7 de dezembro de 2022

Companheiros da Penumbra. Nunsky (Chili Com Carne)

As conquistas de cada autor a ele ou ela lhe pertencem. É muito natural que num país como o nosso, sub-desenvolvido e sub-educado em muitos aspectos, procuremos sempre considerar qualquer evento, projecto ou alcance que envolva um conterrâneo, sobretudo com os quais possamos ter qualquer tipo de afinidade, como tendo uma qualidade que possamos aproveitar como adjectivando a nossa própria existência. Por isso, diríamos que “X é um grande acrescento à banda desenhada portuguesa”, “Y é o melhor livro de Z”, ou pior, “Nós temos/somos R porque S fez X”... Serve isto como intróito para dizer que, se é possível, e fá-lo-emos, reintegrar a narrativa e o impacto emocional de Companheiros da penumbra numa experiência colectiva (já lá iremos a que identidades), as suas “conquistas” apelas ao autor, Nunsky, lhe pertencem. (Mais) 

Ainda assim, começaríamos por afirmar, paradoxal (positivo) ou contraditoriamente (negativo), que Companheiros da penumbra é um marco significativo da produção contemporânea de banda desenhada, sobretudo de um registo realista, e plenamente ancorado na realidade portuguesa – o que não implica menos potencialidade de espelhar outras experiências distintas. No panorama actual, em que a esmagadora maioria da produção roça sempre um qualquer campo do fantasioso, do género, ou até mesmo de fórmulas escapistas, muitas vezes até pouco buriladas e medíocres, um livro desta natureza sobressai sobremaneira. Não iria ao ponto de o o chamar “jornalístico”, “antropológico”, “documental”, mas há sem dúvida elementos desses registos presentes ao longo desta narrativa. Esse ancoramento está presente não apenas através dos muitos momentos de referencialidade, mas com a vivência da cidade do Porto e os movimentos espaciais, a magnífica escrita com diálogos vívidos, variados e verdadeiros, as personalidades acabadas das personagens, e até o cunho tão específico que Nunsky consegue criar com os rostos de tantas personagens/pessoas.


Acima de tudo, trata-se de uma narrativa sub-urbana. Esta última palavra não deve ser lida no seu sentido mais usual, referindo-se às zonas limítrofes das grandes cidades, mas antes ao cruzamento das paisagens urbanas e as sub-culturas jovens, num sentido sociológico cunhado por Dick Hebdige, compreendendo-a como um “conjunto imaginário de relações”, que envolve toda uma série de elementos, sendo os mais conspícuos a roupa, a música, a dança, linguagem específica, seja verbal, gestual ou de conhecimento, num modo de vida holístico, e que trai uma qualquer ideologia, quase sempre incosciente. No caso de Penumbra, falamos da cultura “gótica” (de goth rock, e não tardo-medieval, para os desprevenidos). Mas na verdade, poder-se-ia facilmente re-imaginar uma outra qualquer “tribo urbana”, como se costuma dizer, como dando o mote e, alteradas as parafernálias, sonoridades e alguma atitude ou outra específica, teríamos um mesmo coração. Convenhamos, se o equipamento e farpelas de bandas ska, punk hardcore, thrash metal, New Age, poderiam mudar, garanto que o consumo de charros e cerveja ficaria ela por ela. Estou consciente que certas vivências envolveriam realidades políticas distintas (factores económicos e de classes sociais, ruralidade vs. urbe, identidades étnicas, dimensões de migração, etc. significariam pressões distintas), mas no caso do livro de Nunsky essas questões não são abordadas de frente, mas implícitas.

E o mais significativo é que, segundo um modelo de consciência, a leitura empática desta narrativa levará a que o leitor terá memória de experiências similares e coerentes com aquelas que ocorrem ao longo destas páginas. Mesmo que não seja o mesmo preciso padrão, será a textura...


