Ao
folhearmos este livro, cria-se um mecanismo estranho de leitura. Na
primeira imagem, de página inteira, vemos um poste eléctrico, cheio
de fios e ligações. Na segunda, uma caixa de fósforos semi-aberta.
Na terceira, já apresentando uma estrutura de várias vinhetas (duas
apenas, mas num jogo de luz e sombras que multiplica a imagem maior
em unidades menores), o que parece ser um bode em pé, olhando a
chuva lá fora. Depois, introduz-se uma personagem humana, uma mulher
arranjando as unhas a outra mulher. As imagens que se seguirão ora
vão multiplicando os agentes, os espaços, os eventos, algumas vezes
demonstrando pequenas sequências, outras fazendo regressar algumas
personagens recorrentes, outras ainda recolocando objectos em
diferentes funções, e apenas lentamente, lentamente, é que podemos
destrinçar uma ideia de “narrativa” - já que uma intriga nítida
e cristalina jamais se coalescerá – destas imagens aparentemente
desconexas. Apetece-se dizer, com Fernando Pessoa, imagens
“inconjuntas”, e com Giorgio Colli, falar de um “mel da
narração” que garante coesão aos elementos díspares. (Mais)
Ainda
que a sua atribuição individual diga respeito à autora Mariana
Waechter, o livro faz parte do trabalho de um colectivo chamado
Sáfaro. Daquilo que nos é dado a entender, trata-se de um grupo de
desenvolvimento de projectos artísticos que interrogam certos temas
político-sociais contemporâneos, como o terrorismo, os discursos
políticos associados a eles, as decisões de manifestação da parte
dos cidadãos de uma resistência a esses discursos únicos, as
respostas violentas das forças policiais e/ou militares,
necessariamente aliados à realidade brasileira, através de uma
investigação das tragédias de Eurípides, tendo sido Medeia
a primeira. Os frutos desse trabalho são uma encenação, uma
performance de investigação, objectos de artes visuais, instalação
e literários, e o livro de Waechter poderia então ser entendido
como uma “tradução gráfica” desse mesmo projecto. Tendo em
conta que a pesquisa da autora não é sobre o texto original de
Eurípides, não se trata tanto de uma adaptação literária,
aliando antes o seu livro a projectos como Brutalis, de Van
Hasselt, e Chantier-Musil, de Vincent Fortemps.
E
mesmo haja uma leve possibilidade de “co-optar” Medeia
como um livro narrativo, ele sobrevive sobretudo como um objecto em
comunicação permanente com um pesquisa, e nesse sentido tem um grau
de abertura superior a uma mera intriga narrativa. Essa narrativa
leve que emerge não deixa de traduzir alguns dos elementos
diegéticos da tragédia escrita em 431 aEC., e que curiosamente foi
galardoada apenas com o terceiro prémio nesse ano. Afinal de contas,
podemos compreender que a figura feminina recorrente, e que parece
sacrificar um bode, parir coelhos, ser despejada do seu apartamento e
contemplar as vagas telúricas e ctónicas à sua disposição é a
Medeia da Cólchida, ultrajada e abandonada por Jasão, e que exerce
uma temível vingança sobre Jasão, a sua noiva, o pai desta,
Creonte, e também os seus próprios filhos, fruto da união com
Jasão. Na sequência mais claramente narrativa do livro, em que
vemos duas crianças lançando fogo a uma noiva e o seu pai (que
pedirá, quem sabe, emprestadas as suas feições a um qualquer
industrial, grande proprietário ou político brasileiro, ou alguém
que acumule mesmo essas funções, o que não seria surpreendente), e
que depois tomam o seu destino nas mãos, poderemos ler uma tradução
da ideia clara dessa vingança. Em suma, uma leitura paralela do
texto de Eurípides ou uma outra versão do mito de Medeia e o livro
de Waechter poderá fornecer-nos variadíssimas pistas de
interpretação narrativa.
