, elege as linhas
de fuga do discurso ensaístico, biográfico, filosófico e
especulativo como elementos passíveis de mesclas inusitadas, e
constrói uma espécie de manifesto sobre o qual se arvora o projecto
aqui trazido a lume. Esse projecto é apenas um conjunto de desenhos?
Voltamos, como no caso d'As ilhas desertas, a falar dos
desenhos como pontos de acesso a projectos posteriores, a
representações de uma dimensão externa àquela que habitamos com
os nossos corpos, serão desdobramentos sucessivos também eles de
uma pesquisa poética contínua?
Os
desenhos em si, em termos materiais e técnicos, são relativamente
consistentes: lápis de cor sobre papel, perguntamo-nos se papel da
mais nobre qualidade, e todos em formatos mais ou menos próximos,
ligeiramente maiores que o A4, mas sem estandardização absoluta. A
do centro é bem maior, e disso faz jus a reprodução.
A
existência do texto e dos desenhos (ou esta selecção, já de si de
uma selecção maior) num só objecto, que se auto-intitula
Compêndio, parece querer prometer uma organização, um
sentido de lógica que advém da sua coordenação e ordenação, mas
a qual será permanentemente negada.
Recordemos
que o título da exposição indica a existência de “histórias”,
mas “assimptotas”. Este adjectivo, referente à geometria,
explica referir-se a uma “linha recta disposta em relação a uma
ramificação infinita de curva de modo que a distância de um ponto
da curva a esta recta tende para zero quando o ponto se afasta
indefinidamente sobre a curva” (Priberam). Esperando que a nossa
compreensão seja suficiente, e não errada, por entre o emaranhado
da ignorância pessoal, isso significa que é uma linha que se
aproxima de um limite determinado mas sem jamais chegar a ele. Por um
lado, poder-se-ia dizer que é um movimento tangencial, por outro, se
duplicado (sob o signo de “texto” e “imagem”), duas linhas
assimptotas constituem uma hipérbole, de órbita aberta. São
pequenos movimentos de deslocações que criam toda a estranheza dos
textos e desenhos do autor (tal como o pequeno movimento que leva de
“Denisse” a “Dessine”).
“Diz”
o autor, na entrevista fictícia: “...para os caçadores de
planetas, um sol que oscila no espaço como um pêndulo é o indício
da existência de planetas que o circundam. A oscilação é
produzida pela influência da atracção que os planetas exercem
sobre ele. É a partir desse sinal que os caçadores intuem a
existência de astros ainda invisíveis e é a partir dele que os
procuram”. Tal qual estes outros caçadores, o caçador de sentidos
(lógicos, policiados, categorizáveis) tem de procurar no movimento
aparente e sensível – as palavras escritas, as figuras desenhadas,
as acções representadas – que é ofertado no livro a presença de
“mundos outros” que se adivinham mas nunca se capturam.
É
começando com pequenos passos, aparentemente triviais, que nos
aproximamos de uma compreensão maior da “coisa”, mesmo que esta
não venha jamais a ser conhecida completamente, já que “não
temos nenhuma concepção do absolutamente incognoscível” (Eco,
Kant e o Ornitorrinco). Dos nove desenhos aqui reproduzidos,
apenas o central não mostra dois corpos (humanos, ou humanóides, ou
passíveis de antropomorfização) em relação um com o outro. Os
protagonistas indicados no título da exposição vão estando
presentes: nesse spread, o “homem sem cabeça” vasculha a
vegetação terrena em frente dessa enorme árvore, talvez um
carvalho, estendo a mão em direcção a um movimento ou um objecto
invisível (mas, possivelmente, à luz de uma interpretação sexualizada, como fazemos abaixo, se reinscreva a figura feminina na imagem). O seu título é “La Belle Indifférance: A árvore”.
A expressão francesa parte de um termo nascido na psicanálise, em
Pierre Janet, para dar conta de uma espécie de atitude descontraída
face a uma qualquer extraordinária disfunção física, provocada
pela psique (o exemplo é a da “cegueira histérica”). Quer
dizer, face a um acontecimento desses, como perder literalmente a
cabeça, a pessoa age com total naturalidade. Isso remete então, no
campo literário, esta(s) personagem no Absurdo(s), ainda que Denisse
queira que as suas produções possam ser vistas menos como
exercícios de mera estese, mas como uma forma de moldar
alternativamente exercícios reais e profundos sobre questões da
natureza humana, o que incluirá a forma como cartografamos o
universo.
Abordar
todas as questões mencionadas na entrevista, e os caminhos que ela
encetam, levaria praticamente a uma reprodução de todas
essas mesmas palavras, que vão caminhando para a tal “nova
geometria”, encaixada nas acções tentadas pelas interacções
destas personagens, espaços e objectos, mas essa é apenas uma
realidade que aqui fica sob a forma de convite aos novos leitores.
Em
cinco imagens, essa personagem, já sem cabeça ou ainda sem cabeça,
gira em torno de uma mulher, em vários estádios de relações
sexuais que têm também o seu quê de ritual mágico e pânico (à
la Arrabal-Jodorowsky). Numa delas não há sinal de sexo, é certo,
mas há um retorno a um primitivismo, na pose e na forma como se
prepara uma fogueira, mesmo no centro de uma sala recheada de livros.
Negando-se, de certa forma, a civilização que nos rodeia, como se
se confirmasse que sob o homem se encontra ainda (ou para sempre) a
besta – um dos desenhos tem por título “signo símio”,
apontando a essa possibilidade de uma hierarquia evolutiva e moral,
tentada igualmente em O espelho de Mogli
- , recordando uma cena de The
Time Machine (a
versão cinematográfica, na impressionante cena em que o viajante
desfaz uma fileira de livros num ápice em pó). Noutra, a inicial no
volume, a
mulher faz o pino, nua, e o homem rega o seu sexo (a vegetação
surge sempre sexualizada - atente-se particularmente à grande árvore do spread - , se não houver mesmo a potencialidade, à
la Klossowki, que é citado de modo explícito, de tudo sexualizar,
mesmo a pose mais hierática, mesmo o objecto mais isolado).
Encontramos também a presença, usualmente secundarizada, como um
co-adjuvante, um bobo de corte, um macaco de rabo comprido segurando
uma máscara, um chimpanzé brincando com um outro de peluche, quase
numa representação especular, um orangotango pensativo frente a um
volume aberto de geometria, com outras personagens em torno. Mascando
um ramo cheio de folhas ainda verdes, olha-nos, no fim deste
curtíssimo volume, como se nos exigisse uma resposta a todas as
perguntas que se foram acumulando ao longo da sua leitura. Os traços
de Mattia Denisse acumulam-se e encavalitam-se, procurando pouco
efeitos de virtuosismo e ilusão, mas permitindo que a recta que
marca a tábua passe por cima da página do livro, que as tramas da
camisola e das calças do homem ao fundo ecoem as do sofá, que se
hesite na curva do pé da mulher, que não se termine o reflexo do
esqueleto sentado. Haverá, porém, resposta possível? E unívoca?
Nota
final: agradecimentos a C.C. e A.G. pela “captura” do Compêndio.
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