30 de maio de 2008

Venham + 5 # 5. AAVV (Toupeira/Bedeteca de Beja)

Por ocasião do último Festival de Beja, o Colectivo Toupeira/Bedeteca de Beja lançou o quinto número da sua publicação Venham + 5, mas este “+” assume aqui todas as direcções possíveis do crescimento em termos quantitativos e físicos como em termos mais diáfanos, de “qualidade”, “força”, “presença”. Não obstante ainda poder vir a ser considerado um fanzine pela sua posição política para com o mercado (assuma este em Portugal a forma que achar que pode ou pensa assumir), o que temos aqui, em termos meramente descritivos, é um belo livro, uma antologia de mais de 200 páginas com trabalhos de 58 autores, quase todos portugueses mas com algumas participações internacionais, quase todos inéditos, mas alguns que já haviam sido publicados antes em revistas internacionais e encontram aqui a sua primeira publicação em português (por exemplo, a contribuição de Pedro Nora com Jessica Khane e a de Filipe Abranches), mas todas elas unidas pelo mesmo princípio: um elo de ligação ao Festival de Beja, por terem lá passado, exposto e criado um grau mais ou menos profundo com essa plataforma. De facto, toda a atitude deste colectivo é a de que há espaço sempre para mais um amigo, “também”. E independentemente do que escrevi sobre os números anteriores (* e *), que se limitavam a coligir os trabalhos desenvolvidos nos workshops ou pelos autores locais do colectivo, e que nem sempre primavam pelos melhores modelos da banda desenhada contemporânea, enquanto gesto e presença, é sempre, sempre bem-vindo.
Nem todos os trabalhos são da mesma cepa nem do mesmo ano de colheita: encontrar-se-á uma grande colecção de humores, estilos, extensões, e propósitos. Este Venham + 5 pode mesmo até funcionar como uma espécie de elenco ou cartão de visita para um grupo bastante amplo e activo da banda desenhada portuguesa contemporânea. Claro, faltarão nomes, como sempre, mas isso não é argumento derrogatório. Como se disse acima, trata-se de uma colecção feita pelos elos da amizade que se tornou possível pela colaboração no Festival, e isso em si é já um critério tão pertinente e forte como outro qualquer e até mais, porque é movido com o único intuito de promover e continuar esses mesmos elos.
Há preferências, naturalmente. Mas mais do que me inclinar para elas, o que não traria surpresas para ninguém, e uma vez que não é de todo possível elencar todas as histórias e adiantar uma razão pela sua ressonância na nossa leitura, preferiria acentuar a presença de surpresas. Esta palavra significa originalmente “prender demais”, quer dizer, chamar-nos a atenção de um modo mais vincado do que o habitual. Por isso, as surpresas não podem advir propriamente daqueles autores a que nos acostumámos seguir de mais perto, mais vezes e com uma maior intimidade (em relação à obra). Esses, por razões de saber da sua contínua qualidade, apenas a vêem confirmar com estas novas pequenas histórias aqui editadas (Miguel Rocha com Susana Marques, André Lemos, Maria João Worm, Teresa Câmara Pestana, Jorge Coelho, Diniz Conefrey, Filipe Abranches, David Rubín, José Carlos Fernandes). Algumas delas com pequenas torções em relação ao que conhecíamos, talvez (Jorge Coelho apresenta um ritmo íntimo e pausado que não se adivinharia dos anteriores trabalhos, mais acelerados, por exemplo, José Carlos Fernandes retorna a um tom antigo mas muito seu...).
Elas, as surpresas, vêm, dizíamos, daqueles ângulos do horizonte para o qual não olhávamos a direito, por não havermos até ao momento surpreendido uma fulgurância que se prestasse a uma força maior na banda desenhada (independentemente do “sucesso” ou “reconhecimento” por este ou aquele sector do “mercado”). Estão nas histórias de Pedro Rocha Nogueira (na verdade, aqui não há propriamente “surpresa”, mas apenas um mais acelerado acordo dos elementos que compõem o universo alegórico das suas histórias, que procuram sentidos universalmente partilháveis), de José Abrantes (uma pequena fábula-comédia com laivos de uma angústia que parece comentar um certo sector de criação delicodoce para crianças, que o próprio Abrantes alimenta noutros dos seus trabalhos), a de Filipe Andrade e Filipe Pina (afastados do “over the top” BRK, e ainda que com sinais desse poetismo em busca de um “sentido da vida” tangível, apresentam uma tocante e simples história de um homem a rever a sua vida, no preciso momento – imaginamos nós – em que cai na hora da morte), de Pedro Leitão (famoso autor da série infantil As Aventuras de Zé Leitão e Maria Cavalinho, apresenta aqui uma tipologia de 13 soldados norte-americanos e as razões que os levaram à Guerra do Golfo: num registo de cartoon, muita verdade e ironia é aqui aplicada), de Ricardo Ferrand (que já tinha apresentado dois livros dignos de nota e de um alcance acabado, mas que com esta pequena história “A Prisão”, de 5 pranchas, atinge um muito apurado e sarcástico humor que parece ser uma boa direcção), e a de Paulo Monteiro (com menos “surpresa” também, mas que com “Rádio Medo”, uma colaboração com Kike Benlloch, supera a sua investigação pelos territórios da fuga onírica para penetrar nos da paranóia mais atormentada, empregando a própria estrutura para realçar esse vórtice – imagino esta banda desenhada publicada numa só prancha gigante).
Como disse, esta antologia, esta publicação pode servir nos próximos tempos como excelente cartão de visita sobre as várias respirações da banda desenhada portuguesa contemporânea, convidando sempre a que venham mais, cinco ou mesmo além disso.

28 de maio de 2008

4 livros de Phillipe Squarzoni (Les Requins Marteaux)

No seguimento da colaboração com o Le Monde Diplomatique, indico um artigo sobre quatro livros de P. Squarzoni, que compõem uma espécie de bloco, publicado aqui.
Agradeço a quem o visite e leia.
Uma nota de agradecimento à Sandra Monteiro, pela disponibilidade mostrada, à Sara Figueiredo Costa e à Marta Lança pelas discussões, e ao Nuno (vergonha, mas não sei o último nome dele!) que insistiu para que eu os lesse e apreciasse.
Vale!

25 de maio de 2008

O Percutor Harmónico. André Lemos (Ao Norte)

Este é um livrinho pequeno, poder-se-ia dizer “de bolso”, mas para além de ser em si mesmo uma frincha que se estende tão grandemente quanto os cinemascopes antigos, é também a primeira sessão de uma maratona do encontro entre o cinema e a banda desenhada.
O Filme da Minha Vida é uma colecção e projecto (a longo, longo prazo, como soe no seu grande projecto heteronímico) de Tiago Manuel, pelas edições Ao Norte que pretende editar pequenos livrinhos nos quais variadíssimos autores (de banda desenhada, ilustração, desenhos) criarão um trabalho associado de um qualquer modo a um filme em particular, que são eles mesmo a escolher (um filme nunca é sempre para toda a vida, diga-se, mas pode sê-lo durante aquele instante feliz que lhe permita criar algo, e isso é para toda a vida). Em várias séries de dez títulos/dez artistas, cada um desses volumes será acompanhado por uma introdução por um ensaísta ou crítico de banda desenhada (a primeira será com textos de João Paulo Cotrim, que depois se reunirão num volume único, havendo uma vontade também de criar “sabedoria” nos discursos sobre e com a banda desenhada, um programa pedagógico profundíssimo e estimulante e, nada paradoxal, descontraído). O primeiro bilhete segue com O Percutor Harmónico, de André Lemos, “casando-se” com o filme de Sergio Leone Aconteceu no Oeste.
Como Cotrim assinala nas palavras do seu texto, as relações entre a banda desenhada e o cinema não se cingem somente a transmissões entre temas e matérias, tampouco a instrumentos superficialmente idênticos (na verdade, “instrumentos” numa das artes mas absoluta linguagem na outra), mas antes à “enigmática relação entre elementos subtis: texto e imagem”. A chave desta frase está em subtil, no sentido de grácil, penetrante, algo pequeno mas marcante. Lemos como que selecciona apenas a mais famosa cena, em que a personagem de Charles Bronson confronta três homens mal acaba de chegar à pequena cidade de comboio, e toca na gaita-de-beiços a igualmente famosa melodia de Morricone. Para um autor que é sobretudo conhecido por não desperdiçar qualquer oportunidade em manchar o máximo as folhas de uma tinta negríssima, que sabe tornar ainda mais negra do que quando sai do boião, a última imagem, de um cadáver prostrado no chão e como que esmagado pela imensidão de um céu branco imaculado, sem incómodo, é significativo. Não há aqui qualquer transposição linear ou de composição entre os factos do filme e os factos do livro. Há antes uma tradução de ritmos que, sendo duas linguagens diferentes, terão necessariamente de ser diferentes: e o título explica isso mesmo. Ritmo e harmonia. Branco e negro.
Sem qualquer tipo de displicência nem falta de respeito para com André Lemos, nem dos autores já prometidos nas próximas edições (já prontas), parecer-nos-á, depois dos primeiros títulos, que a colecção O Filme da Minha Vida será uma daquelas situações em que se emprega, com toda a acuidade, a expressão "o todo é maior que a soma das partes". Haverá, sem dúvida, títulos individuais fulgurantes, mas todos eles contribuirão para a instituição de um projecto pedagógico e amplo singular. Estaremos, portanto, no fim deste imenso projecto, e seu fim principal mesmo, perante não só uma grande lição de cinema e de banda desenhada e de ilustração mas igualmente sobre os intervalos, tão percutidos e vincados quanto harmoniosos e gráceis, do acto criativo.

