Na
continuidade do artigo anterior, e após a sua introdução geral,
passemos à consideração desta “colecção de desenhos” de
Gonçalo Pena, pequena galeria portável. Traduzindo
de forma “selvagem” (à lá revista K)
a expressão de “viagem macaca”, poder-se-ia dizer de facto que
este volume é tão-somente uma colecção de desenhos de Pena.
Conhecido sobretudo por uma prestação de telas imensas a um gosto
antigo mas onde se investigam novas possibilidades de recruzamentos
simbólicos, e por um inaudito fanzine-acto nas Caldas da Rainha (o
“Cona da Mão”), Pena é um artista cujos instrumentos o colocam
sempre na senda de ingredientes mais ou menos classicizantes: a
figura humana, o desenho a traço, as promessas narrativas que dele
pode advir, as noções de “ciclos” (temáticos, matéricos,
composicionais). (Mais)
Contendo
mais de 250 desenhos, porém, é difícil subsumir todos aqueles
seleccionados neste volume a um qualquer princípio ou unificação.
Temos desenhos a grafite, lápis de cor, esferográfica, caneta de
aparo (?), pincel, aguarelas, aguadas, e sobre os mais diversos
papéis em termos de qualidade, cor, textura e mesmo formatos e
orientações (ainda que tudo trabalhado de modo a que, na reprodução
do livro, elas surjam uniformizadas; isto é, apresentadas enquanto
unidades de valor idêntico face ao olho do leitor). Quer dizer, logo
à partida, reunindo trabalho de uma vintena de anos, ou mais, de
produção, ao serem-nos como que “devolvidos” num só objecto,
eles surgem-nos menos como elementos de um catálogo, colecção,
reunião antológica ou balanço – o que pediria por instrumentos
editoriais bem diversos, de alguma lógica e organização de dados e
comunicativos – do que como elementos singularmente identificáveis
de um texto a ler. Tal como o havíamos afirmado em relação a
Edmond Baudoin ou a Marco Mendes (que aplicável a uns quantos outros
autores), também Gonçalo Pena faz demonstrar, neste livro, que todo
e qualquer seu desenho pode fazer parte do seu próprio Poema
Contínuo.
Se
quiséssemos arrastar o autor para mais próximo do território que
nos é mais querido, o da banda desenhada na sua acepção mais lata,
que permitiria objectos cuja coordenação das unidades não seguem
necessariamente um plano de absoluta lógica, irmanaríamos Pena com
autores tais como C.F., Debeurme, Sfar, Koch, Manouach, entre outros,
no sentido de autores que pensam através do próprio acto de
desenhar, mais do que subsumi-lo a um programa de representação ou
de narração. Mas mais importante ainda, tem a ver com aquele prazer
do momento em fazer desdobrar as linhas, formas e cores no seu
próprio acto, que permitem logo de seguida a dar-lhes uma espécie
de continuidade noutros gestos.
A
ordem, por exemplo, em que os desenhos são apresentados, não é
cronológica, nem temática, nem material. Mas é tampouco caótica
ou ocasional. Encontramos alguns desenhos que partilham
características comuns, seja um mesmo assunto, por exemplo (um casal
composto por uma mulher muito jovem e um homem mais velho, retratos
de Hitler, cenas de óperas wagnerianas, representações de
estatuária ou frisos gregos, etc.), mas que podem estar distribuídos
de modo afastado no livro, obrigando o “leitor” a criar esses
elos de modo retrospectivo, ou convidando mesmo a um folhear
não-linear do mesmo. Perguntamo-nos, então, haverá uma qualquer
regra de organização entre eles? Provavelmente apenas
circunstancial, o que se revelará importante e se une ao desenho
formado por outro desenho, a que aventámos atrás.
Algumas
das imagens parecem não ser mais do que o mais breve dos riscos
compondo uma figura, ainda que sigam o pulso bem treinado do autor,
outras parecem ser buriladas ao longo de um ponto paciente, outras
ainda citarão sem dúvida pinturas, outros desenhos, fotografias, de
livros ou jornais. Algumas misturam frases articuladas, títulos
propícios, ou frases soltas, palavras desconjuntas, estranhos e
fortuitos encontros. Passo a passo, isso aproxima-nos do campo da
“referencialidade”, ou até se quiserem da “intertextualidade”
(visual, claro está), cuja constelação seria infinita. Vemos
Gauguin, Topor, um Guston tardio, Blake, sombras de Leonardo, riscos
de Grosz, corpos de ninfetas de Klossowski e de Louÿs, sátiros de
Pascin, formas animadas de Segar, formas esquálidas de Fabre, ecos
de Léger e de Allori, por aqui: ora desirmanados, ora de mãos
dadas? Gonçalo Pena é afinal um autor que gosta de retrabalhar as
referências da dita Alta Cultura, de forma mais ou menos explícita,
mesmo que as desviando para propósitos menos imediatos dessa mesma
História, logo não será estranho encontrar esse permanente
convívio nestas imagens, ora sob a forma de citações, ora sob a
forma de “influências”, por mais diluídas que elas estejam no
uso livre das “anedotas” do autor. A licenciosidade, o absurdo,
os encontros entre o animal e o homem (devires-animais do homem e
devires-homem do animal?), uma certa propensão a citações da
cultura alemã (óperas de Wagner, os dois conflitos bélicos, Hitler
e as suásticas, como já se referiu), uma galeria de figuras
mitológicas gregas e bíblicas, e até um retrato de Pacheco
Pereira, compõe os “assuntos”, que se nos surgem, não convergem
num terreno inabalável, mas antes num movediço tecido flexível,
cheios de pontos de fuga.
