Sendo este livro da segunda metade da década de 1970, pertencerá àquele grupo de livros de Tezuka a que se dá o nome genérico de “da maturidade”, desejando assim apontar-se para uma diferenciação de grau das primeiras obras, grau relativo aos temas, em primeiro lugar, mas talvez também a algumas das estratégias visuais empregues, o modo como se desenvolvem as personagens, a complexidade da trama. Se for essa a perspectiva para com a maturidade, então, sim, MW inscrever-se-á nesse grupo, sem quaisquer dúvidas. No entanto, é necessário não perder de vista igualmente que esta é uma fase da carreira de Tezuka em que ele é já um autor consagrado, premiado, viajado e com inúmeros convites para vários projectos para além da mangá e do animé (inclusive de escultura), disciplinas nas quais continuava a trabalhar afincada e constantemente, graças ao seu cada vez mais consolidado estúdio (apesar das suas biografias encomiásticas gostarem sempre de sublinhar que grande parte do trabalho era feito pelo próprio Tezuka, especialmente nas bandas desenhadas). Ao mesmo tempo que esta obra, Tezuka desenvolvera Ode to Kihirito, mas também contribuíra com histórias curtas como “O rapaz da Chuva” ou as de personagens infanto-juvenis como o Rapaz dos Três Olhos, Black Jack e Unico. Esta menção serve somente para tornar claro que o trabalho de Tezuka era profissional, e movido provavelmente por uma constante preocupação em garantir uma presença em todos os públicos possíveis da banda desenhada no Japão.
Já havíamos também salientado o facto de que Tezuka, devido à emergência da gekigá, ter começado a investir parte da sua criatividade a títulos que fossem um pouco mais além do mero entretenimento infanto-juvenil a que o seu trabalho havia habituado o público, e que ainda hoje é a fonte de maior rendimento e fama, se bem que a recente tradução de obras mais complexas possa vir a inverter essa mesma imagem. No entanto, MW tem toda uma série de características que a diferencia da demais.
O livro é apontado como um “dos mais negros” de Tezuka, por mergulhar numa realidade sem condescendências para com a fantasia ou o maravilhoso, mas também por lidar com temas algo controversos. O título, "MW", vem de um suposto gás venenoso empregue como arma militar por uma nação X – apesar de, mais tarde, os Estados Unidos serem indicados por nome noutras circunstâncias, será óbvio que esta misteriosa nação com a qual o Japão tem uma relação privilegiada, permitindo-lhe bases militares no seu território e garantindo-lhe protecção política é a América. Uma breve consulta dos problemas reais no Japão da época, com tensões permanentes (herdeiras dos anos 60) entre as facções de esquerda, a oposição à permanência dos Estados Unidos enquanto força militar e de pressão económica, os escândalos financeiros, e alguma actividade da direita (na qual Yukio Mishima teve um papel preponderante) serve como base de entendimento deste tipo de trabalho de Tezuka, que não lhe parece natural. Parte do livro centra-se num retrato pouco lisonjeiro da classe política, e chega-se mesmo a colocar em questão toda a relação de soberania do Japão (e dos seus representantes eleitos) face às obrigações lançadas pelos Estados Unidos. Desconheço se teria MW causado alguma celeuma então, transmitida numa publicação de grande circulação mas que visava um público-alvo de jovens adultos que talvez não estivessem directamente envolvidos em acções de cariz político, mas seja como for é inédito nos trabalhos de Tezuka uma abordagem tão directa de problemas inerentes ao seu Japão contemporâneo. Ao contrário das outras obras, onde sempre existe alguma nota de esperança ou de redenção no infinito, MW é uma tragédia em que o único possível “final feliz” apenas pode passar pela morte e destruição dos seus protagonistas; e mesmo assim, essa questão fica em suspenso.
A razão disso é que as personagens principais não poderiam ser mais atormentadas. Toda a trama se centra na relação de dois homens, Garai e Yuki Michio, que se conheceram numa pequena ilha, sendo o primeiro um membro de uma turma de delinquentes e o segundo uma criança que por ali passava. Por razões das circunstâncias, acabam por se encontrar numa gruta no alto da ilha quando parte do gás se liberta pela ilha, matando todas as pessoas que ali se encontravam. Garai e Yuki sobrevivem, mas não sem maleitas. Uma, derivada do gás: por uma qualquer razão, Yuki ingere uma quantidade mínima do gás que o afecta, tornando-o num psicopata implacável. Outra, mais profunda, é da descoberta da homossexualidade dos dois, uma relação carnal que se manteria ao longo dos anos. A história começa 16 anos depois destes acontecimentos, em que Garai é já um padre católico e Yuki um “sarariman” de sucesso. Aos poucos é que o plano se desvela, primeiro pensando nós que Yuki se move numa elaborada vingança contra os responsáveis militares e políticos do desastre com o MW, depois apercebendo-nos de que não é mais do que um simples plano de um demente.
