5 de maio de 2024

Kogarashi Monjirou, O prenúncio do Inverno e A lenda de Musashi . Goseki Kojima e Mamoru Sasaki, e Saho Sasazawa (Pipoca & Nanquim)


É um prazer incrível termos hoje acesso a muito mais frentes de oferta da banda desenhada global. Seria interessante fazer uma arqueologia das estratégias que os leitores faziam para procurar textos internacionais ao longo das décadas, e tentar compreender em que medida essas mesmas práticas informaram a formação do gosto e conhecimento. Como pertencente à geração que apenas ganhou autonomia dessa procura na década de 1980, quero acreditar que o maior esforço terá criado instrumentos de atenção distintos daqueles que a cultura pós-web permitiu, mas ao mesmo tempo quero acreditar que é motivo de celebração a proliferação de agentes editoriais e a circulação mais oleada do comércio global, mesmo com os aspectos menos felizes. No que diz respeito à mangá, é magnífico que possamos virar-nos para editoras brasileiras que nos dão acesso a livros que, de outro modo, não estariam disponíveis em outro idioma “acessível” (partindo da ideia que o japonês não é comum entre a maior parte dos leitores portugueses). Estes dois volumes, da mesma colecção de que os livros de Hiroshi Hirata de que falámos (e de que, entretanto, um volume foi publicado em Portugal pel'A Seita), apresentam-nos um dos maiores mestres da banda desenhada de samurais, Goseki Kojima.

Recordemo-nos de que Kojima teve um impacto global importantíssimo pois a sua série, de vinte e oito volumes, Lone Wolf & Cub, foi a segunda série longa de mangá traduzida para inglês (depois de Barefoot Gen), na segunda metade dos anos 1980, pela First Publications, e memoráveis capas de Frank Miller (o qual tinha aprendido precisamente a nutrir um estilo e temas com essa série, que “via sem ler” nas versões originais, desembocando quer nas páginas de Daredevil quer, sobretudo, no magnífico Ronin, de 1983). Essa série é anterior aos materiais destes dois volumes, pois tinha sido começada a publicar em 1970 na Manga Action, uma das primeiras publicações semanais dedicadas a jovens adultos (seinen), e em colaboração com o grande mestre escritor Kazuo Koike. Monjirou começaria em 1972, salvo erro, e Musashi em 1984.

Kogarashi Monjirou, o prenúncio do inverno é um livro que adapta quatro contos literários. As novelas de Saho Sasazawa, seu autor original, é uma espécie de portento prolífico da literatura popular (thrillers, policiais e novelas de samurais), que se inscreve numa tradição literária com alguma história, e que apenas conhecemos em segunda mão. Tal como sucedeu nos Estados Unidos com a figura dos cowboys, ou pistoleiros, também o Japão mitificou a sua própria história com as figuras dos samurais e ninjas, transformando os seus papéis sociais específicos e historicizados social e politicamente em “heróis” transfigurados por compreensões populares e distorcidas. Isso teve lugar sobretudo na década de 1910 com escritores de uma influência maximal como Mori Ogai. Nos anos 1960 e 1970, essa literatura teria outras inflexões, sobretudo informadas por políticas de esquerda e resistência a uma sociedade cada vez mais conformada com o capitalismo, a proliferação da energia nuclear e a clientelização sob o domínio hegemónico dos Estados Unidos. Façamos aqui um pequeno desvio, mas que é importante.


Beberemos aqui sobretudo de um ensaio-charneira de Ryan Holmberg, “Rearmed and dismembered: the samurai in post-war visual culture”, em que se delineia um panorama da história dos géneros da mangá envolvendo samurais. Um outro ensaio mais recente ajuda a pequenas inflexões: “Avant-Ninja” (de 2023), que explica como a mangá envolve essa outra figura advinda do encontro entre a realidade histórica e a sua transfiguração secular pela fantasia literária, teatral e, mais tarde, cinematográfica e de mangá. Estes instrumentos críticos ajudam-nos a compreender as mais profundas transformações e as subtilezas dos empregos sociais e políticos destas figuras de samurais, ronins, ninjas, etc., o que nos ajuda a separar a história da ficção, a realidade da fantasia, e depois a distinguir os textos em si, em vez de considerar toda a banda desenhada de espadachins como tendo o mesmo peso ou papel. Por outras palavras, não, não é “tudo a mesma coisa”.