No
meio deste tumulto de referências, matérias e assuntos, existirá
uma desorganização da parte do autor? Quer dizer, agora falando do
ponto de vista da produção da parte da obra, não do livro. Uma
falta de certeza em eleger um tema que conduzisse de forma mais
específica este seu volume? Uma dispersão de interesses? Um desejo
de auto-aniquilamento? Na página 81 parece-nos ver uma espécie de
auto-retrato do autor, uma figura a ser esfaqueada por dois esbirros
indiferenciados e pré-individualizados de lado a lado (os dois
editores? Os críticos?). Poderemos lê-la como a confissão
semi-oculta do autor, como todos os autores o fazem no seio das suas
obras?
Ainda
na perseguição de sentidos de ordenação através de detecção de
elementos específicos nos desenhos, notar-se-á que algumas das
folhas ostentam o carimbo do Instituto Politécnico de Leiria, ou
mesmo formulários da antiga ESTGAD, em que o autor foi docente. Essa
revelação, por assim dizer, poderia ser lida de duas formas. Uma
mais superficial e abusivamente familiar, biografista: tratando-se
tão-somente das folhas disponíveis no “emprego”, são o suporte
repentino da descontração entre momentos de labor, com outro tipo
de labor (e isso permitira agregar apenas essas folhas, eleger os
temas e tratamentos, e querer identificar constantes sentimentos, por
exemplo). Outra mais intensamente estética, e apenas demonstrar os
movimentos necessários para que, na convergência absolutamente
circunstancial entre o momento e o acto do artista, tenha
desabrochado o próprio acto do desenho, e que este tenha sido
coroado com o seu próprio êxito, cujas regras ele mesmo havia
instituído, na sua mais plena autonomia.
Aqui,
uma associação, mesmo que metafórica, à ideia da Ur-planta
de Goethe, pode revelar-se produtiva. Logo na abertura de A
Metamorfose das Plantas,
Goethe escreve o seguinte, explicitando a “doutrina” que ele aí
expõe: “as leis da metamorfose, pelas quais a natureza produz uma
parte através da outra”. Nesse ensaio, Goethe persegue, através
da sua descrição dos avanços e recuos, desdobramentos e florações,
ao longo da vida de uma flor, uma forma, fantasmática, hipotética,
superior, de planta. Todavia, essa Urpflanze
não é propriamente uma forma hipotética e externa, passível de
uma descoberta ou chegada da investigação, mas uma forma virtual
que advém precisamente da consideração global de todas as formas
visíveis. Como escreve Maria Filomena Molder na sua introdução à
tradução desse texto do escritor alemão (pela INCM), “[e]stamos
em presença de uma imagem
que representa a possibilidade
de uma planta, de um modelo de desenvolvimento que [Goethe]
actualizava em todas as formas concretas da vida da planta”. Se
olhássemos todos estes desenhos como fases concretas e
individualizadas de um gesto, qual é a forma do Ur-gesto do artista?
Será possível re-traduzi-lo para uma só imagem?
Ainda
nessas notas, Molder escreve que para Goethe “toda a escrita é
escrita de circunstância”. Até certo ponto, não poderíamos
dizer o mesmo das pesquisas de Pena? Afinal, elas percorrem menos um
caminho pautado por princípios organizadores ou conceptualizações
planificadas, do que desvios presididos pela força dos seus gestos
cumpridos. Mesmo identificando os tais “ciclos” ou “grupos”,
o trabalho editorial que levou à sua remistura e reordenação
coloca-os a todos num mesmo plano, numa mesma posição de relação
para com o tal ur-gesto.
O
livro é ainda acompanhado de dois textos, cada um da lavra de um dos
seus editores (no sentido de editors,
não publishers),
os artistas visuais Pedro Paiva e João Maria Gusmão, este com uma
espécie de rábula que reescreve os mitos de Adão, Eva e família
num ambiente de pesquisa antropológico-simbólica, à la Mauss,
aquele com uma pseudo-memória de tempos revolucionários, onde a
aprendizagem sexual se imiscui com a da introdução ideológica.
A
sua leitura enquanto “ilustração” dos desenhos – eles surgem
em inglês no início do livro e em português no final, enquadrando
a maior parte deles – permitiriam outras associação, decerto, mas
tentámos (forçámos?) uma autonomia maior aos desenhos, plástica
no sentido moldável, como que perscrutando a linha virtual,
fantasmática, que todas elas desenham em conjunto. De certo modo,
também uma viagem da linha.
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