7 de agosto de 2023

O novo preço da desonra, e outros títulos. Hiroshi Hirata (Pipoca & Nanquim)

Apesar deste texto ser escrito a propósito da recentíssima publicação deste volume em particular, a verdade é que a sua valência cobrirá toda a edição deste autor pela plataforma brasileira, que se tem tornado nos últimos anos uma das mais significativas editoras daquele país, quer em termos de traduções de importantes obras internacionais (Larcenet, Ito, Cloonan, Sampayo, etc.) quer de autores nacionais (Jefferson Costa, Igor Frederico e Patrick Martins).

Hiroshi Hirata, na verdade recentemente falecido, não chegaria a ver estas edições, ou o seu conjunto. Tendo em conta que fará parte de toda aquela geração que surgiu com o novo ramo da gekigá, de que falámos bastas vezes, como por exemplo a propósito dos livros autobiográficos de Yoshihiro Tatsumi ou de Masahiko Matsumoto, esperamos que a consciência que estas obras estavam a ser recuperadas em edições mais perenes e, acima de tudo, em traduções que permitissem chegar a um novo e mais alargado público global, lhe tenha chegado a tempo e tenha sido fruto de algum prazer e honra merecida. Dentro desse território, naturalmente, e mais especificamente envolvendo histórias de samurais, a maior afinidade será aquela com Kazuo Koike e Goseki Kojima, dos influentíssimos Lobo Solitário e Samurai Executor, mas também com uma outra série desse mesmo escritor, a saber, Lady Snowblood, desenhada por Kazuo Kamimura.

Hirata começou a trabalhar como cartoonista no final dos anos 1950, criando-se a lenda de que teria criado uma história de dezassete páginas numa só noite, sem ter conhecimentos particularmente intensos desta arte, uma vez que nem sequer leria muito banda desenhada (o seu interesse seriam máquinas electrónicas, e livros históricos). A publicação para a qual contribuiria intitula-se Mazo, ou “Monstro”. A meados dos anos 1960, chegaria a desenhar para a Garo (bottoms up, num drinking game que espere uma referência e este título). Fez algumas adaptações de filmes, também dentro do seu género favorito, com efeito, aquilo que estas edições brasileiras ensinam ser jidaigeki, ou “dramas históricos”. Desses trabalhos, Hirata tem um volume dedicado à figura de Zatoichi, por exemplo, de que existe uma edição francesa do início dos anos 2000, pela Delcourt, como alguns outros títulos. Um pormenor para associar novamente ao cinema: no capítulo 21 de Mais forte que a espada, reconta-se o famoso episódio, aparentemente histórico, do samurai Kamiizuma Nobutsuna a salvar uma criança de um louco, que conhecemos graças à sua inclusão nos Sete Samurais, de Kurosawa.


A Pipoca & Nanquim foi publicando, desde 2019, vários volumes deste autor, nesta sua veia. Começou com O Preço da Desonra, que dá início às histórias do kubidai, ou “cobrador de promissórias de vida”, Hanshiro (uma óptima fórmula para criar histórias isoladas e variações do tema). Depois seguiram-se a série literalmente épica, em 3 volumes, de Satsuma Gishiden, ou Crônica dos Leais Guerreiros e Satsuma, que também angariou muita fama através da edição norte-americana, os 2 volumes de um mais tocante Mais forte que a espada, e termina com o regresso ao kudibai, O Novo Preço da Desonra. Acreditamos que possa haver volumes futuros, como é óbvia, pois toda esta produção, ainda assim, é apenas uma parte do que o artista produziu em vida. Recordemo-nos que em 2019, o investigador, tradutor e incansável promotor da mangá mais alternativa e histórica em língua inglesa, Ryan Holmberg, providenciou-nos com uma pequena edição de Blood Stump Samurai. Esse outro livrinho é um dos mais intrigantes objectos políticos e toda a questão em torno da sua produção e recepção é apaixonante (leiam-se os complementos de Holmberg, claro). Uma vez que esse é um livro criado sob a fortíssima influência de Shirato, não apenas o desenho se reveste de uma leveza e dinâmica rápidas – ainda longe do realismo detalhado destes livros da P&N – como ainda possui uma dimensão política “de esquerda”, traduzindo-se uma atitude de um homem de classes desfavorecidas desejando demonstrar o seu antagonismo, e fúria, contra um sistema de classes sociais empedernido.

Hirata era particularmente influenciado por ilustradores de novelas históricas, muitas das quais romantizavam e ajudaram à recuperação das figuras dos samurais, o seu código Bushido, e toda essa sub-cultura cuja origem se encontra numa mescla extremamente complexa de blues pós-Meiji, criando um nó demoníaco entre uma visão nostálgica de um passado perdido (e um presente de derrota e miséria), wishful thinking, produto distorcido para inglês ver (ou americano), orientalismo/japonisme elevado ao cubo e devolução de uma ficção históriográfica à própria nação. Enfim, uma ficção que seria tornada inócua nas suas facetas politicamente mais reprováveis (uma classe altamente estratificada e injusta, dada a violências arbitrárias, a existência de uma classe pouco controlada – estes “jagunços” dos senhores feudais). Nada que não tenha ocorrido noutras paragens: “cowboys”, “lusitanos”, “descobridores”, “exploradores intrépidos”, “vikings”, “cruzados” são todos termos que mais apontam a uma ideia fantasmática do que uma realidade histórica completa, mas que tiveram um papel fundamental na construção da identidade dos seus povos respectivos, e até além deles.