Holmberg convence-nos que é quase uma responsabilidade única de Sanpei Shirato a emergência de uma “mangá historiográfica de relevo político com uma natureza de maior sensibilidade e sistematicidade”. Mais, o historiador sublinha como esse artista “modeled and popularized an explicitly political avant-ninja, one drawing on the avant-gardism of modern political movements on the Left to reimagine the ninja fias a frontline fighter and underground agent in service of working class and marginalized peoples rather than their overlords, and one who knew how to talk revolution.” Mas qual a razão para centramos a atenção em Shirato, autor de A Lenda de Kamui (a que os leitores dos anos 80 tiveram acesso numa versão resumida pelo Brasil, e em breve a Drawn & Quarterly publicará na versão original, com 10 volumes)? A resposta está no facto de que Goseki Kojima foi, aparentemente, assistente ou até artista-fantasma para essa outra famosa série. Já nos anos 1960 havia criado mangá de samurais, ainda que com uma inflexão particular para géneros menos comuns, mesmo na época, trabalhando para revistas dirigidas antes a um público feminino. Mas com Shirato, ainda no início da carreira, ambos trabalhavam para a indústria da dita “mangá de aluguer”, ou kashihon, onde nasceu o género da gekigá, abordado neste espaço em várias ocasiões. Na Garo, publicada e editada por Shirato, haveria um avanço de atenção e sucesso comercial, que depois ainda mais se cimentaria com os seus títulos mais famosos.


Regressemos às personagens. Sasazawa virou-se para as novelas ditas jidaigeki (“romance de época”) ou jidaimono, mas em vez de se tratarem de romances de grande escala, épicos, estes centravam-se em figuras mais marginais da sociedade, em eventos contidos, mais especificamente matatabi, dedicada a personagens de classes mais pobres, “andarilhos” como se auto-intitulam na tradução brasileira. Com efeito, apesar de, em rigor técnico, Monjirou não pertencer à classe samurai (e, portanto, não é um ronin), mas sim à dos toseinin (uma classe de pessoas sem residência fixa, que poderiam assumir quaisquer empregos baixos onde fossem, e usualmente associados à ideia de baixa reputação, crime, ilegitimidade, enfim, “sem futuro”), ele mergulha em toda a cultura do bushido (que é, acima de tudo, uma construção cultural mais tardia e retrospectiva muito distorcida, também chamada de “bullshido”); não há dúvida então de que estas histórias, independentemente da sua vertente política, estará sempre a sublinhar valores tais como os da coragem, dever e lealdade – no caso presente não perante um senhor, mas uma ideia de “justiça”.


As novelas de Sasazawa foram publicadas serialmente numa publicação mensal, Shousetsu Gendai. O académico de literatura japonesa Roy Starrs fala de “narrativas nacionais numa escala íntima”, e tem sido isso o que temos admirado, muitas vezes, nas mangás destes géneros. Na banda desenhada surgiram muito cedo, sobretudo para os mais jovens, que teve samurais como protagonistas desde os anos 1920, por autores tais como Miyao Shigeo, Tagawa Suiho e o discípulo deste, Sugira Shigeru, cujo Ninja Sarutobi Sasuke será publicado este Verão pela New York Review Books numa tradução do próprio Holmberg. Naturalmente, a influência desta literatura no cinema e na televisão (e houve muitas presenças de Monjirou no écrã) é indelével. Pode mesmo dizer-se que se lhe deve a emergência do género chanbara (“filmes de espadas”).