21 de maio de 2008

Três livros infantis nada infantis.

Livro 1. A máquina de fazer asneiras, João Paulo Cotrim e Pedro Burgos (Calendário).
Há, no mercado dos livros infantis em Portugal, uma vasta cultura da irresponsabilidade, através de livros cuja esmagadora maioria se preocupa em demasia com a “responsabilidade” (daquela policial, formatadora, instaladora do Édipo, da “educação para a sociedade”). Mas falham redondamente nos ingredientes mais básicos do gesto para a criança, aquilo a que com Guattari e Deleuze aprendemos a chamar (mas é preciso ter cuidado com os abusos desta linguagem, que nada tem de jogos fortuitos) “devir-criança”. Ficará suspensa nesta discussão a falta de espaço que há para o cultivo dos novos escritores e ilustradores de livros infantis que sustentam forças novas, ou de um melhor trabalho de divulgação dos antigos mas ainda actuais (António Torrado é um deles, por exemplo). Não se justificará a sensação de ver na esmagadora maioria dos livros uma falta de cuidado e talento para cuidar da impressão, da letragem, de composição dos livros. Não se falará da falta de uma verdadeira tradição da literatura infantil em Portugal (dir-me-ão, há muitos escritores. Sim, mas quantos são herdados?).
Há excepções. Naturalmente. É preciso ser-se caçador, atento, específico. Há várias naturezas nessas excepções. A de João Paulo Cotrim tem a ver com a desresponsabilidade. Não é irresponsabilidade – política do terror, da formatação psicológica da criança mal nasce (azul ou rosa?). É um trabalho de minar a responsabilidade. Já faláramos de outros livros de Cotrim para crianças, mas se nesses víamos uma manifesta estruturação pela capacidade libertária da poesia (narrativa, como a melhor poesia), aqui vemos uma vontade de partir para um “devir-criança”, o ser-se por uma vez (ou duas ou três) alheio ao espartilho da responsabilidade: não é apenas o pai, que constrói um segredo (infelizmente, o título do livro impede que seja um segredo efectivo; má estratégia do título), que coloca de lado a responsabilidade dos trabalhos “sérios”, são também as filhas, cuja busca pelo segredo atravessa vários patamares de suprir as faltas de uma responsabilidade milimétrica e sopesada, e ainda os próprios autores: uma história que flui serena, as imagens que ocupam as duas páginas como se os pequenos palcos onde as duas manas brincam fluíssem sem barreiras (num fundo branco, flutuando, re-fluindo), a linguagem que se estapafurdia (passa a verbo: “ora bolas fofas de pêlo!”), são os olhos vidrados das personagens – há quem não goste, há quem discorde da estratégia – que apontam a uma qualquer alucinação interior, uma liberdade da responsabilidade comportamental, a libertação do “ser-se normal” (v. abaixo). Poderemos dizer, cometendo ligeira inconfidência, de que na equação dos livros “infantis” de Cotrim as crianças não são sua expressão, nem variável. São apenas fantasma, escusa, espelho, para as quais o autor (escritor), plasmando-se na especificidade do estilo do ilustrador com que trabalha - uma das forças supernas de Cotrim, um estilo que é seu imiscui-se no dos ilustradores para sair dele ainda intacto, mas ambos tocados (no que esta palavra tem de sentido emocional e de embriaguez – devém criança. Para desfazer a responsabilidade, para brincar, para fazer asneiras.
Livro 2. A história de Erika, Ruth Vender Zee e Roberto Innocenti (Kalandraka).
O Holocausto é, mais que um tema, uma indústria crescente, e esta palavra não tem que assustar, e muito menos ofender, de modo algum, já que o progressivo afastamento e a consequente desaparição dos seus actores testemunhas permitirá cada vez mais uma sua revisitação, mesmo pela ficção, forte ou fraca, contundente ou negligente, ponderada ou abjecta. É o perigo por que passam as coisas que vivem e existem ainda, pulsando de moto próprio. O cinema pode optar pela “invisibilidade” de Shoah, o dramatismo de Schindler’s List, ou até a bonomia desconcertante e irritante de A Vida é Bela. A literatura pode de quando em vez expulsar para o mundo livros como As Benevolentes, de Jonathan Littell, o qual, independentemente de todas as proliferações que provoca à discussão, faz repesar a questão de pensar, e mesmo analisar, o mal de um modo profundo [presumo que A Rapariga que Roubava Livros, de Markus Zusak, possa tocar tangencialmente pontos idênticos, mas não o li...]. Mais profundo, porém, são os poucos gestos que ainda hoje assombram e estranham à nossa “vontade de justiça” retroactiva (ridícula porque deslocada, não participámos, não conseguiremos participar jamais, e criamos ilusões de participação que a nenhures levam) e que sobrevivem em obras esmagadoras, porque quase incompreensíveis (vejam-se os escritos de Etty Hillesum, recentemente editada em Portugal – e cuja leitura faço aqui através do prisma de Maria Filomena Molder, obrigatório para entender o aço e o imo da escritora holandesa -, mas também esse monumento desmonumental, se tal coisa é possível, que é o Leben? Oder Theater? de Charlotte Salomon). Mais perto de nós, mas não mais baixo, estão alguns livros que bebem e vogam nestas águas “temáticas”, e de que demos conta.
Repito aqui tema, tema, mas não é propriamente um “tema”, ou se o é, é-o apenas acidental e superficialmente: os seus fundos são radicalmente diferentes, isto é, os caules podem assemelhar-se mas as raízes encontram-se em húmus diferentes. A história de Erika não é, de modo algum, um livro fortíssimo. Aliás, se nos permitirmos a jogos de linguagem com os termos musicais, não se pode falar de tema simplesmente porque se trata da utilização de um mesmo número reduzido de notas (elementos de narrativa, espaços, estratégias de representação – como por exemplo a não representação das faces dos personagens, quer dos verdugos quer das vítimas, cada um desses grupos descaracterizados, desumanizados, por razões diametralmente opostas) – pois nada permite encontrar entre esta obra e as outras referidas atrás que nos leve a encontrar variações. E se bem que o ataque possa querer ser fortissimo – grandes imagens ocupando as páginas inteiras, de cores carregadamente cinzentas e castanhas onde ocorre a “sombra da morte” para poder fazer explodir em contraste a cor da “vida”, uma escrita que avança monocórdica apenas indicando que no centro do desconhecimento, pois Erika, que conta a história, não sabe qual a sua origem, qual o seu país, quem os seus pais, apenas sabendo que foi lançada de um dos comboios de Auschwitz e que agradece ter sido salva por camponeses e poder vir a ser uma estrela (de David) viva na constelação dos que se lembram – o efeito acaba por ser mezzo-piano.