Existem muitas outras dimensões em MW que talvez merecessem ser explorado, mas prendamo-nos, por ora, a um deles. O da representação da homossexualidade. Este é um território muito perigoso, que se sente que Tezuka não estaria completamente à vontade. Se por um lado bastas vezes nesta narrativa é indicado que a realidade dos homossexuais é aceite noutros países (ocidentais), Tezuka representa-os nestas duas personagens, um padre católico e um psicopata, ou outros no interior de um clube, onde se encontram travestis e orgias secretas. No fim, portanto, a imagem não é de todo positiva, mas sim a de homens (e mulheres) que não só têm de esconder essa sua faceta como ainda estabelecem redes suspeitas de influência e comportamentos de desbragamento moral. A defesa estará talvez no mesmo patamar da representação de pessoas de outras nações que não os japoneses, as mais das vezes atravessando graus variáveis de caricaturização e de preconceitos: a de que Tezuka era o primeiro a explorar estes assuntos. Mas isso não é defesa suficiente, e apenas o poderemos entender como passos primeiros que ligeiramente levavam para longe da ignorância total. Ainda hoje a homossexualidade masculina é tratada pelas shoju manga como matéria romântica, mas que nada tem a ver com os problemas tangíveis no Japão.
Curiosamente, é a relação entre o padre Garai e Yuki que traz uma das mais belas páginas de MW, numa utilização metafórica - isto é, que não exerce qualquer peso de realidade no interior da diegese - das ilustrações de Aubrey Beardsley, ligeiramente alterada para acomodar o rosto destas personagens. E uma vez que são retiradas de Salomé, talvez haja aqui um desejo de estabelecer algumas linhas de intertexualidade. O que não é de surpreender, já que Tezuka costuma sempre citar algumas das fontes que utiliza, integrando-as de uma forma mais ou menos subtil na própria história. Por exemplo, quando o padre Garai conta toda a história da população morta na ilha a um jornalista, este confessa-se surpreso mas compara esse relato a um romance de Jack Finney (conhecido pelo que daria origem a Invasion of the Body Snatchers), o que nos lança à ideia de Tezuka se ter parcialmente baseado nessa história para a criação de MW, revelando ao mesmo tempo a humildade e generosidade de Tezuka em tornar essas ligações o mais claras possíveis.
Apesar do tratamento superficial de algumas das questões apontadas, é necessário frisar que as personagens são tratadas de um modo que, para Tezuka, seriam bem mais profundas do que o habitual. Por exemplo, poderão entender como a crise interna, quase shakespeariana, que obriga o padre Garai a falar consigo próprio é tratada nesta página. No momento em que ele mesmo responde às suas questões, é quando o reflexo surge na superfície do vidro como se se tratasse de uma personagem outra, com a qual dialogasse. É uma estratégia visual-narrativa bastante simples, sem dúvida, mas extremamente efectiva para nos apercebermos dos problemas que dilaceram esta personagem, dividida entre um desejo (proibido por várias razões) e uma obrigação moral. É nestas questões de pensamento moral, as mais das vezes expressas por Garai, que MW toca perto de outros títulos como Apollo’s Song, Phoenix ou mesmo Buddha: questões como as de retribuição e de redenção, a da origem do mal e como este pode delir a potencialidade do homem para o bem, a tarefa que compartilhamos em relação ao esforço de aperfeiçoar o homem e, com ele, o mundo. Todavia, como se disse e se foi indicando com vários elementos, o fim de MW aponta para uma resposta quase niilista e que nos faz pensar que as ideias positivas de Tezuka se inscreviam no espaço das ficções de fantasia apenas; quando propõe um título estritamente realista, essas ideias dissipam-se quase totalmente, acabando encerradas no idealismo das suas personagens, mas não na da própria obra.