A influência dos westerns norte-americanos é por demais clara, na sua estrutura episódica. Estas figuras estóicas, lacónicas e soturnas são conhecidas de vários meios e linguagens, como as várias figuras de Clint Eastwood (e antes deste, Toshiro Mifune). “Kogarashi”, é-nos explicado, é a alcunha que atribuem ao protagonista, pelo som que parece assobiar da boca entreaberta (criando, em kanji, a ideia do “vento que anuncia o inverno”), e os leitores criarão os elos com “l'uomo senza nome”. Abrimos cada história num local diferenciado, onde se estabelecem relações entre personagens, um evento central, uma potencialidade de crise, e com a entrada de Monjirou na cena, desencadeiam-se as acções dramáticas e violentas, sendo ele o “herói” que repõe a justiça. Todavia, em contraste com alguns dos textos mais famosos dos E.U.A., em que o “final feliz” está quase sempre garantido, o grau de violência, tragédia, inevitabilidade de morte, até mesmo um sentido fatídico, senão niilista, está mais presente nestas histórias. E depois do “caso” estar resolvido, eis que o protagonista, de novo lançando-se na sua vagamundice, parte para o próximo horizonte... Neste sentido, há claramente uma afinidade com as outras personagens criadas pelo próprio Kojima, assim como outras figuras quejandas, como Zaitochi, Musashi Miyamoto, ou outros samurais, ronin ou guerreadores solitários. Considerar estes dois livros à luz do que se leu com os volumes, da mesma editora, de Hiroshi Hirata, encontrará tensões narrativas distintas, uma vez que alguns dos títulos desse outro autor são mais abrangentes (Satsuma Gishiden) e outros mais episódicos (O preço de desonra).


Faz sentido sublinharmos aqui o espadachim Musashi Miyamoto, que foi uma figura histórica, autor de uma obra influente na “literatura de guerra” com O Livro dos Cinco Anéis (publicado em português em várias versões), e alvo de um serial de jornal por Eiji Yoshikawa, precisamente um desses autores que recuperava a história e os clássicos da literatura japonesa, e asiática em geral, para reformular a literatura (ficcional) historiográfica, nos anos 1930. Muitos leitores de mangá reconhecerão esse nome como a figura central da espectacular série Vagabond, de Takehiko Inoue, baseada no romance de Yoshikawa. Sasazawa também escreveria uma versão da vida dessa figura. Mas o mais importante é que o segundo livro que trazemos aqui é precisamente sobre Musashi.


Escrito pelo argumentista Mamoru Sasaki, que trabalhou em séries televisivas tokusatsu e até na Heidi (da nossa memória de infância), este volume reúne oito capítulos, cada um com um título simbólico-temático (“voo”, “afiar”, “poesia”, “céu”, etc.) que reflecte como que o âmago emocional do que o protagonista atravessa. Ainda assim, podemos, de novo, ler cada uma dessas partes de forma autónoma como um episódio individualizado, uma pequena aventura “da semana” que sublinha o carácter de serialização, nos meados dos anos 1980, na revista semanal Manga Action, a mesma onde fora publicada Lone Wolf. Todavia, a missão de Musashi não é tanto a de repor justiça, trazer a felicidade a um grupo de aldeões, ou corrigir problemas, mas o de banhar a sua lâmina com o sangue de quem o enfrentar, de maneira a ser considerado como “a melhor espada do mundo”. Portanto, está menos presente aqui um sentido de rectidão do que o frisson da violência e os combates espectaculares permitidos pelas técnicas das espadas duplas. Todavia, à medida que os capítulos, e o tempo e maturidade de Musashi, avançam, procuram-se outros ritmos e preocupações. O livro, afinal, centra-se no ocaso da vida desse espadachim, e tenta compreender como é que esse guerreiro destemido se transformaria no tranquilo monge budista e autor do tratado que lhe deu fama.