Não obstante, a força deste livro não está nele mesmo, deslocando-se para o fantasma que ele traz consigo: pensar a morte. Em vez de a evitar, como faz a esmagadora maioria da nossa sociedade, e sobretudo em relação às crianças (se bem que haja excepções, e no interior do “mercado” nacional do livro para crianças), a morte é pensada enquanto existente, até mesmo parte integrante do ser humano. No entanto, em A história de Erika, a morte não surge como indissociável da vida humana, mas na sua faceta de violência imposta pelo mal: tal como Erika não sabe nem conhece as suas origens reais, a não ser a da pertença ao género humano, e a estrela amarela não pode diminuir mas também não pode aumentar essa sua pertença, também nós não entendemos as razões da emergência dessa cabeça da morte. Este livro, o que faz, é trazê-la para mais perto, é torná-la presente. O que é o mais importante passo para a dissipar enquanto fonte de medo.
Livro 3. O Livro do Pedro (Maria dos 7 aos 8), Manuela Bacelar (Afrontamento).
Perdoar-me-ão o jogo de palavras que quer revelar mais da boutade do que a afirmação peremptória e julgadora, mas creio que poucas vezes nos seus livros de literatura infanto-juvenil a Afrontamento tenha preenchido mais o seu próprio nome do que com O livro do Pedro.
Esgotemos a “história”. Maria conta à sua filha a história de um livro ilustrado que dá conta da sua própria infância – entre os 7 e os 8 anos de idade: há um estilo, a lápis de contornos suaves que é depois substituído pelo “interior do livro”, de contornos a tinta, cores mais garridas, tramas mais fortes. Uma nostalgia que mostra um passado fortíssimo em contraste com um presente mais calmo (mas não menos feliz nem inferior). Maria conta a história da sua infância, da visita aos avós, da escola, dos amigos. Maria conta a história da sua infância e dos seus dois pais. Um pai e outro pai. Dois homens.
Num país onde não há verdadeiramente discussão pública do assunto, onde é na melhor das hipóteses visto como “não ser uma prioridade”, o acto de O livro do Pedro é um acto de afrontamento: não só “fazer frente a” ou “estar cara a cara”, mas, etimologicamente, ir a affrontare, “golpear” e ir mesmo a frons, frontis, “testa”. É preciso fazer frente, estar à frente, olhar nos olhos do problema, atacá-lo, e ter testa, ter pensamento e superfície.
Não é uma questão de “o que é curioso...”. Nem de heroísmos, bandeiras, superioridades de algum tipo. Bacelar mostra-se aqui – mas não é o primeiro caso na sua longa carreira – como cidadã de um mundo em expansão. O mundo, diz-se, está cada vez mais pequeno, graças às comunicações, aos meios de transporte, ou a outras contingências da tecnologia (que promete falsamente um progresso linear). Mas na verdade “ele está é cada vez maior!” (tom coloquial, aqui, como quem discute na mercearia, corrigindo os outros fregueses): pois o acesso a modos de vida que não os nossos leva a cruzamentos, que é como quem diz, multiplicações, o que provoca, sempre, mais. Esses modos de vida, porém, muitas vezes partilha um mesmo espaço de proximidade, num mesmo país, numa mesma cidade, na nossa rua. Bacelar simplesmente – mas não é nada simples num país como o nosso, ainda não é simples, sê-lo-á quando? – cria uma história que dá espaço e acesso a outro modo de vida que, pasmamo-nos a descobri-lo de repente, nada tem de outro. Um dos argumentos que se apresentam na primeira fila de um impedimento à adopção de crianças por casais homossexuais é a de uma suposta influência sobre essas crianças: tal qual, presumo, os homossexuais foram influenciados pelos seus pais (necessariamente os tiveram!) de sexos opostos. Bacelar mostra Maria, adulta, casada, grávida – uma “normalidade” que brotou de uma “anormalidade” (dois pais), informando-a portanto como “normalidade”, ou como “anormalidade de onde pode surgir nova normalidade.” Quando aos perigos, escabrosos, violentos, estúpidos (estupidificantes), da utilização desta palavra “normalidade”, veja-se (e pense-se) Arno Gruen. Outros dos argumentos é a de que os casais homossexuais, mormente de homens, não têm a estabilidade de longo prazo que é desejada para a educação e desenvolvimento das crianças. Sociologia barata, sem qualquer fundamento, e que não toma nem a aniquilação dos laços dos casais heterossexuais, nem as circunstâncias sociais que impelem os casais homossexuais a ter de viver sob uma capa de “diferenciação” (“eu aceito, desde que não me chateiem”, “não tenho nada contra, mas não se ponham aos beijos em público”), nem a “loucura da normalidade” (Gruen, novamente): o pai que chega a casa e se senta a ver a bola na televisão e a ler o jornal, sem falar com a mulher, sem falar com os filhos, um grunhido, e é tudo. Atenção, o contrário desta discussão não é dizer que uns “têm tanto direito quanto” os outros. Essa não será a boa forma de argumentação, querendo espelhar-se os direitos de uns pelos dos outros, passando por cima dos direitos dos primeiros cidadão em questão, as crianças. Esta é uma armadilha. Toda esta questão é pejada de armadilhas: é quase uma aporia ética, social e, por isso, humana. É preciso equilíbrio, calma, e verdadeira discussão (não disputas, mas raciocínios pautados, dialogantes). Mas um argumento há que superaria estes todos, um argumento há que Bacelar tem revelado em entrevistas – inclusive na tristemente conduzida num programa de televisão de larga (?) audiência; mas é televisão da má... – ser o móbil do seu trabalho, um argumento há que Bacelar erige como o baixo contínuo das linhas d’O livro do Pedro, e dos desenhos (são os pormenores que o ditam: olhos apaixonados, olhares cruzados de carinho, olhos fechados de emoções tintadas, sorrisos serenos, serenos, momentos de lazeres quotidianos, visitas surpresa, barbas por fazer, um braço por cima dos ombros). Um argumento que muitos pedopsiquiatras querem fazer desaparecer sob novo jargão e listas de “a fazer”, impondo um outro regrário de capitalismo psiquiátrico, um argumento que os polícias do puritanismo e os juristas (não os que entendem de “justiça”, mas os que entendem de “aplicação de leis”) denigrem por não ser mensurável, um argumento que muitos votam ao riso por soar a vazia fórmula de tão repetida nas mais lamechas e moles das situações. Um argumento que foi eleito como o único com direito à representação figurativa na capa deste livro, de modo simbólico, a cores e traços tranquilos para melhor fazer passar a certeza da sua força, imensurável, sim: “dar amor a uma criança”. E não perceber que esta frase não precisa de mais argumentos nem justificações nem exposições não percebe nada da sua justeza e completude.
Nota: agradecimentos à Calendário, pela oferta do seu livro. À Carla Pott e à Sara Figueiredo Costa, pelas discussões.

