29 de janeiro de 2024

Almada no fio do tempo. Carlos Guerreiro, Mariana Matos e Tiago Albuquerque. (Câmara Municipal de Almada)

Este é um objecto ambíguo. Por um lado, é um livro que pretende apresentar-se como um retrato dos cinquenta anos desde que Almada se tornou cidade. É dessa forma que o projecto emerge, do ponto de vista editorial, político e financeiro, no seio dessas mesmas comemorações. Por outro, por graça dos seus autores, a sua matéria tece-se como uma ficção em torno de um par de personagens, e tenta criar uma intriga misteriosa, fantástica até, que se vai intercalando com momentos conhecidos, importantes ou marcantes desses mesmos 50 anos.

De uma forma sucinta, o livro centra-se na vida de um jovem rapaz, Pedro, que nasce em 1973 e vai vivendo em Almada até aos anos 1989, o momento mais avançado na diegese do livro. Dessa forma, imaginamos, estará próximo da vivência empírica do argumentista deste livro, Carlos Guerreiro. Mas Pedro tem um elo com o seu tio Vasco, relojoeiro, que a dado momento da sua vida desapareceu, coincidindo quase com o fecho e desmantelamento do famoso farol de Almada, posteriormente recolocado na ilha Terceira. Esse elo traduz-se através do tropo do “objecto mágico”, no caso, um gnómon, que é mapa, pista e chave do tal “mistério”, e este revela-se ser uma “máquina no tempo”.

Acompanhando a vida de Pedro, dos seus pais, do tio, permite-nos uma visão atomizada, não-centralizada, destas personagens. Mais, uma vez que temos acesso a outros momentos da história de Almada, como a inauguração do farol em 1886, ou o golpe de 1931 do reviralhismo (não indicado de forma explícita), o narrador assume-se totalmente como omnisiente, permitindo-lhe articular uma navegação temporal em contínuo vaivém, mas infelizmente nem sempre de forma consentânea. Há como que uma lista de tópicos necessários de “citar” (como se pode entender pelo blurb do livro), os quais todavia não se tecem numa organicidade interna, precisa e necessária. Por outras palavras, acaba por não se criar uma narrativa coerente e satisfatória em que se “resolva” o fio indicado, nem o do tempo nem o da intriga. Mais, o fecho do livro aponta a uma putativa continuação “fora” do livro, mas não assegurada e que, em relação ao livro que se acaba de ler, diminuindo ainda mais a tal satisfação da intriga.

Pouco menos de metade do livro (com umas 40 e poucas páginas) é ocupada pela vida de Pedro, na sua infância, adolescência, primeira idade adulta, e inclusive um nível onírico (ou de “visões”, que contribui para o adensamento da intriga mágica). Isso permite criar pequenos quadros de revivências, memórias que poderemos partilhar enquanto leitores da mesma geração, quiçá mesmo com experiência directa das mesmas esferas de eventos, pormenores, objectos, locais e comportamentos. Aí, mais uma vez, roça muitas das “novelas suburbanas” que tanto apreciamos. Mas parece-nos que este é um problema na natureza deste livro. Recordemo-nos de como discutimos Vale dos Vencidos como sendo um livro “de tese”, em que a dimensão romanceada era muito pouco importante, e mais valia descortiná-lo como uma sucessão de quadros diversos que vão contribuindo para um mesmo assunto central. Estamos em crer que Almada almejaria fazer o mesmo, criando uma “colagem” com os vários momentos importantes da vida da cidade, mas como persegue ao mesmo tempo um desejo narrativo, e tão concentrado na intriga central, que acaba por não se resolver, cria uma confusão dessa mesma natureza, e não se coalesce na sua identidade.

A prestação gráfica do livro é muito curiosa. Com desenhos esboçados por Mariana Matos, uma nova artista com que nos cruzámos em contexto escolar, com quem já colaborámos e voltaremos a colaborar, e depois burilados por Tiago Albuquerque, cujo “regresso” à banda desenhada saudamos, o resultado final parece um casamento final entre a figuração de um Al Hirschfeld, a bd dos anos 1980 de um Max ou Jaime Martin, ou a bruteza do claro-escuro de um Keko, pelo uso “achatado” das sombras, um contraste não-natural das linhas e fundo, numa estilização marcante, e dentro um de trabalho de composição de páginas suficientemente variado para criar dinâmicas distintas. O grau de sofisticação flutua, de momento para momento, mas parece-nos adequado às flutuações já discutidas da narrativa.

O livro tem ainda, infelizmente, alguns pequenos problemas igualmente de gralhas e anacolutos, que mancha, de resto, um texto muito atento aos diálogos reais, vivos, quase gravados na memória e experiência de muitos de nós.

Nota final: agradecimentos a CMA, pela oferta do livro.

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