Introdução.
Queremos
aqui agregar num único olhar três objectos distintos. Esta operação
de colocar lado a lado estas três publicações não deixa de
exercer um certo abuso, uma vez que elimina certos pormenores
singulares de cada um destes projectos para os conjugar de acordo com
um qualquer princípio que julgamos ser-lhes comum, um princípio que
poderia ter o nome fluido de “livro de artista”. Se bem que cada
um mereça uma leitura individualizada, e uma ponderação dos seus
instrumentos e elementos que os singularize, e não crie a ilusão de
familiaridade, estamos em crer que a sua consideração conjunta
poderá sublinhar questões pertinentes partilhadas por todos. (Mais)
Os
livros de que queremos dar conta são The Cabinet of Dr. Alice,
de Alice Geirinhas, Monkey Trip, de Gonçalo Pena, e, “menos
que um livro”, Compêndio de Gometria Clitoridiana, de
Mattia Denisse. Todos eles têm um grau de intervenção mais ou
menos diferenciado da parte do artista. Isto é, se partíssemos de
um ponto de vista definidor, estaríamos em apuros, já que as
definições de “livro de artista” são não apenas múltiplas
como por vezes contraditórias entre si. Basta pensar que se por um
lado se podem considerar “livros de artista” aquelas produções
mais baratas e multiplicadas que a tornam mais acessíveis,
precisamente espelhando uma vontade político-económica de
democratização da parte dos artistas (recordemo-nos da
possibilidade de encontrar em Twentysix Gasoline Stations, de
Ruscha, um primeiro gesto nesse sentido) – e aí o projecto de
Denisse estaria mais próximo dessa natureza -, por outro poder-se-ão
sublinhar antes objectos cuidados em termos de feitura e intervenção
editorial-material do artista – possivelmente sendo o de Alice
Geirinhas o que mais cumpriria esse papel. Assim sendo, se nos
ancorássemos a essas definições demasiado cingidas, perder-se-ia
talvez a hipótese de os mencionar sequer num só fôlego. Todavia,
este é um território bastante amplo e mutável nos seus contornos
absolutos, como já havíamos debatido a propósito de Tarefas Infinitas e outros objectos.
Além
disso, a formação de tais categorias depreende de imediato um
processo de hierarquização, naturalmente, e a mais do que um termo.
Comercialmente, um “livro” de artista é mais caro do que um
“catálogo”, mesmo que este segundo possa vir a ganhar um valor
de maior raridade num futuro mais ou menos próximo, e dependendo da
circulação e valorização do próprio autor. A recepção crítica,
nos mais diversos canais abertos a isso, também será mais sensível
para com um objecto de maior circulação normativa do que outro
menos imediato. E, finalmente, a inscrição desses mesmo objecto no
percurso do autor dependerá largamente de factores idiossincráticos
do autor em si. É essa relação imediata que nos interessa explorar
em primeiro lugar.
Materialmente
falando, nenhum destes objectos pretende escapar à noção e
materialização mais usual de “livro”. Se podemos encontrar em
Cabinet valores de produção materialistas mais sofisticados
e caros do que nos outros casos, ou em Compêndio um
desprendimento assinalável e compreensível, não há propriamente
uma procura por formas que coloquem em crise a ideia do “codex”.
Temos páginas, cadernos, encadernação, e até mesmo toda uma série
de complementos livrescos expectáveis: banadas, sobrecapas, no caso
do livro de Pena, uma encadernação que separa a capa da lombada,
reforçada de forma distinta, no de Geirinhas o acompanhamento de um
poster serigrafado com uma imagem produzida em
linogravura/scratchboard,
no de Denisse a capa que se transforma em poster/mapa da exposição.
Nada disso coloca em crise a estrutura física e, logo, conceptual,
do livro.
Com
efeito, o livro, ou “codex”, pode parecer-nos indiscutivelmente
uma categoria que se tem mantido ao longo de séculos, de uma tal
forma que poderemos pensar que se trata de um objecto/conceito
imutável. Mas isso não é totalmente verdade, se bem que as
inflexões sejam internas ao objecto, relacionadas com as suas
circunstâncias sociais e económicas, materiais e de práticas. Por
exemplo, compreender o livro como meio, veículo, estrutura e
enquadramento revelará que ele terá tido desde o seu início
funções sociais bem distintas, assim como lugares mais ou menos
privilegiados numa paisagem mediática sempre cambiante. Livros para
uso de missionários e livros para monarcas, livros de uso diário
para estudantes ou de preces para nobres, livros de instruções de
ilustração de livros e livros de rituais esporádicos. Nos dias que
correm, isso não é diferente. Não deixa de ser por exemplo matéria
de curiosidade de que num momento que a dita revolução digital
parece tomar cada vez mais espaço em determinadas áreas – a
académica, a jornalística-informativa, alguns tipos de
entretenimento -, haja igualmente um aumento de agentes que criam
livros com um particular brio para com a sua dimensão material, e as
formas alternativas de circulação e recepção. Precisamente o caso
das publicações que nos interessam agora ler atentamente.
The
Cabinet of Dr. Alice. Alice Geirinhas (Stolen Books).
Comecemos
pelo livro mais “livro de artista” de um ponto de vista
“comercial”. Existindo apenas 50 exemplares, oferecendo uma
serigrafia, este é uma espécie de repositório de imagens que acaba
por construir (ou reconstruir) uma biografia imaginária da artista.