17 de maio de 2008

A Carga. Susa Monteiro (Bedeteca de Beja)

O trabalho de Susa Monteiro, a cada novo episódio de presença, apenas remata a ideia de que não estamos perante uma autora “em desenvolvimento”, mas uma artista cuja desenvoltura e força de figuração é clara, não obstante o território em que deseja se expressar seja, as mais das vezes, o da obscuridade. No texto, “Iconografia da Solidão”, de Paulo Monteiro na última Splaft! (no. 4), publicação da Bedeteca de Beja, que dá conta da exposição de Susa Monteiro e da publicação deste A Carga, abrem-se as suas considerações indicando como as características mais prementes do trabalho da artista o intimismo e a poesia. Não discordando totalmente, importa porém precisar como é que poderemos entender estas duas palavras no trabalho de Susa Monteiro.
Estou em crer que poderemos chamar de “intimista” àqueles trabalhos onde o autor se revela a si mesmo, quer nos traços mais largos e ribombantes da sua vida quer nos momentos aparentemente mais inócuos mas mais estruturantes da sua vida quotidiana. Apenas a título de exemplo, e bebendo da autobiografia, onde se espraiarão com mais consistência essas revelações, falemos de Debbie Drechsler para o primeiro dos casos e Harvey Pekar para o segundo. Naturalmente, os autores podem ainda construir espaços totalmente ficcionais nos quais deambulam as suas personagens fictícias, mas com elas revelar o que de mais íntimo poderá existir na esfera humana: com pequenas flutuações “para fora” da autobiografia, lembremos Shin’ichi Abe ou Baudoin, imersos na ficção, falemos de Pedro Nora com Jessica Khane ou de Kevin Huizenga. Nenhum destes é o caso de Susa Monteiro. Parece-me antes, e aqui sigo ainda Paulo Monteiro, que a intimidade revelada por Susa Monteiro se encontra nas imagens recorrentes do seu trabalho, as quais surgem como signos obsidiantes representativos de um qualquer fantasma por revelar: esqueletos, pássaros, terra aberta, céus plúmbeos, uma esmagadora maior presença de homens em relação a mulheres, sendo eles normalmente estilizados de modos idênticos, com rostos angulosos e rugosos, barbudos, de corpos redondos e pesados como pedras, como se se tratassem antes de golems ou criaturas telúricas, do que homens como nós. É a recorrência destas figuras que permite desenhar um perfil psicológico, mapeável, interpretável da obra crescente de Susa Monteiro. Não caiamos em tentação: esta intimidade, esta leitura interpretativa deve ser sobre a obra e não a autora, não tendo nós qualquer direito a exercer psicologia (barata) sobre a sua pessoa. Apenas nos permite ler, tentativamente melhor e mais, as suas bandas desenhadas.
Estes temas, estas matérias e figuras, que até agora surgiam como personagens ou objectos das suas histórias (sem indicação do contrário, escritas por ela), materializam-se de novo aqui mas numa história mais concentrada, quase linear, de contornos precisos e até reconhecíveis. A Carga relata em 18 pranchas a complicada e atribulada lenda de São Vicente de Fora, nascido em Saragoça, verdadeiro padroeiro de Lisboa. É como se os elementos que até agora se constituíam como singularidades dispersas e a experimentar convergissem em torno de um centro temático, pata poder também experimentar uma outra forma de fazer poesia.
Susa Monteiro dispensa a biografia do santo, abrindo-nos a narrativa já em presença do seu cadáver. Aqui está, de novo, a presença de outro aspecto recorrente na autora, que é a presença da Morte, não uma morte aterradora e última, mas antes algo como um território a partir do qual se nos tornasse possível começar a viver, mesmo que a viver num outro tom, mais atento a subtilezas, a estranhezas, a fulgurâncias que nos possam surgir no caminho.
São Vicente está presente não enquanto pessoa, personalidade, figura tutelar de um imaginário até, mas “mais como corpo anónimo”, para voltar a citar Paulo Monteiro. Anónimos são também todas as outras personagens em seu torno: os marinheiros que o acodem, que o sepultam, que o desenterram e enviam no caminho a Lisboa. Tão anónimos quanto os corvos que pontuam a narrativa (a abertura e o fecho) e o rei que conquista os Algarves e manda vir o corpo do Santo - Afonso Henriques, que mandou vir o corpo, Afonso III, que terminou a conquista do Algarve, ou antes já Sancho II?; são antes todos eles, reunidos na forma de um rei compósito, como manda a lei das lendas. A narrativa em si voga também por águas vagas, nunca desocultando os nomes próprios dos lugares, dos intervenientes, das datas. Todavia, existem indícios, palavras, figurações, que vão permitindo deslindar o caso associando-o aos “factos da lenda”: o sepultamento do corpo no Promontório Sacro (Sagres), o rei, como se afirmou, e antes disso a queda dos reinos visigóticos nas Espanhas e o advento dos reinos muçulmanos, que se toma como “interrupção” dessa continuidade viva do cristianismo.
É irónica, portanto, mesmo que indesejada, a sua representação não por um santo vivo mas apenas pelas suas relíquias, cadáver tornado ícone, um amor que nasce pela coisa morta, mas não que desponte para além dela. Estará aí a força de Susa Monteiro, a de sempre colocar estas duas pulsões nos seus palcos, mas sem jamais tomar partido, e mostrando a fraqueza de ambas.

