21 de janeiro de 2023

Ex-Votos para o século XXI. Miguel Carneiro (Matrijarsija)

O termo “ex-voto” é a versão coloquial, objectificada, de uma expressão latina mais longa: ex voto suscepto, “em busca de um voto”. Esta última palavra descende de votum, que pode ser interpretada como “aquilo que é prometido”, usualmente a uma figura divina, em benesse de algo que se procura adquirir, ou como gratulação de algo já alcançado. É portanto um movimento paradoxal, centrífugo e centrípeto, de dar e receber, para fora e para dentro, estabelecendo um elo, uma liga, uma ligação (uma religião) entre aquele que pede e a entidade a quem é pedido. Acto solene, mescla dádiva e desejo. Se num momento poderia estar associado a um acto verbal – ode, dedicação, prece, canto –, estes votos ganhariam corpo material sob as mais diversas formas em objectos tornados ex-votos. Estes não têm necessariamente que surgir ou “nascer” como tal, podendo ser capturados do mundo ordinário e transformados, ou ressignificados, através da dedicação e/ou sacrifício dele mesmo à divindade em questão. Existem, todavia, objectos materiais criados como tal. 
Estas práticas existem em muitas religiões por todo o mundo, e em vários momentos históricos, não sendo de forma alguma um exclusivo da Cristandade, independentemente do nome que empregamos. É um acto antropológico multifacetado e complexo. Mas importa compreender que se trata de um objecto materialmente existente – um círio, uma pintura, um “milagre”, um registo, uma medalhinha, uma placa ou tábua, ou até um objecto mundano que, consagrado, se transpõe desse mundo mortal para um outro palco.

A mais recente publicação de Miguel Carneiro, numa edição limitada a 100 exemplares, quer entrar numa linha de desenvolvimento da produção de imagens que se associa a essas mesmas práticas religiosas, ainda que num contexto secular, mas não por isso menos crente. Os trabalhos que subjazem esta publicação são uma série de pinturas que Miguel Carneiro havia desenvolvido entre 2019 e 2022, tendo sido apresentadas no espaço Verão, em Lisboa em 2021, e depois no Mira, no Porto, em 2022. O artista explica que estes trabalhos são um “reenquadramento da tradição dos ex-votos no século XXI”, expondo “quais as maleitas de que sofremos e quais as entidades a que pedimos por intervenção” (comunicação pessoal). Mas o objecto em si, este fino caderno, é fruto de uma colaboração entre a Oficina Arara e o colectivo Matrijarsija, de Belgrado, na esteira de muitas visitas, residências artísticas, colaborações, remixes e combates que esse colectivo de impressão, sobretudo serigráfico, do Porto, tem vindo a cumprir ao longo dos anos. A publicação em si é em risografia que, como sabem, mima em parte alguma da preparação de uma serigrafia, por planos separados de cor, procurando depois as suas combinações na impressão. A combinação foi de entre 4 a 3 cores, criando efeitos cromáticos bem distintos. A costumeira – ainda que controlável – falha de registos (isto é, do acerto entre os planos, o estar “dentro das linhas”) resultante, neste caso, cria uma espécie de acréscimo luminoso, de pátina de distância das imagens, legível menos como deficiência de impressão do que hipótese de citação histórica do substrato imagético a que Carneiro procura responder. A pintura votiva em madeira, portuguesa ou de outras paragens, alguma pintura de cariz religioso-decorativo com funções soteriológicas, miniaturas, etc. encontrar-se-ão como substrato deste trabalho.

Pode acrescentar-se ainda que, em parte, esta prática de pintura de Carneiro (cuja formação é precisamente dessa área disciplinar, e uma fase imediatamente pós-universitária parecia colocá-lo no caminho certeiro da mais usual “carreira das artes visuais) é influenciada ou pelo menos informada por um interesse, já várias vezes levado à prática em colaborações, trabalhos editoriais, visitas, diálogos e lavra própria, com aquelas artes de “artistas sem formação” e que são conhecidas por nomenclaturas problemáticas. Com efeito, a utilização de termos tais quais “outsider art”, “art brut”, ou outras tentativas equivalentes têm tão-somente um papel: o de policiar, a um só tempo, a inscrição dessas produções num relato regido pelas elites do que se constitui ou não enquanto “arte”, “arte maior”, e consequentemente toda a dimensão social que lhe está associada (escrita, recepção crítica, circulação social, monetização, cachet cultural, integração em colecções, etc.) e, por outro lado, a potencialidade do seu significado. As mais das vezes, “outsider” acaba por servir como um sinónimo flexível de “alienado”, “louco”, etc., providenciando uma clara chave de interpretação da obra. Uma espécie de circuito fechado, “x pinta assim porque é louco” ou “x é louco, por isso pinta assim”. Desta forma, quaisquer das escolhas formais, por exemplo, sejam as estratégias de figuração, composição, ocupação do espaço de representação, aproveitamento de material, abordagens cromáticas, etc., são domesticadas nessa nota explicativa, excluindo-as de outras abordagens mais atentas à potencialidade do artista individual. Não pertencem à História da Arte, ou se sim apenas a título marginal, passando a estar numa outra faixa social e discursiva.