Não é tanto uma recolha de imagens da autora, como já o fizera em
Alice (de 1999), mas é já
uma extensão de uma espécie de retorno à memória pessoal das
imagens, como havia feito em Repulsa,
ainda que no seio desse outro projecto concertado.
Encontramos
aqui desenhos da artista, alguns dos quais são daquela produção
que se lhe reconhece em termos formais e materiais, produzidos em
scratchboard, mas outros produzidos a esferográfica ou
marcadores baratos, talvez mais recuados em termos cronológicos (da
sua adolescência? Infância? Primeiras experiências expressivas?)
ou então fruto de exercícios de descontração, rabiscos de apoio
ao pensamento. Mas também encontraremos imagens “encontradas” ou
“apropriadas”, sob a forma de fotocópias, digitalizações, de
imagens de toda a sorte de qualidades gráficas: de livros infantis,
bonecas de papel para vestir, ilustrações de tabuadas e contos
tradicionais, guardas de livros de receitas, capas de livros, folhas
de publicidade, um excerto de um texto em espanhol de laivos
conservadores para com a mulher, e a sempiterna Crónica Feminina.
Estamos em crer mesmo que Alice Geirinhas se poderia reapropriar
desse mesmo título para despejar os seus sentidos únicos sobre este
seu livro. É claro que ao optar por Cabinet, a artista
pretende não apenas associar-se ao famoso filme de Robert Wiene, e à
ideia de uma “caixa” onde está guardado uma espécie de cadáver
adiado e profético, mas também a todo o conceito da história das
ciências e da arte das wunderkammer, espaços de
armazenamento muito pessoais, que procuram coordenar os objectos mais
díspares sob uma visão individualizada que incute sobre esse “caos”
categorial um qualquer princípio organizativo, nem que seja
precisamente o convívio no mesmo espaço. Esse título traz um certo
prestígio e uma aura elevada, mas a sua natureza perscruta na
verdade um território mais circunscrito, a prisão dos papéis
domésticos impostos à mulher. Em bastos casos, a leitura dupla,
quer dizer, das duas imagens que são apresentadas lado a lado,
obriga-nos a desembaraçar sentidos latentes nas imagens originais
que no diálogo proposto se tornam evidentes.
Todavia,
esse convívio é aqui reforçado, se assim se o pode dizer, em
termos temáticos. Vemos algumas afinidades entre essas imagens:
corpos fragmentados e que exploram questões de multiplicação e
corte dos corpos, a domesticização e depois a animalização da
mulher, maquilhagem e a maternidade, vista das mais diversas facetas.
Mesmo a imagem do conto do “macaco de rabo cortado”, se
aparentemente não parece ter nada que ver com essas preocupações
feministas, permite essa leitura se entendermos os pormenores do
conto, o acto de auto-mutilação perpetrado pelo macaco por dar
ouvidos a opiniões externas e aos contínuos gestos de tentativa de
substituições, que se abririam às mil maravilhas a leituras
psicanalíticas, sobretudo as lacanianas. Luce Iragaray, numa
entrevista, explica como culturalmente há uma predominância do
visual sobre todos os outros sentidos, a qual levou concomitantemente
a uma “perda de materialidade dos corpos”, e como isso espelha
uma distinção entre os géneros, uma vez que o investimento
escópico “não é tão privilegiado nas mulheres como nos homens”
(tema o qual seria estudado por muitas outras teóricas importantes
da relação do feminismo com as artes, de Judith Butler a Laura
Mulvey, entre outras). Sob o signo dessa consideração, não é
propriamente surpreendente que haja uma tendência em focar imagens
de rostos, expressões de felicidade, além do aspecto óbvio de ser
uma colecção de imagens (algumas das quais com pequenos rabiscos
textuais, num caso o excerto).
No
que diz respeito à artista enquanto autora de banda desenhada, de
uma geração compreendida sobretudo do final dos anos 1980 (sob a
forma de alguns dos fanzines mais significativos da época) e a
década de 1990, Alice Geirinhas produzia trabalhos que se poderiam
agregar em campos mais ou menos alargados que poderiam ser chamados
de “novelas do mundano”, “crónicas do feminino” e nalguns
casos mesmo de “autobiografia”. Seja como for, ao lado de autoras
como Ana Cortesão, Isabel Carvalho, Mimi e uma mão-cheia de outras,
Geirinhas é uma autora para quem a afirmação da identidade
feminina tinha de passar necessariamente por um posicionamento
crítico e até mesmo de conflito contra certos princípios
dominantes, papéis expectáveis, já que esse diálogo se fazia no
seio de uma sociedade que ainda escapa a um certo marasmo social,
cultural e moral. É curioso notar, por contraste, que muitas das
autoras portuguesas actuais (Amanda Baeza, Hetamoé, Joana Estrela,
Joana Afonso, etc.) trabalham já desprendidas dessa necessidade de
afirmação – ou cujos instrumentos são bem distintos - , o que é
em si mesmo uma conquista tornada possível pelo trabalho explorado
anteriormente. A pequena e pessoal wunderkammer que aqui nos é
dada por Alice Geirinhas ainda respira no seio dessa lógica de
afirmação, através da apropriação e re-empregos das imagens
subsumidas a um tema mais ou menos coeso.
Nota
final: agradecimentos à Stolen Books, pela oferta do livro.
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