As afinidades entre Paul Pope e David Rubín não são poucas
nem negligenciáveis na apreciação das obras de ambos. É então sem grande
surpresa, no fundo, que encontramos frutos do seu encontro, permitidos pela
forma como o mercado actual da banda desenhada permite uma circulação cada vez
mais sólida e diversa de autores entre países que, até há uma década, se
encontravam relativamente “isolados” em matéria de criação, salvo casos
pontuais. Não há hoje necessidade de “emigrar” para vingar ou entrar em
mercados internacionais. E ao vermos o tipo de intensidade emocional e regresso
a um certo prazer juvenil em El heróe
e Battling Boy, já para não falar das
pesquisas intertextuais e citações integradas respectivas, quase se poderia
dizer que era inevitável o seu cruzamento. Ei-lo. (Mais)
Se Battling Boy
tinha um formato já pequeno, que o aproximaria dos livros de luxo japoneses,
mais do que os trade paperbacks dos comics norte-americanos, The Rise of Aurora West é ainda mais
pequeno, num formatinho de bolso, a preto-e-branco e um trabalho convencional
mas excelente de cinzentos, que recordará ainda mais outras práticas editoriais
que não as usuais dos Estados Unidos. Esse aparente pormenor é um facto que
aproxima este projecto daquela ideia de “estilo global”, que já havíamos
debatido noutros momentos, e na entrevista com D. Mazur e A. Danner. Os três
autores reunidos neste projecto, o autor das personagens, Paul Pope, o
argumentista deste episódio, JT Petty, e o artista galego, David Rubín, cada um
a seu modo revelavam já nas suas obras a potencialidade de uma convergência de
características que haviam medrado em territórios (quase) isolados
historicamente, logo, o “casamento” é desprovido de grumos e o resultado é
ainda mais acutilante nessa direcção.
Este volume, em termos diegéticos, integra-se num “antes” em
relação a Battling Boy (o livro), mas
não poderia ser chamado propriamente de “prequela”, uma vez que a personagem
principal não é Battling Boy (a personagem), ser semi-divino, mas antes a filha
do herói Haggard West, Aurora. Se bem que o pai esteja vivo e activo nesta
história, é a focalização dela que comanda toda a narrativa. Desta perspectiva,
desde logo, percebemos que o objectivo deste projecto é de facto sublinhar a
importância das personagens mais novas. Se Haggard West se inscreve em toda uma
tradição de heróis de grandes aventuras e super-heróis (Adam Strange, Batman, Rocketeer,
etc.), rapidamente entendemos que ele é menos importante – em Battling Boy por estar morto, em Aurora West por ser secundário o seu
papel – do que os coadjuvantes mais jovens, os “sidekicks”. Battling Boy surge
também como filho de um poderoso deus, mas a sua missão na Terra, em Arcopolis,
é solitária, e os caminhos que Aurora procura são igualmente isoláveis da
vontade do pai. Se na história da banda desenhada de super-heróis os sidekicks
haviam surgido, de certa forma, como modo de conquistar uma franja de leitores
mais jovens (com a invenção de Robin, a Newsboy Legion, Bucky, Jimmy Olsen,
etc.), contemporaneamente o mercado permite que haja uma produção dirigida
directamente aos leitores mais jovens, sem passar necessariamente por
ingredientes apelativos aos mais velhos. Existem mesmo as categorias de “teens”
e de “YA” (“Yong adults”) nas secções de “graphic novels”, um nicho cada vez
mais explorado nos Estados Unidos – no Japão, isso é um dos pilares do seu
mercado particular – de modo diverso, inteligente e de alta qualidade. A First
Second é, na verdade, uma das editoras mais activas nesse nicho especial.
Nada disto significa, porém, que os adultos não retirem um
imenso prazer de ler estes livros, o que é assegurado de forma espectacular por
um projecto como este. Mas não está isolado: The Wrenchies de Farel Dalrymple, ou Eu mato gigantes, de Kelly e Niimura (recentemente publicado em
português pela Kingpin) são casos também paradigmáticos, e dos quais falaremos
em breve. Já em géneros mais “sérios”, ou graves, encontraremos nas primasTamaki um excelente exemplo.