22 de março de 2008
MW. Osamu Tezuka (Vertical)
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Etiquetas: Japão
18 de março de 2008
The Invention of Hugo Cabret. Brian Selznick (Scholastic Press)
A primeira informação que gostaria de deixar bem clara é que a descoberta deste livro é bem mais interessante se se não recorrer a quaisquer tipo de referências extratextuais – o site do livro, sinopses, artigos explicativos, entrevistas – mas antes o leitor se deixar entrar nele de um modo alheio ao que lhe está “de fora”. Não se trata de uma descoberta ou surpresa surpreendente, simplesmente uma atitude a que esta obra convida, de um modo singelo e descomprometido.
Este livro recebeu o prestigioso prémio Caldecott, nos Estados Unidos, o que o colocaria de imediato no território do “livro ilustrado”; e mais, no de “livro infantil”. Mas é algo mais complexo que isso. Um rápido folhear do livro revelará que algumas páginas são ocupadas apenas por texto, e outras apenas por imagens. Isso parecerá reforçar essa primeira impressão e nome. No entanto, a relação entre estas imagens e estes textos, ainda que de concorrência separada, não o fazem de modo em que o grau de complementaridade seja reduzido. [v. aqui uma discussão mais alargada, para entender os termos] Se, com Michel Melot, concordamos que a imagem da ilustração (inteligente), em relação ao texto, se torna “uma técnica diferente de apreensão do conhecimento”, em The Invention of Hugo Cabret vai um ou dois pontos mais longe para se tornar o veículo de transmissão de conhecimento. É que não se trata somente de uma história contada pelo texto onde depois surgem algumas imagens como âncoras da imaginação (criação e projecção das imagens da parte do leitor), tampouco de um livro em que são as imagens que conduzem a diegese tendo de quando em vez alguns textos para especificar um sentido. Há uma distribuição autónoma de trechos narrativos ora entregues à responsabilidade de uma sequência de imagens ora a um mecanismo puramente textual.
Sem revelar muito da história, precisamente para que se mantenham os elementos de surpresa necessários à fruição – cujo acto físico do folhear o enorme livro, de 550 páginas, é central – de The Invention of Hugo Cabret, revelaremos porém que este é o nome do protagonista, uma criança caída na miséria da Paris dos anos 1930, mas cuja queda foi acompanhada ainda assim por uma herança protelada e misteriosa deixada pelo pai, que morreu. Essa herança, na forma de um autómato, está profundamente ligada à história de uma outra personagem, um velhote vendedor de brinquedos na estação onde Hugo “trabalha”. É a história destes dois personagens, e dos que os rodeiam e com eles se intimam, que o livro conta. Mecanismos de relógio, de autómatos, o acto de desenhar com a mão e com a luz, a criação do cinema, as pequenas passagens existentes entre o sonho e a realidade, são não apenas os temas secundários, mas os elementos constitutivos da obra.
Sem querer com isto querer dizer que existe alguma superioridade de uma língua para outra, mito no qual não acredito, nem tampouco na intraduzibilidade das línguas, digo porém que existe uma palavra em inglês que serve na perfeição esta história: “touching”. É que ela não é somente comovente (um movimento com) ou emocional (ainda um movimento, para fora) ou patética (capaz de sentir emoção), mas chega a exercer o tocar. O acto contínuo da leitura compagina com as acções decorrentes no livro, e o resultado final revelar-se-á implicado, como se o leitor de repente fosse puxado para o interior do universo diegético, graças a uma pequena informação textual que “reescreve” toda a obra enquanto objecto e ilumina o próprio título. Isto é, descobrimos qual afinal é a “invenção” do protagonista Hugo Cabret.
A escrita em si é de uma aproximação bastante simples, mergulhada em toda uma série de estratégias sobejamente visitadas pela literatura infantil em língua inglesa, cuja permanência dos “clássicos” é bem mais perene do que entre nós. Selznick não é um autor de inventabilidade formal como Dr. Seuss ou Shel Sileverstein (cujos versos estão, por vezes, na orla do absurdo), mas um cultor da simplicidade, quase como Sendak, ainda que o onírico de Selznick seja mais preso ao real e ao nocturno. A escrita quase abdica desse elemento de literariedade, o elemento de estranheza para com a língua “corrente” dos dias, servindo apenas de veículo das necessárias informações para a prossecução textual da história. A beleza emerge dos eventos, não da plasticidade da linguagem. Os desenhos, por sua vez, são de um carregado grafite, cujas tramas se diluem no que parece um contínuo de sombra. Em termos figurativos, lembrar-nos-á autores como Garth Williams (o primeiro a ilustrar Stuart Little) ou Renée French, mas como se essas figuras estivessem sob uma patina de grafite, quiçá desejando criar assim, ideia corroborada por outras estratégias ao longo do livro e balizando-o visualmente, uma noção de estarmos a observar um antigo filme, reforçado, para mais, pelas bordas negras de todas as páginas (as de texto ainda com uns arabescos que recordarão os inter-títulos do cinema mudo). Todavia, existem pequenos encontros de um grau maior de redundância, em que o texto já prevê algo que surge nas imagens sem que estas se desdobrem para uma nova direcção ou dimensão, ou uma dada sequência de imagens dispensa uma frase que, não obstante, é logo a seguir ofertada no texto. A pesquisa de Selznik acaba por não se desenvolver num afastamento produtivo, mas antes numa segurança, uma vez por outra dispensável.