As primeiras histórias centram-se em duelos. Rápidos e violentos uns, lentos e poéticos outros. No “capítulo do voo”, uma sequência incrível mostra Musashi a combater um guerreiro mais jovem, com o sol a pôr-se. No “capítulo da poesia”, um outro guerreiro, com um estilo distinto de combate com espada, quase se funde com o chão pedregoso e as sombras que o rodeiam. No “capítulo do espírito”, Musashi cruza-se tensamente com outros dois guerreiros, e ninguém saca da espada, mas o combate fez-se à mesma: “ambos venceram e ambos perderam”... O arco de desenvolvimento demonstra a paixão do combate do mais jovem Musashi transformando-se em compreensões mais introspectivas da perfeição da técnica, até ao ponto de não-necessidade do combate. Inclusive depois de viajar com o seu filho adoptivo. Pois a harmonia e “os questionamentos sobre a espada e a vida” vão dissipando-se à medida que ele enfrenta distintas existências. O último capítulo, “do céu”, é o mais drástico e interessante do ponto de visto historiográfico, pois mostra a resistência cristã frente aos daimyos, e o que a “crença” e “fé” dessas pessoas ensina a Musashi.


Os capítulos empregam também bastas vezes citações retiradas d'O Livro dos Cinco Anéis, adensando as lições da maturidade filosófica às realidades tangíveis dos combates, como se se procurasse, camonianamente, a entender as cadeias que unem o “engenho” ao “saber de experiências feito”.


Quer num caso quer no outro, independentemente das esferas sociais visitadas, notar-se-á sempre na interseccionalidade das classes, e na observação do quotidiano “pobre”, tal qual como nos livros de Hirata. Aí, a herança temática e política de Shirato também se fará sentir, julgamos.


Kojima havia iniciado os seus passos como pintor de cartazes, depois passou a trabalhar, já com Shirato, nos kamishibai, e depois finalmente em mangá. Se Shirato encontrou um belíssimo equilíbrio entre um estilo mais próximo de Tezuka e, por força, da/de Disney, e o estilo mais cine-dinâmico advindo da gekigá, Kojima já está mais próximo de uma mestria de linhas finas e de correcção realista anatómica. Talvez não da forma operática de Hirata, mas seguramente que conquistando-lhe um lugar de soberbo destaque. Estes dois livros têm abordagens diferentes. Em Monjirou nota-se mais o trabalho da mão, em linhas mais finas, pinceladas, momentos mais caricaturais, texturação mais forte nas aguadas, e vários tons. Também a composição nos parece mais dinâmica, no sentido de emprego de vinhetas de cantos oblíquos, mais campo/contracampo, e momentos de desvios gráficos. Musashi, em contraste, tem mais tramas, maior ortogonia, e um debuxar mais descontraído, ligeiramente. E algumas páginas mostrando cor, em aguarelas, talvez, em famílias estreitas de cor, são de uma expressividade emocional e contida soberba.



Mas há pormenores, sobretudo em vinhetas silenciosas, ou cenas naturais, que contêm uma beleza indescritível. Veja-se, em Musashi, na abertura do “capítulo da poesia” [aqui, numa fotografia de menor qualidade], mostrando os protagonistas a atravessarem um vale ao largo do sopé da cordilheira de Hyogo: esta ergue-se na distância, com as manchas brancas da neve por derreter, mas as suas linhas desvanecem-se ao descermos os olhos até se confundirem com a neblina. Os protagonistas encontram-se na margem inferior da vinheta, com linhas da mesma espessura e coloração que os caminhos e poucos arbustos de que parecem sair. E atravessando todo o primeiro plano, numa oblíqua que acompanha a marcha, as pinceladas seguras meio-secas dos troncos de uma ameixoeira, e os frutos desta, pesados e coloridos por tramas. Kojima foi um mestre das cenas de combate, mas não percam a oportunidade de observar com cuidado as cenas tranquilas.

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