Próximo do interesse de Miguel Carneiro estará então toda uma história da pintura votiva popular portuguesa. Como saberão alguns leitores atentos deste espaço, o artista teve uma travessia pelo mundo da banda desenhada ao longo dos anos 2000, enquanto cara-metade, com Marco Mendes, do duo A Mula, e todas as suas publicações, onde nasceu e viveu largos anos a figura do Monsieur Pignon, alter-ego do autor, seguramente, e figura de uma complexidade actancial que misturava a poesia ao arroto, a crua e crítica observação do mundo em seu torno e um desinteresse irritado. Como discutimos em Visualizing Small Traumas, Carneiro emprega “formas baixas” da criação de imagens – os grafitos, as piadas boçais, os trocadilhos ordinários, a figuração bruta, certos clichés gráficos, etc. - para “espelhar a problemática de uma autoridade difusa”. Daí que não haja propriamente “alvos” directos na sua produção, surgindo representados de forma oblíqua por figuras de autoridade genéricas e decalcadas de usos populares (o “Capitalista”, o “Industrial”, o “Militar”, o “Diabo”, etc.). O autor não está interessado numa mais tradicional perspectiva histórica para a construção da sua desmontagem social e política; prefere uma fragmentação da territorialidade para poder lançar mão de várias tradições, mesmo se vistas como contraditórias, para endereçar-se a um plano mais abrangente.

Essas características manter-se-iam em larga medida na prática de pintura, desenho e gravura do artista no período seguinte, quando funda a Oficina Arara, cujos 12 anos foram celebrados num monumental livro que lhe tenta arregimentar a história (Arara X + II). Há toda uma produção que demonstra, a um só tempo, uma dedicação às coisas do mundo, uma genuína preocupação e manifestação de querer intervir, e uma fúria perante a contumácia na mais profunda estupidez humana. Essa tendência repete-se em Ex-Votos, se bem que com roupagens bem distintas.

Uma outra informação extra-textual importante é que, se para Carneiro o uso de títulos é importante, e informa a imagem em si, para esta publicação recorreu-se de mais uma recombinação. Os títulos são das pinturas originais, mas foram baralhados, e passaram a presidir uma outra imagem, permitindo assim um grau de absurdo, quer a montante, como se as legendas afinal não tivessem verdadeiramente um sentido lógico, necessário, genuíno, e pudessem ser vistos como apenas orações soltas e formulaicas, quer a jusante, abrindo todas as possibilidades de ressignificações e aberturas. Portanto, em parte, isto permitirá reler estas figuras, ou lê-las pela primeira vez de uma forma livre em relação a esses contextos anteriores. Mesmo que seja uma ficção olhar para esta publicação de forma desirmanada a essas práticas anteriores.

O livro apresenta – excluindo somente o verso da capa e contra-capa, ocupadas por uma frase oracular (“Comeram-me a carne, agora que me roam os ossos”, e os dentes são ossos, veremos que importância isso tem no fim) - 13 imagens. Número significativo. Dessas 13, incluindo a capa, 9 são compostas por quadros cujo terço inferior é ocupado por uma inscrição ou legenda. Apesar do que foi aventado acima, da recombinação ao acaso, essa matéria verbal continuará a manter um poder explicativo, não somente pela sua contiguidade física, mas por partilharem qualidades materiais (ilusórias se referindo-nos aos quadros originais, factual se pensando na impressão presente) e por cumprirem aquelas funções previstas por Roland Barthes, a ancrage (ajudam no foco perante o fluxo infinito de significados da imagem) e o relais (providenciando uma informação adicional que permite avançar uma noção de diegese, storia, narrativa). A articulação entre texto e imagem existe, e fará parte do (novo) programa de significado. Parte dessas legendas estabelecem trocadilhos, ora com expressões portuguesas consabidas (“devagar se vai ao longe” torna-se “de bagaço se vai ao longe”) ora com fontes mais eruditas (a “nau dos loucos” de Sebastian Brant torna-se “A nau dos poucos”). Outras apresentam marcas de temporalidade ou deícticos que as tornam desarticuladas de circunstâncias, permitindo um seu uso perpétuo (“Talvez amanhã”, “Quem vier atrás que bata a porta”).