O autor cita outros autores, como Remy Charlip - que participa neste livro, mas não irei explicar como, ou destruiria parte do charme do livro -, mas trata-se antes de uma cumplicidade mais subtil, de estruturação do livro, do que de afinidades de estilos. É essa estruturação que torna Hugo Cabret uma obra interessante, ainda que a sua prestação exacta possa ser esmiuçada apontado algumas fraquezas. Charlip é um coreógrafo relativamente famoso, e há provavelmente uma associação interessante a fazer entre os movimentos coordenados do corpo e o acto de leitura e este livro em particular, que tanta insistência faz em movimentos exactos, pré-planeados, repetitivos... E, por outro lado, a história envolve uma outra dimensão artística, como disse, o cinema, e um tipo ou família de cinema muito particular, cujas características revertem para uma maior complexidade de intertexualidade artística deste livro. A ideia dos corpos enquanto máquinas a que se devem “dar corda”, por exemplo, é um das suas mais salientes e importantes facetas.
As atitudes oníricas que se abrem com esta rede de referências são claríssimas no interior do livro, que chega mesmo a fazer “citações” que apenas sublinham ainda mais estas breves notas de leitura.
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17 de março de 2008
Tamara Drewe. Posy Simonds (Jonathan Cape)
Este livro, de banda desenhada, para além das naturais cenas, isto é, os eventos representados nas mais normalizadas estratégias da banda desenhada (imagem), apresenta ainda trechos de texto (recitativos) assaz longos, como se tivessem sido retirados de um diário, de um longo pensamento como acontece nos textos literários, ou de um momento de interlocução directa com as personagens do livro, inseridos nas pranchas. Essa é uma das características do trabalho de Simmonds já presente no livro anterior, Gemma Bovery, característica que coloca estes livros num campo entre o da banda desenhada e o da literatura, quer a ilustrada quer a tout court. Não acontece o mesmo que em Hugo Cabret de Selznik, onde a estranheza é mais complexa; digamos que há uma maior inércia em incluir Tamara Drewe na banda desenhada ainda que existam estas estratégias algo estranhas – mas não inéditas, pois basta pensar na história desta linguagem para nos apercebemos que nem sempre a banda desenhada seguiu a mesma maneira de transmitir a parte textual, com legendas minimizadas e balões, mas empregando grandes blocos de texto “externo” à imagem. (Mais)
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Etiquetas: Reino Unido
15 de março de 2008
Doom Patrol. Grant Morrison et al. (Vertigo/DC)
São muitos os autores que são apresentados como os arautos do pós-modernismo, mas os famosos versos de Yeats talvez tenham surgido como a sua mais clara fórmula e síntese, ainda que de tom negativo: “Things fall apart; the centre cannot hold;/Mere anarchy is loosed upon the world”. A perda de centro – dos “valores”, diriam os conservadores, de um quadro de referências, venham estes do campo da religião, da sociedade, da economia ou desse evasivo animal a que se dá o nome de “cultura” – é considerado pelos seus detractores como algo de negativo, obviamente, e toda as manifestações da dita cultura de massas são factores que exponenciam essa dissolução. O cinema, a televisão, a rádio, o jazz, o rock, o vídeo, os jogos de computador, e, claro, a banda desenhada. Pense-se em Kracauer, em Adorno.
