28 de janeiro de 2024

Partir a loiça (toda). Luís Barreto (Chili Com Carne)

Começo por indicar que recebi um exemplar deste zine uma vez que fiz parte do júri do concurso “Toma lá 500 paus e faz uma B.D.”, enquanto sócio da Tinta nos Nervos, “bolsa” promovida pela editora, e de que o autor foi o vencedor. Durante o processo, foram esgrimidos argumentos sobre as obras concorrentes, e um dos pontos que compreendi desde logo é que este projecto era a “cara” do catálogo da Chili, ainda que compreenda a diversidade editorial ofertada por esta plataforma (mesmo que alguns agentes mais distraídos insistam que se trata da “mesma coisa”. É falso.).

Essa “cara” traduz-se aqui por uma atenção particular para com a realidade urbana portuguesa, real, ancorada, e jamais transfigurada em fantasias ou denominadores comuns que tentam domesticar a imagem da(s) cidade(s) e das gentes de uma forma fácil de consumir, vulgo “postal”. É algo que tem a imediaticidade da escrita diarística, apesar das suas roupagens representacionais, uma recordação de algo ainda quente na experiência, traduzido de forma simples, célere, e, pasme-se, divertida. Se não é um “espelho da sociedade contemporânea”, é um suficiente retrovisor e, como tal, talvez sirva para não sermos ultrapassados.

Tendo iniciado a sua vida no zine Danny & Arby, mais tarde compilados pela CCC em Lúcidos, Sãos e Determinados, este pequeno volume de 40 páginas dá continuidade às aventuras das suas personagens, que podemos eventualmente acreditar tratar-se de avatares do próprio autor e seus companheiros (“da penumbra”, apetece acrescentar). Um pouco como o trabalho de Joe Matt, Chester Brow e companhia nos anos 1990, ou mais recentemente as transfigurações assumidas por Simon Hanselmann e a sua troupe de desgraçados. Aliás, visual e estilisticamente, está mais próximo desta última referência. Como escrevi na altura das decisões, isto parece-me “Regular Show smokes dope”.


Arby, Buddy, Danny, etc. apanham o comboio para a zona dos bares e clubes (presumo que possa ser lido como uma deslocação de um subúrbio qualquer para uma cidade qualquer, seja Lisboa, Porto ou Braga, mesmo que haja modelos muito precisos e que, confesso, falhe em identificar; neste aspecto, percebemos as afinidades com Nunsky e Smith Vargas). Vão ver uma noite de concertos ao vivo, de várias bandas (posso falar de “hardcore” como género e não complicar?), de que são ora amigos ou membros. Para sorte nossa, o zine tem um CD com duas faixas por cada uma das três bandas que toca nessa noite, podendo mesmo ler as letras e ouvi-las na sua gloriosa fúria sonora. E os Tinnitrus são uma espécie de “wetdream” conceptual para mim. Fuma-se, bebe-se, flirta-se, dizem-se tantas bacoradas como coisas mais sérias, sempre nas roupagens de uma linguagem descomplexada, viva e verdadeira, mesmo que não seja aquela que cultivemos (a.k.a., velhadas a escutar os putos).


Há relativamente pouco tempo, discuti a questão do meu próprio
Cthulhu Sadino ter apenas umas poucas deenas de páginas e alguém mencionar que “poderia ser mais”. Mas o que quer isso dizer, “ser mais”? Mais páginas? Para quê? Se um autor tem uma narrativa ou significado burilado, deve transmitila na melhor forma que lhe for adequada, e ser-se concentrado, directo e curto pode ser mais eficaz e impactante, do que encher com “palha” durante páginas, só para aumentar a sensação de que se está num território mais digno (a “novela gráfica” ou o “álbum”). Este formato é ideal. A partir do momento em que se liga, é sempre a abrir.

Há uma vivacidade nos desenhos de Barreto tipicamente zinescos, tão verdes como com pêlo na venta. Fúria da esferográfica. Papéis baratos que podem ser páginas de bd ou filtros manhosos para charros partilhados. Compreendi todas as referências? Nem por sombras. Mas a energia que nos passa a espinha quando ouvimos as baquetes a marcar o tempo antes da explosão de um tema punk é uma expectativa que atravessa este zine.

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