Logo à partida, este foco tão intenso na música fará recordar aos leitores de Nunsky o estalo que representou “88”, história que ocupou (e transformou) todo o número 13 do zine Mesinha de Cabeceira, de 1997. Daí as inevitáveis, recorrentes e inúmeras comparações a Love & Rockets (a bd, não a banda) dos Hernandez ou até a Charles Burns (talvez Black Hole, que começara a sua publicação em 1995, mas poderíamos considerar outros trabalhos desse autor), este último sobretudo pela questão estilística, de uma linha negra sólida, límpida, espessa para delinear os objectos em torno de brancos imaculados, criando contrastes e padrões texturados. Mas o autor português, sobretudo neste último livro, apreseta uma bem mais alargada linguagem artística. Considerando a noção da “narrativa urbana”, mesclada ou não com outras estratégias narrativas, acrescentaria a esse rol o L123 de Fernando Relvas (cujas páginas foram surgindo na Tintin em 1981), e Sangre de barrio de Jaime Martín (pequenas curtas iniciadas em 1989), não tanto pelos aspectos superficiais, mas pelo interesse na narrativa da experiência jovem urbana. Outros textos haveria a solicitar, sem dúvida, e se se pensasse no campo cinematográfico, era mato: The Lost Boys, em toda a sua gloriosa foleirada, poderá ser um distante eco). No entanto, uma das vantagens de Companheiros sobre todos esses modelos é que não se entrega a nenhum exercício facilitista com uma intriga melodramática, lamechas ou de crise central. Há um plot, sim, mas simples. Há uma história de amor, há um road movie, há um conflito entre amigos, há uma missão a cumprir, há mesmo uma morte. Mas pela sua fluidez e estranha calmia de execução, em que um episódio flui para o próximo, não tanto na cadeia aristotélica de causa e consequência, mas na inevitabilidade do tempo, o que sobressai é mais um ambiente, que recorda uma “fase”, imaginamos, da vida dos dois jovens protagonistas, Paulo “Nunsky” e Alex “Hipnos”. Com efeito, o autor opta muito menos por elementos dramáticos e conflitos reconhecíveis como tal, de uma maneira flagrante – por hipótese, um conlfito com os pais, uma decisão fulcral de vida, uma adição fatal, um crime espantoso –, do que uma espécie de testemunho, quase de mera afirmação, do sucedido nessa tal fase.

É discutível se estamos perante uma obra explicitamente autobiográfica. Se se considerar estritamente o pacto autobiográfico preconizado pelo seu grande teórico, Philippe Lejeune, poderíamos dizer que não encontramos a meio-gás a coincidência entre o nome/identidade do autor, narrador e protagonista. Mas ela tem lugar, deixando ainda assim espaço para uma possível negociação e desvio pela auto-ficção, ou as necessárias alterações textuais que possam evitar imbróglios legais ou de contenção. Mais, as informações paratextuais do pósfácio de Alex Nogueira dão a entender estarmos perante uma banda desenhada que espelha experiências próprias vividas pelo autor da banda desenhada e pelo autor do pósfácil, de facto. As restantes personagens serão seguramente personagens reconhecíveis pelos participantes, quer no texto quer na vida real, de modo mais ou menos próximo, mas essa dimensão de roman à clef é muito menos importante do que aquela reacção de consciência e reconhecimento aventada acima.


Dito o que dissemos sobre a estrutura linear a abordagem mais realista, não quer dizer porém que não haja diferenciações. Há espaço para analepses e prolepses rápidas, por vezes com efeitos cómicos (como o episódio do Sr. Pinto a esquecer-se da sua promessa), assim como a metáforas visuais, compósitos ue tornam uma noite numa experiência memorável mais do que uma organização de passos (a página 135 é prova disso [aqui ao lado]), sonhos, imaginações e até à visualização de um projecto fílmico do duo, que sublima todo este imaginário vivido num conto em que o fantástico e o macabro ganham finalmente corpo. O trabalho é também admirável a nível do desenho e artes-finais, e é quase necessário que haja uma grande diversidade de abordagens e soluções gráficas. Existem momentos em que penso em John Ridgway, pelo uso de tramas e grande pormenorização dos rostos, mas há outros, usualmente de momentos de alegria, em que encontro maiores afinidades com a estilização mais simplificada de uma Carla Speed McNeill, e sombras de David Lloyd estão sempre presentes. Mas depois temos o sonho de Lord Demetrius Aldebaran, que se expressa numa belíssima prestação de gravura ilográfica vitoriana, com vários matizes e finuras de linhas capazes de mostrar quer objectos sólidos e diáfanas redes de luz.

No fundo, algo de absolutamente apropriado para um livro que recupera uma cultura que, negando toda uma normalidade de consensos culturais e políticos podres, não deixa de sublinahr uma crença romântica na entrega dos seus cultores às emoções e elos de amizade. De factualmente estão no passado, são cimento da personalidade actual. Este livro é, assim, e assim o espero, um grande espelho de muitos dos seus desejados leitores.

Nota final: algumas das ideias debatidas acima foram alvo de debate no programa 3 Graus de Carequice, com Gabriel Martins e André Oliveira, e a autoria de muitos dos pensamentos deve ser com eles repartida. Agradecimentos à editora pela disponibilização das imagens do interior.

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