Mas a perda de centro, e, consequentemente, a anarquia – “sem” archon, “chefe” – pode ser vista de um ponto de vista positivo, libertário, em que as barreiras e fronteiras são abolidas para permitir um trânsito feliz entre territórios, do qual poderão emergir soluções imprevistas. Tratar-se-á de uma contínua e feliz desterritorialização, um baile sem fim onde se troca de parceiros a cada volta e nos obriga, a cada vez, a termos de pensar, repensar e agir para nos adaptarmos. Houve pensadores também que encontraram na mesma situação o seu ângulo positivo. Walter Benjamin brilha no seu centro, outros viriam mais tarde.
Grant Morrison tem um objectivo geral em toda a sua obra, que é precisamente o de nos lançar nesse movimento perpétuo de nos desdobrarmos para fora, procurando novas maneiras de, acima de tudo, ser. E emprega um veículo privilegiado para o fazer, que é a banda desenhada. Doom Patrol foi um dos primeiros títulos, com Animal Man, de banda desenhada norte-americana de super-heróis – e por isso, de personagens que não pertencem aos autores, mas são marcas registadas das suas companhias - que Morrison escreveu, e não perdeu tempo em as transformar em laboratórios experimentais de metanarrativas, isto é, histórias que se pensam a si mesmas, ou que obrigam a reflectir sobre elas mesmas enquanto histórias, não permitindo que se erga a ilusão de que são apenas construídas para uma fruição simples.
Doom Patrol foi um título criado nos anos 60 pela dupla Arnold Drake e Bruno Premiani (ainda com Bob Haney) sobre um grupo de estranhos super-heróis, com corpos e poderes bizarros, e cujas aventuras os colocavam naturalmente em confronto com inimigos tão bizarros quanto eles – predicado de toda a ficção dos super-heróis. Em termos da história deste particular campo dos comics, importaria ver o quão diferente este grupo de personagens foi em relação ao que se criava na sua época (não podemos negar que Gould, em Dick Tracy, explorou profundamente a relação entre a estranheza dos corpos e as personalidades que albergavam), e quais as razões que levariam um outro grupo similar, os X-Men, a garantirem um maior sucesso– que terá a ver com estratégias comerciais e cruzamento dentro do universo Marvel, mas igualmente com a criação de histórias mais expectáveis -, mas esse seria um exercício retrospectivo, e que não permitiria entender que estas personagens, quando foram colocadas nas mãos de Morrison, eram simplesmente um produto sem qualquer risco, ou por outras palavras, lixo descartável e moldável conforme o autor bem entendesse. Morrison conseguiu isso mesmo, transformando esse “lixo” comercial num veículo verdadeiramente alquímico de transformações internas: das personagens, da forma de criar comics, de pensar esse tipo de narrativas, de reponderar a própria existência. Porque esta é uma das características mais fortes de Morrison e que o coloca como autor único (ainda que não “sozinho”) no panorama contemporâneo, a de empregar a banda desenhada como máquina de pensamento da ontologia humana. (algumas desta considerações desenvolvem-se da leitura do primeiro ensaio, e outros, do livro agora online de Steven Shaviro, Doom Patrols, que convido os leitores a descobrir).
Não podermos dizer que existe uma personagem principal, já que se trata de um grupo de super-heróis, mais ou menos flutuante, não apenas em relação ao número de membros (oscilando entre os seis) como também à natureza desses membros (Crazy Jane, que tem - não “sofre de” - personalidade múltipla; Rebis, que é duas pessoas, homem e mulher, num mesmo “casamento químico”). Não obstante, uma vez que muitos dos episódios começam ou se centram nas percepções de Cliff Steele, um ex-piloto de automóveis que, depois de um acidente (outra das premissas dos super-heróis, a catástrofe que impele à emergência do heroísmo – e a realidade norte-americana parece beber cada vez mais desse princípio pertencente até à data apenas ao círculo ficcional) acaba por ver albergado o seu cérebro num corpo de robot e, mais tarde ainda, destruído o seu cérebro, mas a sua “vida” salva num disco digital. Ou seja, paulatinamente, Cliff deixa de ser um homem em termos biológicos, e passa a existir numa potencialidade de cópia (o disco). É ainda “um homem”? É uma “pessoa”?
Devemos alertar, para os que não leram Doom Patrol, que apesar destes pontos de partida, ou de chegada, esta é uma série que se diverte e nos diverte em cada trama individual, em cada nova aventura, com todos os clichés, ingenuidades e soluções do género de comics em que se insere. Digamos que não oculta o que é em primeiro lugar – aventuras descartáveis de super-heróis – mas, bem pelo contrário, aceita de braços abertos essa mesma condição. O que não deixa de ser, mais uma vez, o princípio positivo do pós-modernismo, um entendimento de que não é possível criar-se “de novo”, por isso mergulha-se numa prática contínua de “refazer” (este ponto é discutível, mas fica, por ora, suspenso).