16 de maio de 2008

Kirby. King of Comics. Mark Evanier (Abrams)

Now that we are finally seeing reprinted most of Kirby’s later work – the wonderfully touching and sparkling, though over-the-top, operettas of the Fourth World, Kamandi, The Eternals, Devil Dinosaur and even O.M.A.C. – and a few years down the line after the publication of stuff like Blue Bolt, or more recently, Silver Star, the collection of early odd-jobs such as The Comic Strip Jack Kirby, not to mention the Omnibus (Marvel) editions of the most known super-heroes that came out of his inkwell, and the myriad of books dedicated to his art and creations, the time has arrived to have a one single volume that can act as a catalyst and anchor to his overwhelming output. Mark Evanier’s brought that point home with the simply, yet effectively titled, Kirby. King of Comics.
Kirby. King of Comics is a biography of the American author of Austrian descent, that spreads in seven simple chapters, divided chronologically, with both a preface and afterword of a more personal nature (Evanier’s) that bookends the account of Kirby’s life and artistic path, and an introduction by Neil Gaiman.
It is difficult to believe that anyone with even the slightest hint of interest in (American or English-language) comics from a historical or genealogical perspective has not heard of Jack Kirby. They may not like his work, but they have surely come across his name and work in some way. It is not an overstatement to say that Kirby influenced just about everyone in North-American (and beyond) action comics, and the scope cannot be confined solely to the super-hero kind. Many independent artists, that would strive to take comics into more intimate directions and less action-packed paces, or simply wacky concepts to keep pages flowing still show to be trailing on a stylistic territory opened by Kirby. Paul Pope and Jeffrey Brown, or Evan Dorkin and Shannon Wheeler should suffice as examples. I wrote territory, but perhaps I should have written territories. Sure, Kirby is mostly remembered due to his work on super-heroics and space operas, crackling as much as they could, but one must not forget that he had more than one stint at different genres altogether: war comics, westerns, horror, monster, crime, and, last but not the least, for he actually invented this genre (with Joe Simon, his Captain America co-inventor buddy), romance comics.
According to one school of the philosophy of language (I’m following the lessons of a Portuguese philosopher, Fernando Belo), any text (and here I include also visual texts such as comics) comprises three dimensions. A narrative dimension, in which you find the constellation of actants (i.e., the agents of the events portrayed in the narrative), a discursive dimension, in which the grammars of enunciation come forward (or the political perspectives and Weltanschauung of the work itself), and a gnoseological dimension, in which still another constellation is offered, that of concepts. I’m sure that everyone is able to pinpoint the importance of Kirby’s narrative contributions. All in all, despite the contribution of the legion of artists that constructed the many characters that people the so-called universes in the major companies, I do think that it’s crystal clear that it was Kirby who came up with the foundation of the uniting forces of the said-Universes. Although in his time Kirby was met with utter despise and foolhardiness of his editors, producers and directors, and witnessed the cancelling of his titles, and the annulment of his long-term projects - Moore, Gaiman and Morrison were lucky -, and despite the fact that they seemed slightly overdramatic and even hackneyed at some point, time and again, writers that came after returned to his characters, his plotlines, his structural, uniting grid of what composes the Marvel and DC Universes: see Marvels, the Earth X trilogy, Gaiman’s Eternals, and so on and so forth (actually, even if Kirby was not that much worried in providing a coherent mesh for those universes, he was the one who planted the seeds of that consistence to come; and even if many of his series ended uncompleted, he aimed at an utter completeness). Who, working within these “universes”, is not a Kirby inheritor? Yet another facet of the narrative dimension is the visual techniques, the style, and I guess this is the easiest point to understand where Kirby was innovative or at least the artist who brought some of those techniques to incredible and, more importantly, “imitatable” heights: the splash page, the double splash page, the dynamics of bodies jumping back and fro from out of the panels, the dramatic poise of the characters, the flamboyant entrances, the overwhelming contortions in action, the bombastic tirades, and the “energy crackles”
Kirby’s discursive dimension is also extremely solid. Sure, these are (mostly) super-hero comics, men in colourful tights, but that does not mean that a perspective on morals (not morality), human values and ways of acting within the body politic are not present. And it is not Manichaeism. Kirby made clear, no doubt, who the good guys and who the bad guys were, but it was never Manichaeism (not as it was with many titles before and after his time; it would suffice to check the early Superman’s personality or the early Batman’s almost aloof crime-fighting habits to perceive this). Even if one is reminded of the New Genesis and Apokalips dichotomy (from The New Gods), and then thinks of Orion and Mister Miracle, one sees the open-ended passages from one world to the next (and its views, positions, morals, etc.). His characters live with smaller human torments (no orphan trauma as in Kal-El and Bruce) and therefore, closer to us. Other authors would take the gray areas of hero-hood to other extents, like Kurtzman in his ‘1950s war comics, but the cover to The Guys in the Foxhole no. 1 (1954) shows that Kirby was attempting similar directions. Many created equally complex plots around human weaknesses within genres of grandeur, but Sky Masters of the Space Force (illustrated with Wallace Wood) managed to reach those heights within the confines of the science-fiction genre, and I learn with Evanier that most of its writing was Kirby’s, and not Dave Wood’s. Moreover, Mark Evanier expounds on how and in which direction Kirby’s own plans for his characters would bloom before they were transformed - or should I say hijacked? - by the power-that-be (and, despite Evanier’s efforts in making the reader sure that he takes no position regarding “who’s fault it was”, in the many, many problems Kirby had with Lee and Marvel, authorship included, Stan Lee does not end in the best light). For instances, his plans for a mild, almost angelic Silver Surfer, his contribution towards the anguished souls of Ben Grimm, or his monsters, show some of the principles and ethics at stake in his writing. The biographical part of the book makes sure we drive many of these points home, interlacing these projects with Kirby’s work and life ethics (as when, the legend goes, he asked DC for the least selling title to avoid someone from losing his job. Is this apocryphal? No matter, it’s still true to Kirby).
But the most important dimension in Kirby is the gnoseological. The concepts he came with. Oh, yes, for he did came up with concepts. These concepts were never introduced as tangible, independent notions. They are permeated in his creations. It’s as if Kirby drew directly from the heart of Myth and let it all pour into his fictions. It is not that important to point out the unscholarly, sometimes misinformed sources of that mythology. It doesn’t really matter if Kirby didn’t watch this film or didn’t quite grasp the whole significance of that film. Kirby was a creator, a moulder of matter and character(s). Matter that would become the fertile soil in which most of contemporary - super-hero/action/fantasy/etc. - comics are grounded. Characters that gained a life of their own and were sought by many authors that came afterwards, up until today (and into the foreseeable future, surely). The high ground he opened for the institution of the “good vs. evil” battles is part of that gnoseology. His view of a universe in which everything is connected, in which causality is paramount, in which perfection is attainable with both sacrifice and grace, are models who could, should or are emulated.
Not all is roses, thought. We should also look into the darkest or feebler aspects of Kirby’s writing – and using arguments about his “time” or, worst, the zeitgeist, is tantamount to an avoidance of a balanced discussion. The deus ex machina device (in narratological terms, not in terms of the story) is used once too often; unsurprisingly, one might say, for it is almost an intrinsic element of the main genres Kirby worked on. But one sees also a certain degree of hierarchization among men and between men and other creatures. We understand that morality is sometimes based on physical courage, and that more often than not matter overpowers mind (precisely because the hero makes good use of the former, and the evil villain misuses the latter), and, being evil an identifiable, palpable reality, the hero justifies any and every action he takes.
In this light, a first overall look at the book might make one think that the title follows uncritically a cliché and that perhaps this is just one another hagiography to add to the usual writings around Kirby. However, this is not the case. First of all, because such title, bestowed upon Kirby, was not unearned. True, it might have begun as a friend’s private joke, but it did not come about in its final form without reasons. The main reason is quoted in the text, and on several occasions: the way comic books were made changed after the forty-plus years of hard labour by Kirby in them, whether for (what would become) the major companies, Marvel and DC, or for numerous smaller companies. His original input had to do with page layouts (which were thought as for pages, and not as collected strips on a page), the ubiquitous foreshortening techniques and popping action of the bodies he drew, the sheer power of the onomatopoeias, the motion lines and, once again, oh yes, the signature “Kirby dots” or “energy crackles” (one cannot tire of repeating these words).
Despite the many anecdotes spread throughout the book, that never make us forget that there was a living, breathing (sometimes panting with frustration and just rage) man behind his books, Mark Evanier keeps to the very end a more personal confession, which shows how much Kirby meant to him, not only on a professional level but also as a human model. However, this is not a hagiography, as mentioned before. It is not a scholarly volume either. While at a personal level I would prefer seeing a more consolidated and profound analysis of Kirby’s specificities, whether artistic, authorial, or even ethical (within his creations), one actually understands that many of the clues towards that sort of secondary reading are made clear by Evanier. All things considered, Kirby. King of Comics is a terrifically balanced book about the creator and the man.
Given the fact that this is about one of the Founding Fathers of a large part of American modern comics, and of the most imitated and admired names of the business (I’m sure detractors and non-sympathizers exist, but that would bring about the question of comics genres, and no doubt politics and cultural-related issues that are beyond the scope of both this book and the present review), perhaps one would expect a much, much stronger presence of the image dimension as well. Something along the lines of The Art of Charles M. Schulz (Chip Kidd, Pantheon, 2001) or Masters of American Comics (Carlin, Karasik, Walker, eds., Hammer Museum/Moca/Yale UP, 2005, in which Kirby is included): with a bundle of sketch pages, rough pencils, exploded panels, photos, paraphernalia, and whatnot of “Kirbyana”. These things are present, undoubtedly, but in a lesser number and clout than expected. Most of the design is somewhat subdued. Lots of covers are presented but they’re rather small, and when pages are wholly occupied by images it’s usually by… pages of the comic books. However, there are enough non-comics documents to paint a wider portrait of Kirby, the man, especially Kirby the caring husband, with illustrated letters and pencils portraits done for his wife Roz. A magnificent ten page story entitled “Street Code” is fully included, in an excellent reproduction. Created by Kirby in 1983 for a fanzine, it makes us wonder what would have happened if Kirby had put his heart into more personal subjects (similar to Eisner, perhaps). Unfinished pages, censured pages, and original pages that would be “de-Kirbyed” later on are also included. There are storyboards from his later stints, character studies, and personal works. But most importantly, all the used images – as well as the epigraphs for each chapter, illuminating and that by themselves would serve up a firm portrait of the artist - are judiciously chosen and intelligently organised, making the reading of the text well-complemented and finding a pertinent balance.
Evanier makes his points quite clearly, not only on Kirby’s own reactions every time his unstoppable output would come against the unmovable tight vision of his editors and the like, but also on the repercussions his creations would have subsequently. For some time now, Alan Moore has been exploring the notion that Imagination is a real spatial entity that one can draw from (see Promethea, The Black Dossier, and so on). Kirby, in a certain sense, was not tapping into that entity as much as he was patterning and styling it. More than a “King” (of a certain area of comics), Kirby was the voice in the desert, feverish with his visions, bleeding out ink and traces on paper, the prophet of a Kingdom to come and that has been realized throughout the last decades with all the overwhelming, awe-inspiring, super-hero masses-moving projects, from Squadron Supreme to Crisis on Infinite Earths, from Astro City to Kingdom Come, from the stillborn Twilight of the Superheroes to the latest Final Crisis. Even the fact he left behind him unfinished symphonies - as all prophetic writings should be – points to that nature of his work. Prophet or King, Harbinger or Creator, there should be no doubt: his Kingdom has come.