Perguntamo-nos até que ponto as ficções históricas, ainda que profunda e largamente balizadas em pesquisas documentadas e balizadas na história, de Hirata reforçam ou até exacerbam esses tais sentimentos “positivos” em torno desta classe de guerreiros? A palavra “honra” está sempre na linha da frente, e pronta para ser defendida com súbitas e certeiras acções violentas. Há apenas a mais leve ou encurtada interrogação desses princípios, e sempre surgem como surpresa ou “desvio” das atitudes mais estóicas e másculas possíveis.

Enfim, mais que O Caminho do Bushido, a realidade histórica revela mais a existência do “bullshido”. Dito isto, que importa? Estamos no território da ficção, e para mais de género, e a violência a que se entrega é estilizada e serve um propósito estético, de catarse de sentimentos muitas vezes indizíveis mas reais eles mesmos, e não se pode imputar uma correlação directa com comportamentos empíricos. Ainda que Hirata se tenha munido sempre da mais diversa documentação para criar o maior efeito de referencialidade possível – detectável de modo simples através das citações, dos momentos de entrosamento a eventos históricos, o cuidado com as cartografias, culturas locais, e pormenores do quotidiano – não podemos excluir a hipótese de haver uma perspectiva criativa que pretende, precisamente, reforçar aquele “romanticismo” indicado acima. A matéria história é bem mais friável do que pensamos, e deve ser objecto de revisão permanente.

O papel do protagonista de Preço da Desonra é precisamente uma dessas construções que se coaduna com o tropo máximo das ficções masculinas: um herói solitário, auto-suficiente, frugal, incrivelmente dotado para o combate com espada, de modo rápido, letal mas ao mesmo tempo “justo”, e, naturalmente, informado por um profundíssimo e elevado sentido de “honra” e “justiça” que nem sequer precisa de ser indicado: muitas vezes, são as acções ou decisões, em silêncio, que as tornam ainda mais impactantes junto ao leitor.

Estes volumes atravessam várias fases do trabalho de Hirata, o que é notório no desenho. Outros críticos o notaram. A sua proficiência em certas dimensões – como a caligrafia, de modo a que seria chamado uma e outra vez para muitos projectos alheios, inclusive o seu mais famoso trabalho para Akira – está espelhada ao longo destas páginas. Por vezes existem construções que interrompem, por assim dizer, o fluxo narrativo mais expectável e comum da mangá contemporânea, em que se buscam cifras que convidam a uma leitura célere, para nos oferecer vinhetas no seu sentido mais ilustrativo, enciclopédico, explicativo (algo que preside, por exemplo, ao seu livro sobre “a arte do arqueiro”, de que conhecemos a versão francesa, L'âme du Kyudo.

Hirata não é propriamente um grande mestre na construção psicológica e emotiva das suas personagens. O seu propósito é quase “de tese”: a construção de narrativas de grande fôlego que possam demonstrar a correcção histórica que ele pretende apresentar. É notório como, bastas vezes, é mais importante que determinado facto, comportamento, ritual ou procedimento se torne claro, do que a sua eficácia na economia da narração. Isto torna a leitura algo laboriosa, e de uma recompensa mais intelectual que emotiva. Não ajuda que, nos momentos do seu desenho mais esculpido naturalisticamente, de um aturado e minucioso rigor, haja mais solidez nos objectos que nas personagens – e sobretudo nas suas expressões dramáticas: não fosse a roupa estilizada das personagens, dificilmente as distinguiríamos entre si. Mas essa dedicação nem sempre está presente. Há outras passagens em que se nota uma maior qualidade de “esboço” (no seu sentido de incompletude, primeiro passo, não de expressividade livre). Num sentido histórico, Hirata produz aquilo que no Ocidente se chamaria de fresco, menos no seu sentido técnico, do que no uso histórico de grandes murais representando uma cena mais ou menos inerte mas que pretende mostrar uma “história”.

E, como um fresco, haverá sempre um trecho, um canto, onde encontramos uma prestação brilhante. E não há dúvida que nos momentos de maior explosão cinética, ou grandes vistas de batalhas populadas por cavalos rompantes, corpos digladiando-se, mercados a trepidar de frenesim, barcos rompendo as águas, estamos perante um controlo do desenho e da composição fora do comum.

A leitura de todos estes volumes instila essa mesma percepção, de vinhetas soltas que desejam mostrar uma complexa rede de interdependências, entre obrigações de classe, dever filial e senhorial, vontades mais individuais e indomáveis que falam de uma maior liberdade humana, e as tensões em debater essas mesmas paixões em público. Se a sua leitura por atacado pode levar a uma menos intensa experiência de cada uma das novelas em si, emerge mesmo assim um genuíno esforço em criar esse mesmo panorama tangível de uma identidade que, tenha existido ou não, é refeita para ser apreciada e emulada.

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