Muitas das imagens mostram figuras advindas do reino animal, como aranhas, serpentes, escorpiões, morcegos, criando uma fauna particularmente simbólica, ou pelo menos capaz de despertar uma série de associações que torna clara a natureza tétrica do projecto. Não se adivinha um século XXI de conquistas de fortuna social e económica, do mito do “progresso”, mas antes pelo contrário algo sombrio e sem escapatória. Obliquamente, recorda um dictum de Walter Benjamin: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”. E como veremos, uma das possíveis interpretações deste livrinho é a da história de uma catábase do seu protagonista (já sem carne, é toda a operação de lhe roerem os ossos, neste pequeno inferno de papel e cores).

Há uma atitude importante. Ainda que haja um “estilo” reconhecível no autor, há também uma apropriação de certos modos de inscrição da imagem, como a absoluta centralidade das figuras, a sua hierática presença frontal ou de perfil, a simplicidade dos fundos, o burilar maneirista das letras. Mas não se trata de forma alguma de uma apropriação irónica que tendesse a uma diminuição das suas fontes popularizantes. Mesmo os pormenores das figuras, que poderão remeter para uma espécie de imaginário intemporal (nunca o seria, mas são aquelas fições da Mitteleuropa que criam essa ilusão) abrem a essa interpretação: os trajes das personagens “vivas”, o uso de chapéus pelos homens, de coco para a plebe, a cartola para o capitalista, a presença dos fantasmas de Hitler e Mussolini na nau, os mafarricos e a morte de gadanha... Mas bem pelo contrário, é um empoderamento dessas mesmas formas nos novos propósitos previstos pelo artista contemporâneo, que parece relançar os princípios da Dance Macabre (mas também algunas princípios da caricatura política do modernismo, gravuras da América Latina, e outras fontes) para os nossos tempos. Sarcástica, esta prática, é-o. Mas os códigos empregues são revitalizados.

Se insistimos numa natureza narrativa do livro, não é por uma espécie de incapacidade em nos vermos livres dessa categoria na apreciação das pinturas individuais, mesmo que transformadas (e daí...). Nem queremos indicar que a existência de uma forma como a do códice traz inerentemente uma organização férrea e inescapável. Trata-se mesmo de uma atenção à maneira como cada uma das páginas se articula numa putativa ordem interpretada como tal. Repare-se que a primeira imagem (após a capa) se apresenta como uma porta semi-aberta, convidativa, a um espaço obscuro. Recebendo-nos, enrolada na porta, estende-se uma serpente branca, cega, de língua bífida estendida. Não começa a história humana precisamente com um convite de uma figura semelhante? Segue-se uma outra imagem com outra porta semi-aberta, de onde espreita um esqueleto, declarando a legenda que “começa” uma nova semana, prometendo algo positivo. Mas desenganamo-nos logo a seguir, onde se torna patente que essa esperança “talvez amanhã”... e a primeira figura humana surge sangrando dos olhos, carregando uma cruz onde se eleva um diabo, e a morte a fustiga com um chicote. Dos bolsos, cai toda a fortuna arrecadada. Depois seguem-se imagens que poderíamos entender como as de potenciais “pecados”, excessos, de álcool e jogo, de escravaturas e guerras, pois, mais uma vez textualmente confesso, “O mal nunca vem só”. Por último, fica aquele que bate à porta, sem a fechar, já que a última imagem no interior do livro é um escadório que se descerá (reforçando a ideia de catábase), junto a uma árvore (de novo, do Paraíso de onde se foi expulso?), atrás da qual se esconde a Morte, sorridente. E este sorriso, aliado a todos os outros presentes nas caveiras do livro, é fundamental para entender o cerne do humor de Miguel Carneiro.

A contracapa apresenta um fantasma moderno (após a descida e encontro com a Morte derradeira, finalmente?), lençol derretendo-se nas marcas da pintura, oferecendo um cálice de vinho a quem o vê. Esta figura recorda-me também o seu reemprego, talvez irónico, talvez melancólico, mais provável ambos, de A Ghost Story, de David Lowery (2017), uma comédia existencialista que tem afinidades com a melancolia permanente de Carneiro. Esse filme, e este livro (e outras obras) de Carneiro mostram como o ininterrupto e incapturável fluxo histórico pode, ainda assim, ganhar um breve corpo num objecto poético. E não haverá maior objecto poético paradoxal do que a caveira, como professado por Walter Benjamin num anexim de Rua de Sentido Único: “linguagem incomparável da caveira [no original alemão, Totenkopfes, “cabeça da Morte”]: completa inexpressividade – o negro da cova dos olhos – unida à mais selvagem das expressões – o sorriso da fiada de dentes”.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação.

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