Notes: Thanks to Samantha Sizemore, from Harry N. Abrams, for the review copy of the book. And a special thank you (very much!) to Beth Davies, for her advice on the organization of this post (I'm afraid I have not followed it correctly though, and all English blunders are of my responsibility).

9 de maio de 2008

Avis d’orage en fin de journée. Christian Rosset (L’Association)

“O estilo em filosofia é o movimento do conceito”. Esta conhecida fórmula de Deleuze, em Pourparlers (em Portugal, Conversações, na Fim de Século; pg. 192), especificada como variação, modulação e tensão da linguagem, não é somente um princípio seguido por Christian Rosset, como ainda constitui mesmo a matéria da sua escrita. Indissociáveis são o modo de escrever e o modo de pensar e, consequentemente, os frutos dessa mesma escrita e desse pensamento.
Avis d’orage en fin de journée é um título, poético, como se notará, no sentido de poesis, “fazer”, de criar uma imagem com que se desencadeie um pensamento, mesmo que na aparência de imagens encadeadas umas nas outras. De um ponto de vista superficial, poder-se-á dizer que este volume reúne artigos “escritos entre 1986 e hoje (com um hiato de quinze anos) e de os colocar em tensão, sem respeitar a ordem cronológica da sua escrita” (página 10). No entanto, não é apenas a sua ordem cronológica original que é colocada de lado, mas, libertos que estes textos estão das suas publicações originais (Les Cahiers de la Bande Dessinée, 9éme Art, l’Éprouvette,...), eles tornam-se veículos a partir do qual o autor recupera matéria discutida para relançar as suas impressões, leituras, obsessões, e ideias. O que nos força à citação de dois princípios importantes, duas imagens. A ideia de relançamento prende-se à ideia de Rosset, passando por Mallarmé, de que un coup de dés jamais n’abolira le hasard. As leituras aqui propostas são livres, capítulos uns presos à força da circunstância, a um autor, um livro, uma efeméride, mas todas elas relançando as bases do diálogo possível, e assistindo-se ao direito de se associar a ligações tão livres quanto de diversas.
Por outro, é preciso explicar que o subtítulo, hantologie, é um jogo devedor a Derrida e que pretende dar conta da aglomeração da palavra antologia com “hantise”, ou “obsessão” em francês. Os fantasmas de Rosset vogam, sem dúvida, a sua infância, os mecanismos que nela foram instalados através da banda desenhada, mas todas as ligações possíveis no diálogo da cultura: Rosset escreve sobre música, mormente a contemporânea, e é com ela que mais faz dialogar a banda desenhada (ambas são “um domínio preciso e fluido”, p. 15), se bem que não somente. Precisemos que esse retorno à infância nada tem de nostálgico. Um tema central, estruturante, é o da coexistência da melancolia com a memória (e ainda a meditação). A melancolia é vista como um movimento nada análogo à nostalgia, esta buscando um conforto, um conformismo, que a melancolia recusa.
Os objectos são variados: Hergé, Jacobs, Calvo, Cestac, Schlingo, Macherot, Forest, Baudoin, Guibert, Menu, Gottfredson, Sfar, Trondheim, Killoffer, Altan, F’Murr, mas não podemos dizer que se tratam de artigos fechados sobre esses autores e as suas obras somente. É a partir das sombras culturais lançadas pelos seus gestos que Rosset percorre (persegue?) os fantasmas que ele neles vislumbra e, mais, encontra. Não haja dúvidas, esta é uma obra filosófica com o objecto banda desenhada. Se Groensteen havia dito que ela se tratava de um objecto cultural não identificado, Rosset não a quer identificar, mas pretende lançá-la no centro da tempestade ou do caldeirão, escolha-se a metáfora, da cultura, no seu sentido mais musculado.
Há aqui um programa do pensar, falando-se, tratando-se da banda desenhada como arte – sem desculpas, mas também sem maiúsculas, o que denota desde logo uma verdadeira predisposição inteligente em dar início (quando já deveríamos ir a meio) a um diálogo com os vários territórios criativos. O contrário apenas alimenta argumentações de serão em bonomia. Qual a justificação dessa atitude? Como pensá-la? Normalmente estas questões desejam o silêncio, por duas razões antinómicas: ou a simples ignorância anti-intelectual que habita a cidade da banda desenhada (e de outros campos, terminando por se discutir, como exemplos, como o futebol de x ou o pão-de-ló de y são uma arte, misturando tudo sem escalas de valorização ou de actos criativos, cegos pela “democratização” e a “relatividade”, princípios esses também despojados da sua verve); ou pelo contrário um profundo conhecimento do perpétuo movimento do pensamento e, assim, permitindo afinal uma resposta simples, directa, cabal e até mesmo definitiva (mas não definidora): ça “est un object qui change” (p. 62). Mais, é uma arte cujas potencialidades não se encontram no cruzamento (de novo, a bastardia) com as outras artes, ou inclinações na sua direcção, mas antes na criação de um alhures próprio território (p. 64.). É caso para dizer, “conhece-te a ti mesma e deixa-te mudar no que apenas em ti pode mudar”. Christian Rosset vê a banda desenhada como um caso misto, mas entendendo nessa natureza o signo da heterogeneidade e não a da hibridação, o que se poderia tornar um argumento para a consideração da banda desenhada enquanto forma bastarda. Isto é muito profundo. Trata-se de um encontro amoroso, mas nada de misticismos de novela, de “união dos espíritos e corpos”, mas um encontro que preserva duas forças na sua especificidade. Um magnetismo.
Devo confessar, em termos mais pessoais, que a leitura deste livro foi uma mescla de admiração e de terror, por sentir uma afinidade terrível no modo como Rosset escreve, a matéria de que ele escreve, e a direcção (ou direcções, e sinuosas) que o pensamento dele desenha, que são o modo, a matéria e a direcção que o lerbd (e outros gestos) pretende cumprir – se bem ou mal, se conseguido ou não, é outra questão e não a responder por mim mesmo. Rosset fala também da necessidade de uma crítica robusta (tema recorrente, repetido, mas raras vezes cumprido efectivamente) e opõe um jornalismo pachorrento que a troco de álbuns das grandes casas escreveria linhas como “Escrevamos alegremente sobre BD de uma forma impertinente e irónica mas ao mesmo tempo celebrando a nossa devoção fetichista para com o nosso querido médium” (p. 41) a uma maneira de escrita que vê como “mais pertinente escrever por fragmentos com o rigor (e a ausência da rigidez) de uma errância aberta e atenta às transformações (changements) do terreno” (idem; itálicos do autor). Uma escrita fragmentária como “escrita democrática” (o autor, citando Baudrillard). Fragmentos que devem ser entendidos como blocos acabados em si mesmos e que estabelecem uma relação uns com os outros não como texto corrido e completo (fechado) mas como fazendo emergir a ideia de uma constelação de pensamento (símile de Walter Benjamin).
A existência dessa maneira fragmentária prende-se com o perpétuo movimento. Uma dança de mutualidades. Por um lado, a crítica deve encontrar-se com o seu objecto em transformação enquanto sombra que persiga o mesmo movimento, isto é, que dialogue directamente com essa transformação e com ela se transforme ela-mesma. A escrita de Rosset está em consonância portanto com aquele estilo de que Deleuze fala e que tem estado presente (esteve sempre presente, desde os mais estruturados dos pensadores, como Kant, aos mais rizomáticos, como o próprio Deleuze) na escrita de autores contemporâneos em torno das discussões intelectuais da arte (enquanto campo máximo). Por outro, deve-se este novo hausto à emergência de uma “outra banda desenhada que não recusa mais o risco do confronto, como toda a arte que se respeita desde a noite dos tempos, que exige uma nova crítica, a qual as outras práticas desde sempre reclamaram e obtiveram de uma maneira muito simples e quase natural” (todas as citações, p. 110). Mas o que tem parecido mais natural é o anti-intelectualismo, a auto-corrosão das condições de possibilidade de pensar com, pensar para, pensar para além de: “[o crítico] é alguém que está não na ressonância de uma corrente da sociedade (onde se encontra a multidão) mas num espaço um pouco fora do caminho” (o autor cita aqui Gébé, dizendo que o crítico deve estar “un pas de côté”. Enfim, “o trabalho essencial (da leitura, de análise, de “monstração”) consiste portanto em redimir toda a verdadeira obra de pressupostos ligados ao exercício de uma profissão – de um métier” (p. 258). Rosset alerta para a necessidade de uma permanente libertação da leitura/escrita contra uma esclerose dos discuros, inclusive os académicos.
Esta libertação, bebendo, vampirizando – no melhor sentido, pois beber sangue altera a composição do próprio bebedor, mescla a sua estrutura genética com a da “vítima”, promove um encontro inusitado e profundo e completo – as mais diversas disciplinas, autores, áreas de pensamento e criação não é totalmente um acto inédito, mesmo no campo da banda desenhada – havíamos falado há pouco de Tom McCarthy – mas é um acto ainda assim único, raro e por isso mesmo de um fulgor magnífico e portentoso.
Não sei se me apercebi de tudo o que se passa neste livro. É possível que não. É preciso esperar pela noite. É preciso que a tempestade estale. É preciso que prolifere aquilo que Rosset planta aqui (aqui, no livro, e aqui, em nós).

Vencer os medos. João Paulo Cotrim et al. (IPAD/Assírio & Alvim)

[Nota prévia aqui]
Vencer os Medos apresenta 8 pequenas histórias em banda desenhada que ilustram os oito preceitos de desenvolvimento instaurados na Declaração do Milénio das Nações Unidas (2000). A um só tempo, são apresentadas de um modo esquemático, aliando-se a um título e a um objecto da ficção, um pequeno texto orientador e um mandamento, mas também coordenadamente, uma vez que se unem pela mesma personagem, Maria, uma DJ, confrontada com os problemas, as possíveis soluções e, acima de tudo, os exemplos concretos e efectivos que não só debelam a ideia de desespero e impossibilidade, como servem de archote a esses cumprimentos. Todos estes princípios que deveriam ser elementos banais da nossa vida de cidadão (i.e., parte integrante e corrente) ainda demoram a escorrer normalmente, desde um tratamento igual dos cidadãos, independentemente do sexo (para não ir a outras “diferenças”), a uma procura pelo comércio justo, desde uma procura pela maior democratização e acessibilidade à educação possível à luta contra o HIV/Sida em várias frentes. Apesar de lançados em 2000, sendo agora apresentados nesta semi-ficção por João Paulo Cotrim, e oito artistas que se plasmam aos objectivos figurados, num tempo de crises a todos estes níveis que lhes são contrárias, Vencer os Medos acaba por se tornar não já uma apresentação dos princípios que deveriam ser banais para as nações, mas para cada um de nós uma cartilha de resistência.
Agradecimentos às editoras respectivas, pela oferta dos livros, a Sandra Monteiro, directora do MD, e ainda a Marta Lança e Pedro Sabino.

No Monde Diplomatique: As paredes têm ouvidos. Sonno Elefante. Giorgio Fratini (Campo das Letras)

Serve o presente post para indicar que na edição portuguesa do Monde Diplomatique, de Maio, se encontra uma pequena resenha crítica minha sobre um livro de banda desenhada, a saber, As Paredes têm ouvidos, Sonno Elefante (Campo das Letras), do italiano Giorgio Fratini, em torno do edifício da Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, onde se situava a antiga sede da Pide/DGS e de algumas personagens que se interligam por ela. A ele remeto.
Por ter enviado um segundo artigo menor, já em cima do fecho da edição, não foi possível incluir um segundo, sobre Vencer os Medos (Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento/Assírio e Alvim), de João Paulo Cotrim com várias colaborações. Porém, pour prendre date, incluo-o aqui no blog.
O primeiro livro é uma bela história que, apesar de simples na apresentação, tem toda uma série de características e elementos que apontam a uma grande inteligência e compreensão emotiva dos factos. O segundo, para além da diversidade dos desenhos, mostra mais uma vez como João Paulo Cotrim consegue, da ideia de “oficial” e “institucional”, criar facetas humanas. Explico melhor no artigo, mas repito aqui que este livro é “uma cartilha de resistência”.
Fica aqui o cumprimento aos dois autores principais, Fratini, agora cidadão de Abril, e Cotrim, não lisboeta ou português, mas ,como sempre, cidadão do mundo.
Agradecimentos às editoras respectivas, pela oferta dos livros, a Sandra Monteiro, directora do MD, e ainda a Marta Lança e Pedro Sabino.