Steele, portanto, pode ser a personagem que assinala uma possível perspectiva central em torno da qual se organizam as histórias de Doom Patrol escritas por Morrison (e que agora acabaram se ser compiladas em seis trade paperbacks). Ele marca, na sua própria existência, alguns dos binómios explorados na série: corpo mecanizado/personalidade fluida, ciência/metafísica, segurança da razão/angústia existencial, objectivismo/subjectivismo. Quer o objectivismo quer o subjectivismo são, a seu modo, mitos, isto é, histórias, isto é, estruturas que tentam criar uma ilusão de ordem onde os elementos são eles mesmos fluidos e fluida é a relação que estabelecem entre si. Por isso mesmo não deveremos crer que cada uma dessas histórias subsista solitariamente, mas antes que se reforça ou que faz emergir uma imagem mais completa se uma se cruzar com a outra, criando uma história mais complexa, em que a primeira bifurca na segunda, e esta nos reencaminha àquela. George Lakoff e Mark Johnson, em Metaphors to Live By (1980) advogam por uma terceira posição, uma espécie de juste milieu, a que dão o nome de experiencialismo e que encontra na metáfora o seu mais acabado veículo, e que “une a razão e a imaginação”, perfazendo “uma racionalidade imaginativa”. Em todo o caso, é precisamente a maneira como falamos, empregando metáforas nas mais banais das comunicações, e em todas as instâncias das nossas vidas. Mais, explicam os autores que a “verdade” – que os mitos indicados anteriormente julgam existir no seu seio exclusivo – é algo “relativo ao nosso sistema conceptual”. Por isso Morrison bombardeia os seus leitores com uma chuva de conceitos, esperando que dessa chuva haja elementos que embatam uns nos outros, provocando uma reacção imprevista. E pela mesma razão controla o sistema conceptual das suas personagens, alterando um primeiro sistema por outro, e este por um terceiro, em catadupa, provocando um desequilíbrio permanente no solo existencial destas personagens. O controlo de Morrison não pode jamais estar fora de vista, pois mesmo que o acaso tenha sido empregue na construção das histórias, elas são estruturadas por ele. É ele o Primum Mobile dos universos que cria, ainda que abra espaço a manobras mais livres. Esta situação encontraria o seu corolário no famosíssimo diálogo entre a personagem Animal Man e seu autor, o Morrison real – claro que transformado em personagem interno à narrativa, criando-se a ilusão de uma ascensão a um nível diegético exterior à própria diegese, no “mundo real” que partilhamos.
Metáfora, como se sabe, significa “transporte” etimologicamente. Trânsito, empregar um significado x num objecto y, e com uma fluidez apenas limitada quão limitada for a capacidade de associação de quem a crie. Quantos momentos de transição poderemos contar nos arcos narrativos de Grant Morrison para a Doom Patrol? Steele mudando de corpo, acordando de pesadelos. Planos de existência ficcionais abrindo-se para a realidade e sangrando elementos, reescrevendo-se como o mapa de Borges por sobre o mundo. Tentativas de diluir os mundos oníricos particulares de uma personagem com a percepção consensual de todos. Exercício, o mais provável, esgotante, mas seguramente produtivo. “Doom Patrol é menos uma fantasia surreal do que uma abordagem naturalista do nosso espaço cultural super-saturado”, escreve Shaviro.
Por um lado, essa oposição entre objectivismo e subjectivismo expressa-se nesta série em todos os maniqueísmos que nela surge: ciência versus o aberrante, loucura versus normalidade, status quo versus mutação acelerada, luz contra escuridão, etc. (maniqueísmos que seriam explorados por Morrison em obras posteriores, num espectro diferente de complexidade e evidência, como The Invisibles – obra-prima daquilo que poderia ser chamado de “hiperhipodiegese” ou, mais curto e cool, “hiphopdiegese” - e The Filth – que revela antes da metatextual). Mas bem vistas as coisas essas dicotomias acabam por ser desconstruídas, e há momentos em que um termo não se parece diferenciar um do outro: a sociedade secreta do Pentágono parece tão absurda quanto o absurdo que pretende erradicar, o mal da Irmandade do Dada dilui-se na quase-juvenil hilaridade dos seus projectos, o carácter benigno do líder e cientista Niles Caulder revela uma atroz e fria capacidade e desejo de domínio absoluto. Caulder bebe directamente daqueles ramos de ciência em que as distinções mencionadas acima acabaram por ruir em parte – as teorias da catástrofe, do caos, do infinitesimalmente pequeno, onde os nossos instrumentos falham, onde a própria noção de instrumento falha, onde a noção de noção não tem lugar.