Mas
mais importante que essa é a interpretação política, que nasce da
pesquisa do colectivo. Reler Medeia, a de Eurípides, à luz
dos discursos “únicos” dos regimes políticos actuais do
Ocidente, em que se demoniza um Outro para, na desculpa do combate ao
terrorismo, atropelar igualmente outras regras e liberdades dos
cidadãos, e mesmo entraves à conquista do poder político e
económico de áreas que até ali lhe estavam fora do alcance, é
enriquecedor. Medeia é, afinal, à luz da crescente cultura grega,
xenófoba, uma “estrangeira”, uma “bárbara”, uma “selvagem”
(palavra bastas vezes repetida por várias personagens) e a acusação
de bruxa e de conhecedora de artifícios e magia negra não deixa de
ser uma excelente desculpa para a ostracizar, mesmo que abdicando
assim da dignidade humana que lhe é devida. O espaço de liberdade
de movimentos e pensamento que lhe é reservado é cada vez mais
reduzido. Diz ela: “Compreendo bem que numa cidade grega nada é
completamente íntimo. Aquele que possua um segredo é julgado
intratável e orgulhoso... antidemocrático”. Que sentidos ganham
estes versos na paisagem pós-11 de Setembro!
Aí
se compreende que haja a intrusão, digamos assim, na narrativa
central de imagens que fazem associá-la à realidade brasileira
contemporânea: polícia de choque, o tal político (uma vez que
desconhecemos pormenores locais, passíveis seguramente de críticas
ferozes, abster-nos-emos de tentar adivinhar circunstâncias
concretas), imagens de espaços urbanos e naturais localizados, etc.
os intervenientes – colectivo, autora, leitores locais –
conseguirão estabelecer, talvez, elos directos entre uma realidade
(textual) e outra (empírica, política), mas em termos gerais os
leitores globais – como o que escreve estas linhas – tem de se
coser com outras linhas, e lançará essas associações a círculos
mais latos, simbólicos (na capa de trás, que parece retratar
pessoas fugindo de um ataque com gás, ou da poeira de algo
destruído, um prédio, por exemplo, um homem tem um rosto muito
próximo ao de George W. Bush, o que pode ainda servir de associação
mais global).
O
livro não possui qualquer matéria verbal para além do indicia
editorial. Não há citações, legendas, balões de fala, e as
únicas palavras que surgem são matéria diegética do próprio
universo referencial retratado: a marca de um poste eléctrico, a de
uma caixa de fósforos, uma folha de instruções de uma ordem de
despejo. A própria escolha de colocar o título em letras gregas, e
não romanas, cria um pequeno filtro de estranhamento à escrita, à
comunicação verbal, que faz emergir, a um só tempo, um espaço de
distanciamento e de aproximação. Distanciamento no sentido
em que não providencia mecanismos de facilitação e familiaridade,
obrigando os leitores a precaverem-se de mecanismos próprios de
interpretação, menos colectivos do que a convenção da linguagem
escrita. Aproximação por, supostamente, implicar uma relação
mais profunda com uma experiência humana universal.
Essa
flutuação é, como vemos, garantida igualmente pelo tratamento ora
próximo ora afastado do mito, e pelas várias estratégias
compositivas da autora. O traço do desenho procura seguir caminhos
de algum naturalismo clássico, mas com pequenos desvios
idiossincráticos, uma assinatura na linha nervosa que desenha. Há
desenhos mais “completos” do que outros, manchas mais negras num,
contornos mais leves noutro, apenas linha aqui, aguadas ali, e também
existem desenhos totalmente subsumidos ao (mínimo) programa
narrativo que se apresenta, e outros ainda que devem ser antes
entendidos de maneira simbólica, concatenando várias linhas de
informação e pesquisa. Tudo isto concorre então para a tal
articulação de direcções paradoxais que acabámos de aventar,
tornando Medeia, esta Medeia, num pequeno livro mais de
interrogação permanente do que de uma história fechada.
Nota
final: agradecimentos à autora, pelo envio do livro.
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