7 de maio de 2008

SIGNs. Studies in Graphic Narratives (Felici Editore)

Nova pequena grande revista de estudos desta área, em franca expansão quer em termos de produção própria, repercussão cultural (a mal ou a bem, cotejando o alto ou o baixo), estudos académicos e ainda pensamento intelectual, a SIGNs dedica-se sobretudo, como explicita no editorial, aos estudos de “Narrativas Gráficas – chamem-se-lhe “comics, graphic novels or sequential art” de um período inaugural (ou pelo menos dando conta do seu advento na modernidade), entre 1830 e 1930 (antes, portanto, do aparecimento do “comic book” que alteraria por completo a paisagem e a indústria, primeiro nos Estados Unidos, depois no mundo). Pretende esta publicação italiana mas em língua inglesa, e com a participação editorial e consultiva de grandes especialistas de todo o mundo (Portugal também está presente, sendo um dos membros do editorial board o historiador Leonardo de Sá, e ainda citado num dos artigos nos seus estudos em torno da Épinal).
Apesar de ser uma minúscula publicação (em nada comparada ao IJOCA, por exemplo, ou mesmo a um dossier da 9éme Art), de cerca de 60 páginas, apresenta uma escolha judiciosa de temas, e ainda prevê sempre uma secção de reproduções em alta qualidade de trabalhos “esquecidos” ou pelo menos bastante obscuros (para um quadro de referências mais normalizado), é seguramente uma publicação a seguir obrigatoriamente por quem quiser seguir com seriedade os estudos da área, mesmo que com preocupações mais contemporâneas (a contemporaneidade, mesmo o pós-modernismo, por mais que o creia e se iluda, não é jamais ab ovo).
Vejamos o que este número inaugural da SIGNs contém. Um primeiro artigo de Roger Sabin (autor reconhecido com várias obras, sobretudo Below Critical Radar e Comics, Comix & Graphic Novels) em torno da personagem inglesa Ally Sloper, re-construindo, através de análises específicas dos seus signos e contextualizando-os no seu tempo (sensivelmente o último quartel do século XIX), a percepção contemporânea dessa personagem e as razões do seu humor, que poderá – argumenta Sabin – ser-nos estranhos hoje. Trabalho de escavação cultural, acima de tudo.
Um estudo de Antoine Sausverd em torno da Maison Quentin, uma editora francesa de estampas, gravuras, “enciclopédias infantis” e histórias de banda desenhada (antes dessa denominação), rival da Épinal, bem mais famosa. Faz-se a sua história, descreve-se a sua especificidade, o seu contributo a uma mais alta fasquia de produção de trabalhos, à reacção da Épinal que a “retiraria” de circulação, lamenta-se a dispersão da sua herança.
Jaqueline Berndt apresenta a primeira parte de um artigo (a continuar, portanto) em torno das ligações, ou melhor, da falta de ligações efectivas, entre as tradições mais antigas de desenhos “humorísticos”, “narrativos” ou “livres” (não se tratam de sinónimos, nem complementaridades, mas naturezas bem diferentes, explicitadas por Berndt) no Japão e a mais moderna concepção da mangá: ou seja, fala-se do Choju giga, de outros emaki, de kusazôshi, das ukiyo-e, da Manga de Hokusai, de Kitazawa Rakuten, de Osamu Tezuka, mas alertando-se mais as diferenças fundamentais entre todos estes trabalhos, as ligações com tradições diferentes e abertas às influências estrangeiras, evitando-se o facilitismo de uma continuidade que raio o nacionalismo cego. Excelente correcção de toda uma série de “verdades aceites” sem um estudo profundo de uma cultura muito diferente, inclusive, por exemplo, a origem efectiva da palavra manga (erro em que nós próprios incorremos por seguir outras fontes menos correctas?, ou antes, até à próxima correcção?).
Finalmente, é apresentada uma série de estampas florentinas (finais do séc. XVIII) que, não tendo uma sequência fechada, contam ainda assim uma história: Lo spozalio de Marfisa. Ainda que possam ser vistas como estampas mostrando os comportamentos sociais das altas classes da sua época, as personagens são representadas de um modo grotesco – corpos anões, cabeças grandes, rostos com algum tipo de deformação gráfica – tornando tudo, a um só tempo, aflitivo e cómico. Um estudo introdutório de Alberto Milano contextualiza a série, colocando-a em diálogo com outros trabalhos da altura, explicando o contexto de produção, expondo os seus autores, e avançando ainda linhas de interpretação ancoradas em estudos concretos e correctos.
De facto, SIGNs é sinal de uma área de estudo cada vez mais consolidada, de caminhos escorreitos e correctos, e com direito a cidadania como outro qualquer. É caso para dizer que é bom sinal.

Supernormal. Marko Turunen (Daada Books)

O título deste livro de bolso de mais de 400 páginas reúne trabalhos provenientes de duas séries de fanzines que Marko Turunen tem vindo a fazer nos últimos dez anos: o Super e o Normal. O autor explica: “Super era um comic book sobre pessoas com superpoderes, Normal sobre pessoas com superpoderes”. Parece de algum modo pouco natural que o que pareça mais importante, ou regra, é que tenham superpoderes, e que possam existir pessoas sem eles, e não ser o contrário aquilo que pautaria a relação (apesar da palavra “normal”), mas tendo em conta a pesquisa de formas de Turunen, não nos surpreende. Recordemos, uma vez mais, de que muitas das ilustrações que Turunen fez para publicações finlandesas (e expostas no último Salão Lisboa) utilizavam conhecidas personagens do universo Marvel para transportar conceitos ou sensações do nosso mundo, “real”.
Esta colectânea não apenas ajunta numa só publicação, e em língua inglesa, esses anteriores fanzines, como também serve de um só objecto condensando – ou dando-nos a ver o que era separado numa fórmula condensada - várias vontades expressas. Dá-se uma (contínua) oscilação de géneros, de estilos, de naturezas, de humores, de aproximações, de pensamentos, e de gestos. Uma diversidade que pretende também responder a várias necessidades do momento, a circunstâncias, a leituras flutuantes (de Chris Claremont a companheiros dos independentes europeus), e a um diálogo com a sua mulher – que em parceria participa nalguns dos “episódios” da colectânea. Há trabalhos em fotografia, manipulação de fotocópias, trabalhos mais “cinematográficos” e outros mais “íntimos”, temas mais pessoais e outros mais oníricos, desenhos infantilizados e estratégias mais complexas e cheias. Quase todas as histórias apresentam-se de um modo fragmentado, como se fossem uma pequena parcela de uma maior história, mas da qual jamais saberemos o início ou o desenlace, como se fossem meras promessas que entendêssemos, de imediato, jamais se cumpririam. Mas Super ou Normal, são promessas que preenchem um desejo estranho que não sabíamos existir, até fruirmos as histórias.

4 de maio de 2008

Ma Circoncision. Riad Sattouf (L'Association)