The
Rise of Aurora West passa-se nos momentos finais da vida de
Haggard West. Ele ainda está activo, e ainda treina de forma intermitente a sua
filha e sidekick, Aurora. Os esbirros de Sadisto parecem estar a construir uma
máquina qualquer, a partir de vários pedaços que vão obtendo através da rede de
monstros que assola a cidade de Arcopolis. Os raptos de crianças continuam, sem
que se compreenda a razão. Tudo é ominoso e, na óptica dos leitores informados pelo
primeiro livro, apesar de saberem qual é o trágico desfecho desses planos, não
deixam ainda assim se serem movidos pela intriga, o suspense e o modo como os
autores conseguem deixar ainda muitas pistas que precisam de uma resposta, mas
vão complicando o “universo narrativo”. A existência de variadíssimas analepses
(“flashbacks”) – alguns provenientes da memória normal de Aurora, outros
acedidos através de métodos mais mágicos – permite-nos ganhar uma camada
adicional da vida pessoal destas personagens, dando ainda mais textura ao
livro, que apenas numa consideração rápida, superficial e distraída, é que
poderia ser chamado de “simples”.
É muito curioso que Battling
Boy coloque essa mesma personagem no centro da atenção, mas não negue um
papel importante a Aurora. Aqui, estando o miúdo semi-deus ausente, a
importância da figura feminina é ainda mais sublinhada. Desenganem-se, porém,
aqueles que pensam que essa questão do género é explicitamente indicada,
através de discursos, de gozos, etc. Bem pelo contrário, é um ponto assente
logo à partida e não tem que ser discutido. Não há nada de facto a dizer. Isso torna
um livro destes bem mais feminista do que aqueles títulos que muitas vezes são
vendidos como tal, mas onde a misoginia ou pelo menos belos princípios
bem-pensantes e sexistas ainda se mantêm vivos e activos.
O desenho de Rubín encontra-se aqui naquela sua
característica de ocupação quase total das vinhetas não apenas com as figuras e
os espaços, mas toda a espécie de pormenores que garantem um peso sólido às
cenas, e uma personalidade ao universo. Uma textura material, vívida, cheia de
fluidos e sujidade, tal como a nossa existência empírica, sendo essa uma das
outras características que unem Rubín a Pope em termos visuais. Rubín não
torce, digamos assim, nenhum dos seus métodos de trabalho para se aproximar do
projecto do autor norte-americano, mas talvez possamos encontrar na incrível
diversidade de estratégias de composição uma forma de desenvolvimento (em 150
páginas, há muito espaço para experimentar soluções diversas, que se coadunem
com cenas de alto dinamismo em planos oblíquos, a cenas mais tranquilas em
ortogonias clássicas, passando por splash
pages, cenas de flashbacks “mágicos” aliando um motivo (um puzzle) aos
enquadramentos, etc.). Também se poderiam apontar alguns momentos em que o
registo se simplifica, em planos gerais, e outros onde os pormenores dos rostos
se tornam extremamente intensos e detalhadamente esculpidos, mas isso faz parte
precisamente da flutuação dinâmica de uma banda desenhada deste género.
No caso deste volume, ao contrário de Battling Boy, há um pequeno número 1 na lombada que faz adivinhar a
continuidade da série. Veremos agora qual o segundo episódio das séries-irmãs a
surgir primeiro.
Gostaríamos de terminar por deixar uma referência à edição
brasileira de Battling Boy: com a brilhante
trouvaille do título Bom de Briga, a edição em português é
excelente, primorosa em termos materiais, divertida e fluida na língua. Seria
magnífico se encontrasse alguma circulação entre os nossos leitores mais jovens
portugueses (tal como aconteceu a toda a geração de jovens leitores das décadas
de 1970 e 1980 com as publicações da Abril). Ou pensar numa edição nacional?
Nota final: agradecimentos à editora First Second, pela
oferta do livro; assim como à Companhia das Letras, pela oferta da sua edição
de Bom de Briga. Imagens provenientes de ficheiros digitais.
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