Depois de um mais ou menos
prolongado hiato da colecção, já para não falar da dificuldade de
a ver distribuída comercialmente pelos nossos pontos de venda, a
colecção Patte de Mouche tem dado sinais de continuidade, quer com
os autores perenes da casa, quer com novos artistas quer com amigos
que por lá passam. É precisamente o caso destes três livros (que
já têm cerca de um ano) de que queremos dar breve recado. (Mais)
A Patte de Mouche tem uma
presença física – 24 páginas, 10.5 x 15 cm – que convida desde
logo a “exercícios de estilo” nas quais confluam a concisão, a
concentração, assim como o gesto livre do desenho. Muitos dos
autores experimentam aqui ora lanços livres dos lápis e
instrumentos de expressão, ora um qualquer jogo que devem cumprir no
interior do espaço que lhes é reservado, ora então experimentam
apresentar de forma célere e nuclear uma ideia, que pode estar ou
não relacionada de forma directa com a matéria de expressão que
lhes é usual nas obras maiores.
Como já havíamos
mencionado noutras ocasiões, esta colecção foi extremamente
influente, tendo informado (literalmente, “dado forma”) toda uma
série de outras colecções de editoras independentes espalhadas na
Europa e mesmo além. Colocar lado a lado a Patte de Mouche à
Quadradinho, minitonto, O filme da minha vida, kus!, etc. demonstrará
não apenas uma escolha ditada por condições financeiras, as quais
ajudam na decisão da forma e pormenores de produção (impressão
apenas a preto, a uma outra cor, duas cores, quadricromia,
diferenciação significativa entre a gramagem da capa e do miolo,
presença de badana, e depois a questão do design), mas também numa
moldagem que conduza a decisões estéticas. Isto é, os autores
trabalham da composição das pranchas (afinal, reduzidas em
tamanho), o ritmo do folhear do livro, a cadência dos textos com as
imagens, etc., de acordo com o resultado formal.
Ao olhar uma selecção ao
acaso desta colecção, não podemos dizer de forma alguma que haja
uma preferência por utilizar uma imagem por página, ou legendas
epigramáticas acompanhando imagens intervaladas no tempo e acções,
etc. Pelo contrário, há uma diversidade tão significativa como em
qualquer outro formato ou abordagem. A questão da leitura formal,
porém, é que tem de conduzir a um aspecto que ilumine o projecto
global, e nesse sentido, aquilo que vemos é a tal ideia de
concentração, de rapidez, de exactidão. Empregamos termos de Italo
Calvino, pois é ele quem descreve, em Seis propostas, a ideia
de que mesmo considerando estas linhas descritivas como “critérios
exteriores”, elas são conducentes a “uma particular densidade”
quando feitas no interior de uma qualquer limitação, como é o caso
deste formatinho.
Labyrinthum.
Marc-Antoine Mathieu. Se bem que a personagem principal, e única,
deste livrinho , seja vista de costas, não pareça usar óculos nem
ter o cabelo negro, partilha quase todas as características físicas,
comportamentais e de vestuário com a personagem Julius Corentin
Acquefacques, da famosa série “clássica” do autor. E a
“filosofia” parece ser a mesma dessa série, ou mesmo da obra do
autor, como em 3 secondes: um pensamento metalinguístico e
recorrente e circular da própria matéria de expressão passível de
explorar na banda desenhada.
No caso presente, o
labirinto é composto pelos padrões supostamente criados pela
concatenação das páginas impressas de uma banda desenhada, os
sulcos dos espaços entre as vinhetas, e em várias escalas de
maneira a que se criem padrões infinitos de linhas rectilíneas mas
fractais. Mas este padrão não é superficial e bidimensional, mas
eleva-se num volume, e uma minúscula personagem escapa dos seus
fundos, subindo para o seu topo. A “câmara”, porém, aproxima-se
dele, para relevar que no seu interior, uma outra personagem se
eleva, e que a sombra lançada sobre ele pertence a uma outra pessoa
que é ele mesmo noutra escala, e por aí fora, abrindo-se a esse
conhecido efeito visual chamado “mise en abyme” ou “efeito
Droste”. Os textos, entretanto, pertencem a um narrador externo mas
que se mistura com as sensações e impressões da personagem, num
claro lavrar do discurso indirecto livre, com um efeito dramático e
emocional relativamente efectivo nesta espécie de mini-episódio da
“Twilight Zone”.