Se Riad Sattouf experimentara através da sua série Les pauvres aventures de Jérémie aquilo a que se pode dar o nome de “auto-ficção”, “desdobramento”, ou talvez somente uma ficção largamente informada por experiências pessoais e tomando-se o próprio autor como espectro e modelo, com Ma circoncision há uma decisiva inscrição no campo da autobiografia. O livro é molecular, como se entenderá pelo título: isto é, elege uma situação precisa, a da circuncisão (provindo de ma família muçulmana, a circuncisão é obrigatória e ritual), e a partir disso constrói a sua narrativa, simples. Simples pois Sattouf não elege esse evento para o tornar numa qualquer plataforma, na senda de Proust, de emergência de um maior universo de referências, tal qual como cultivado por autores como Fabrice Neaud ou Edmond Baudoin, nem para ir construindo um maior friso da sua infância e adolescência, como Marjane Satrapi, Chester Brown ou tantos outros. A narrativa circunscreve-se (o verbo não é inocente) aos eventos imediatamente relacionados com esse ritual: a descoberta da diferença entre o seu “zizi” e o dos seus companheiros (nesta idade, Sattouf vive na Síria, e é o único louro no meio dos seus amigos, todos emulando Conan, o Cimério), a decisão do pai em o circuncidar, a tentativa de boicotar esse ritual pelo próprio Riad e subsequente aceitação contra um suborno (não cumprido), o ritual em si, a recuperação, e a constatação de que isso nada havia alterado à sua existência.
Todavia, é preciso notar como alguns dos comentários externos do narrador estabelecem uma outra camada de tempo, o do presente, como olhar crítico sobre as práticas e comportamentos da sua infância, não só os seus mesmos como os da sociedade em geral que o rodeavam. Por exemplo, os sentimentos anti-israelitas são demonstrados continuamente, como algo normal na sua cidadania de então, mas é esclarecido de uma forma subtil que se tratam de sentimentos ultrapassados. O modo de educação, a estratificação social da Síria, e alguns factos “pesados” da vida cultural desse país são apenas mostrados, por vezes com comentários mínimos ou nenhuns, mas é isso suficiente para nos apercebemos de que o autor, no presente, vê essas mesmas realidades como criticáveis e desmontáveis.
O próprio modo de construção das páginas, mescla de diário gráfico, com breves apontamentos das imagens e texto, com as personagens flutuando numa página branca, com pequenos desvios pela fantasia (os diálogos com o robot gigante Goldorak, ou Grendizer), ajudam a uma maior concentração da diegese, da atenção sobre o evento central mas à sensação de especificação dos elementos que o autor deseja ver escrutinados, desmontados e delidos pela distância – como quem diz, “isto passou-se assim, mas passou”.
O que se explora sobretudo é a angústia “antes do penálti” da criança, que entende vagamente o que se vai passar, mas sem entender os contornos exactos, o que aumenta essa mesma angústia, misturando o terror com a extrema curiosidade (daí que ele pergunte sistematicamente toda uma série de coisas a muitas pessoas, pareça irrequieto no seu desejo de satisfação da curiosidade, etc.).
Há uma história convoluta deste livro. Ele foi publicado em primeiro lugar em 2004 na colecção Bréal Jeunesse, da qual era J.-C. Menu o editor (no sentido inglês do termo). No entanto, a editora (isto é, a casa editorial) não só impediu que o livro pudesse ser vendido dentro dos mesmos moldes que os restantes livros da colecção (que é infantil), obrigando a subir a faixa etária dos seus leitores, como chegou mesmo a censurar os diálogos: sim, é um livro infantil, mas diz-se “merda”, “putas”, “foder”, fala-se de sexo sem conhecimento de causa (“o homem mete a pila entre as pernas da mulher e faz chichi lá dentro”), tecem-se comentários racistas em relação aos israelitas, e é-se cruel como apenas as crianças conseguem ser cruéis. Toda essa carga negativa, todavia, vive sob a campânula da distância e ironia do autor, e serve como campo de retracção mas também humor. No seu papel de editor (ambos os sentidos) da L’Association, Menu resolveu reeditar este livro na nova colecção Espôlette dessa casa alternativa.
Sendo esta uma realidade médica e religiosa relativamente alheia à esmagadora maioria da população portuguesa, ou pelo menos de um modo público, ritualista, social, Ma circoncision será antes fruído enquanto visitação de um pequeno trauma de bolso da infância (digo isto porque não constitui de facto nenhum “trauma” propriamente dito, apenas uma recordação de uma angústia, breve dor, pequena transformação). No entanto, num contexto que seja mais significativo em termos sociais e religiosos, é bem possível que este livro seja um poderoso instrumento de educação e de pensamento descomplexado, não para crianças, mas com as crianças. Não é de modo algum um livro infanto-juvenil complacente e estupidificante para com as mesmas. É um gesto inteligente e bem profundo, que entre nós é conseguido por autores como Manuela Bacelar, Daniel Barradas, João Paulo Cotrim. Mais, e bem pelo contrário, Ma circoncision plasma-se de modo preciso ao modo de pensar delas, que jamais é “politicamente correcto” ou “equilibrado” ou “tolerante”. É falando nesse tom relativamente forte e violento que esses mesmos erros são corrigidos, é abordando cara-a-cara essas realidades a apagar que o primeiro gesto de apagamento será feito. Não é ocultando os males que se faz educação, mas antes através da exposição mais sincera e directa possível, e esperar que a luz diurna os dilua permanentemente.

3 de maio de 2008

ŚmiercionoŚni. Łukasz Ryłko (Kultura Gnieww)

Este é um livro de banda desenhada polaco que me chegou por intermédio de Jakub Jankowski, professor de língua e cultura portuguesa (e sua tradução) na Universidade de Varsóvia (Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, secção Luso-Brasileira), e coordenador de traduções de banda desenhada portuguesa para polaco (já se fez a d’A Pior Banda do Mundo, de José Carlos Fernandes, seguem-se outros títulos contemporâneos) e mantenedor de um blog sobre a banda desenhada portuguesa, além de artigos para a Cadernos de Banda Desenhada (em polaco, claro).
Significa esta introdução que a aproximação à sua leitura terá de ser feita por pequenos passos, uma vez que se trata de um objecto que me chega sem quaisquer elos anteriores que mo permitam inscrevê-lo num qualquer nicho confortável de referências. Não obstante, é a sua leitura efectiva que faz desprender manchas de sentidos.
Tal como algumas outras obras já aqui abordadas da banda desenhada contemporânea, e que parece ser uma estrutura ou uma maneira dominante, ŚmiercionoŚni (leia-se “Schmér-chianoshni”) é uma diegese coesa que emerge por apresentar, desse prisma, facetas aparentemente desconexas. Por outras palavras, uma rede omposta pela complexidade que emerge do cruzamento das linhas individuais de narrativas, aparentemente disjuntas. Havíamos visto o mesmo em Ice Haven, Wimbledon Green, Pascin, por exemplo. Há um grupo de personagens que não se cruzam entre si totalmente, mas estabelecem relações suficientes para que - com tempo e sucessivos episódios, em que a personagem secundária anterior se torna a principal contracenando com uma outra que depois assume o papel principal, etc. – possamos nos aperceber de como estabelecer essa rede.
A tradução do título, ŚmiercionoŚni, é “Os mortíferos”. No entanto, como o arranjo gráfico do título separa a parte integrante que se lê “Śni”, a qual é um verbo na terceira pessoa do singular em polaco e que significa “ele sonha”, aperceber-se-ão imediatamente de um jogo não só intraduzível como significante para o desvendar do livro. Este é o primeiro livro deste jovem autor, Łukasz Ryłko (leia-se "Wucas Reulco") nasceu em Cracóvia, em 1977, apesar de ter já feito outros trabalhos anteriores.
De facto, podemos ver este livro como uma alegoria sobre ou em torno da morte (e do tempo, literalmente o companheiro ou sócio da morte), mas também em torno do sonho. Alegoria poderia ser uma palavra-chave. O primeiro protagonista é um jovem que, em alguns aspectos figurativos e simbólicos recordará Tintin, Indiana Jones, Zig e Puce, e toda uma série de pequenos heróis crianças aventureiros. Ela vinga-se da Morte por lhe ter arrebatado o pássaro de estimação e, depois de ter recebido um cão de grandes orelhas, resolve ir procurar a Morte no seu próprio palácio e “matá-la”. O episódio que dá conta destes acontecimentos intitula-se “Castigo”. As ligações simbólico-herméticas são relativamente claras, ainda que disfarçadas de conto de tom infantil: uma gaiola aberta, o voo vertical para o outro nível, o arrancar do olho da morte, e até o cão psicopompo. Os cinco episódios seguintes – no interior do livro, ainda que cronologicamente sejam apresentados desordenadamente - vão mostrando o fim de um rol de personagens que, apesar de encontrarem também a morte, por vezes a sua mesma, mostram como que uma espécie de revolta. Temos uma mulher obesa que seduz um homem (um sósia de Harold Lloyd) e termina num pequeno momento de voo libertário, um escritor sem sucesso que acaba por tentar um pacto com o diabo (conseguindo-o, mas de uma maneira inédita), uma ninhada de ratos que se vinga de um gato (descobrindo que se trata do diabo), um detective que procura uma boneca raptada e termina ele próprio sequestrado (de maneira misteriosa) durante um espectáculo teatral/de marionetas/de magia, e um velho chapeleiro que, depois de ver a mulher morrer, tem uma ideia para um novo chapéu (e que é usado por todas as personagens citadas atrás, sendo um dos objectos que permite a reconstrução da ordem do tempo cronológico).
Em cada um deles, a presença de objectos, criaturas personagens facilmente identificáveis, e até mesmos gestos heráticos, faz pensar numa determinada ordem do simbólico, ligeiramente disfarçada nestes tons leves, mas que pretenderá, talvez, apontar a um outro nível de complexidade.
Por outro lado, estando indicado que se trata de uma série a continuar, esta desconectividade poderá ou ser rematada por um sentido último, ou continuada numa crescente complexificação destes estratos e disseminação pelas personagens.
Apesar de ser raro surgir um diálogo ou onomatopeias (inclusive na queda de um edifício), as palavras estão quase sempre presentes, espalhadas nos cenários, em escritos, ou nos nomes de negócios (uma carrinha de mudanças chamada “Caronte” remete-nos a alguns dos jogos, nalgumas ocasiões, de J.C. Fernandes, ainda que o autor português seja bem mais subtil que Ryłko. Livro a preto e branco, há uma instância onde surge o vermelho, a saber, no contrato que o escritor quer fazer com o diabo, apontando assim para um nível fora e/ou acima da diegese em que se inscreve. De um certo modo, espelha o movimento geral do livro, o qual, apresentando algo que se encerra nas suas folhas – as histórias, os acontecimentos “visíveis”, as personagens “vivas” – indicia a existência de uma continuidade paralela, para além dele mesmo.
Nota: agradecimentos a Jakub Jankowski (e Agnieszka Rusinowska), não só pela oferta do livro, mas pelo seu apoio na sua tradução e troca de impressões para chegar a este artigo (as informações linguísticas e sobre o autor são todas dele, obviamente).