Um outro aspecto singular é que a mudança dos artistas desenhadores – podemos contar mais de quinze nomes neste série, ainda que Richard Case se mantenha como o basso continuo -, apesar de ser uma consequência da prática corrente da produção fordista do mainstream norte-americano, torna-se em Doom Patrol um sintoma dos universos que acaba por representar nos vários episódios: aqueles que constituem as várias camadas “por detrás” ou “além” da realidade consensualmente tangível, ou aqueles que se prendem às flutuações perceptivas das próprias personagens, sobretudo Jane e Cliff, como vimos. A transformação daquilo que seria uma fraqueza (um enfraquecimento do trabalho de verdadeira colaboração pela multiplicação dos artistas a soldo) num trunfo estrutural já havia sido notado por Douglas Wolk, a propósito de The Invisibles. Se em Animal Man isso não se verificou, precisamente por se associar a uma só personagem (assim como nos seus trabalhos anteriores e outros que viriam no futuro, como os presentes títulos em que trabalha), parece que Morrison explorou essa dimensão aqui de um modo consciente e intencional.
The Invisibles, The Filth, até mesmo o seu trabalho com a Justice League of America ou os X-Men, e, mais recentemente, o seu ciclo “remake” dos Doze Trabalhos do Super-Homem (All Star Superman) foram feitos num momento em que o seu poder decisório é maior – capacidade de controlo, de viragens “arriscadas” comercialmente, em que a sua fama o precede e o transforma numa mais-valia – e em que a sua agenda sobre as teorias de emergência são claras. Doom Patrol foi feito numa altura em que isso não era um dado adquirido (e por isso demorou algum tempo até estarem disponíveis estas edições em livro). Isso torna-o, como disse ao princípio, num interessantíssimo laboratório de conceitos, num veículo de Gedankexperimenten, como tive oportunidade de explorar num artigo sobre Morrison na revista Vértice (no. 124, de Setembro-Outubro 2005). Não se tratando de uma mecanismo e jóia de relojoeiro como seria The Invisibles (em que a aplicação do conceito de tressage, de Groensteen, explodiria numa miríade de implicações), nem num exercício extremo de bonomia e leveza como o (seu) Super-homem, Doom Patrol é ainda assim como que uma cultura de elementos que Morrison colocou num mesmo espaço e os deixou cruzar para permitir crescimentos tão inesperados quanto inevitáveis, e excrescências que se revelam de um valor criativo inestimável.
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9 de março de 2008
On m’appelle Avalanche. Francis Masse (L’Association)
Este livro faz parte da política de recuperação da memória que certos autores contemporâneos desejam (re)criar para nela se inscreverem, como já havíamos discutido anteriormente.
Francis Masse pertence a uma geração de autores que, ao contrário das que a precederam, já não havia sido exposta às grandes dicotomias culturais de eras anteriores, às “grandes narrativas” no dizer do pós-modernismo teórico, mas pelo contrário à emergência das primeiras “petit récits” e, consequência ou condição desse mesmo tempo da sua idade adulta, encontraria vazão em várias publicações com espaço para uma banda desenhada também ela adulta, descomprometida em relação ao seu valor intrínseco, estético, mas bem mais comprometido para com a sociedade em que se inseria (cuja lista poderia começar na Pilote, e nas que se seguiriam, até à Métal Hurlant, onde seria publicado este l’Avalanche..., depois de um intervalo da criação de banda desenhada de Masse entre 1977 e 1981).
Masse não é um autor de uma empatia fácil. Apesar de ter partilhado espaço e tempo com autores que seriam depois reconhecidos como incontornáveis, a escolha do grande público acabaria por ser pautada mais pelos aspectos da espetacularidade visual e dos ligeiros elos ao mundo – o que sucederia com, por exemplo, Bilal ou Moebius – do que por um entendimento dos valores mais estranhos e, por isso mesmo, que viriam a frutificar mais tarde – Masse, mas igualmente Chantal Montellier. Não é por acaso que agrupo os dois primeiros autores para os opor, neste ponto de argumentação, com estoutros dois. É que os primeiros (antes ou fora das colaborações com autores mais informados politicamente como Pierre Christin e Alejandro Jodorowsky) procuram uma espécie de escapismo, por mais belo e idiossincrático que seja, mas os segundos observam o mundo e devolvem-no ou com um acerbo realismo (Montellier) ou com um mordaz absurdo (Masse).