A página final, que
serviria de coda, tem o símbolo do infinito elevado ao quadrado,
que, das duas uma, ou pretende encetar um diálogo com questões da
física, ou surge como uma figura metafórica da possibilidade não
apenas do movimento infinito da personagem, encerrado no seu livro
(tal como o infinito se encontra encaixado nos parêntisis), como
também no convite à releitura incessante do mesmo, ainda que apenas
potencial, prometida, eventual.
Deste autor, também,
acaba de sair igualmente a reedição de La Mutation (de
2004), na qual se corrige uma única palavra (“pleinement” e não
“péniblement”), o que corrige também toda uma possibilidade de
interpretação moral da pele abandonada do seu pobre e desmemoriado
protagonista.
Cavalcade Surprise.
Jessica Abel, Matt Madden, e Lewis Trondheim. Se o livro anterior
é um pequeno prolongamento dos processos habituais do autor, aqui
não será muito diferente. Trondheim tem uns quantos Patte de Mouche
no currículo, Matt Madden não é alheio a formatos mínimos. nem a exercícios. Mas
onde em Mathieu o formalismo é conducente a um discurso
metalinguístico, estes três autores elevam as próprias
circunstâncias das suas vidas num qualquer jogo que leve à
expressão momentânea. Por ocasião de uma passagem de ano em
família, juntos - o casal norte-americano, que tem trabalhado junto
sobretudo no campo da educação, visitando a casa do autor francês
-, e sobretudo com os filhos dos primeiros brincando com os
brinquedos do segundo, os autores resolveram fazer algo de
extremamente simples. Todavia, algo de alegre e divertido, que nos leva a pensar que Trondheim encontra soluções de protecção do perigo que assola todos os "prisioneiros" de fórmulas e repetição típicas da banda desenhada (leia-se este livro para compreender)
Cada um dos autores
fizeram 7 desenhos, pequeníssimos retratos dos brinquedos espalhados
no chão: uma caixa de plástico com rodas com peças desconjuntas de
Lego, dinossauros de borracha para o banho, um camião betoneira, um
jogo de peças de madeira, um boneco de peluche, etc.
adicionaram-lhes legendas, cada autor num tom distinto: Trondheim usa
legendas emolduradas, na primeira pessoa e quase descrevendo
objectivamente as cenas que enquadram os brinquedos; Madden cria uma
espécie de ficção fantasiosa em que os brinquedos planeiam
escapar, sob as ordens de uma gata peluda, a “Rainha Hairkitty”;
e Abel escreve apenas frases soltas, palavras isoladas, como se se
tratassem de poemas mínimos, títulos, orações moleculares, que
“dão uma cor” especial aos objectos que as acompanham.
Os desenhos, de cada um –
é curioso que, sendo desenhos ligeiros e “soltos”, é sobretudo
pela caligrafia de cada um que os leitores poderão conseguir
identificar a autoria, ou por detalhes: o contorno grosso e limpo de
Abel, os efeitos de trama de Madden, a linha nervosa de Trondheim –
constituiriam uma perfeita série, senão mesmo ciclo, senão mesmo
uma narrativa. Mas de acordo com a nota inicial do volume, os
desenhos foram “juntos e ordenados”. Esta ordem, porém, nunca
segue uma mesma ordenação; simplesmente um mesmo autor não se
sucede a si mesmo, e procuram-se unidades dos três. As tais “linhas
narrativas” misturam-se, mas em vez de serem anuladas ou
interrompidas somente, acabam por se espelhar e reforçar de alguma
forma: a revolução dos brinquedos (Madden) parece irromper na
aparente acalmia doméstica (Trondheim), e certas personagens
partilham sensações ou impressões do que sucede (Abel). Dessa
maneira, uma frase de um autor parece ser um comentário à acção
desenhada por outro, ou associamos um mesmo objecto, brinquedo,
evento a outro, que o ilumina de forma diferente do que se estivesse
isolado. Dessa maneira, então, os autores parecem revelar parte da
magia inerente às estruturas mínimas desta forma de expressão,
chamemos-lhe banda desenhada ou outra coisa: por mais aleatório que
seja o acto de capturar um objecto em desenho, por mais ocasional que
seja a circunstância que leva a essa sessão de caça, por mais
displicente que seja a ideia que leve às palavras que lhes estão
associadas, e por mais improvável que sejam as “núpcias”entre
todos eles no momento de ordenação, estas últimas ocorrem de
facto. Com multiplicidade, polifonia, potencialidade.
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