Como já havia debatido em consideração do absurdo, como pólo entre o cómico e o angustiante (com Mademoiselle Takada) e pacto entre o universo ficcional e o histórico que partilhamos (com Hanashippanashi), compreender-se-á a afirmação de que Masse, através da sua ridicularização de todos e quaisquer aspectos da sociedade contemporânea - exacerbando os seus tiques, agravando os seus problemas até às últimas consequências (a anulação), colocando num ponto de fuga uma situação caricata até se tornar dolorosa -, ergue também uma obra sob o signo do absurdo. Nesse sentido, inscrevem-se na tradição do artista francês autores como Ben Katchor ou José Carlos Fernandes, se bem que Masse procure diluir mais contundentemente os elos com o mundo real. Ou melhor, elabore um complicado jogo de distorção e reflexão, de mimese e de desestruturação.
Acompanhamos uma personagem que serve de sinal da ingenuidade e da curiosidade perante uma nova realidade (para ele mesmo): l’Avalanche parece um “selvagem” em primeiros contacto com a “Civilização”, mas uma civilização que parece ter abandonado um cume de desenvolvimento técnico, talvez por que tê-lo atingido significasse o fim de outros dos seus fundamentos e a tenha levado a uma primeira derrocada. O vazio dessa desaparição das máquinas (fantasmas perseguidos por uma trupe de nostálgicos meio-inertes meio-inanes), no entanto, deu lugar a uma espécie de demanda, na qual l’Avalanche se vem imiscuir num momento – naturalmente previsto pela graça ficcional – chave. Paradoxalmente, essa ausência de tecnologia maquínica não se reflecte na aparente e crescente burocratização intricada deste mundo, pois existem outros modos da matéria ser regida e outros modos de criar e impor regras, as quais afectam mesmo os objectos (afinal, não-inanimados). Uma crítica aos muros erguidos pelas repartições públicas, como é típico dos escritores do absurdo, elabora-se aqui também. Mas na esteira de escritores ingleses como Swift ou Defoe, essa crítica estende-se ao todo do conceito mais ou menos consensual de “civilização” ocidental e moderno. Quer dizer, é através de um hipotético (ou ficcional) Outro criticado que se reflectirá a crítica sobre o Eu (cujo avatar absurdo surge na exacerbação mencionada atrás). Esta é uma das forças da obra de Francis Masse: é que com estas menores ou maiores histórias cuja sinopse pareceria elaborar uma ópera bufa de bolso, abre um sulco no qual cabem sentidos multímodos e relevantes.
Uma dessas linhas possíveis, ainda que ténues, é o pensar da ontologia da própria banda desenhada. Se numa pequena história, da série Les Deux du Balcon, expõe o emprego a neogenia na banda desenhada e animação da Disney, e noutras explora a materialidade da banda desenhada enquanto passível de actuar no próprio universo ficcional das suas personagens (como Winsor McCay [v. comentários abaixo; e obrigado!] havia feito bastas vezes), em l’Avalanche não deixam de surgir casos pontuais dessa potencialidade da linguagem desta arte: por exemplo, balões de fala que se comportam como objectos reais no mundo representado, os cenários labirínticos (piranésicos, citado textualmente) revelados como não sendo senão finíssimas camadas de papel, o que são literalmente.
Primeiro esforço de uma longa narrativa, Masse não abdica da amplificação sígnica – característica que jamais é deixada esquecida em todos os textos de apresentação da sua obra – que vingava nas suas histórias mais curtas. As suas personagens são desenhadas com uma forte inscrição nos pequenos desvios do anatomicamente perfeito para dar espaço à caricatura, a um dinamismo dos corpos que se torna cómica, a uma expressividade na orla do histriónico, do ridículo... Masse é herdeiro de Louis-Léopold Boilly. Acrescente-se à representação destas personagens os mais visíveis aspectos do absurdo: l’Avalanche, a personagem principal, na esteira do chavão do “índigena-com-osso-atravessando-o-nariz”, substitui esse osso por um guiador de bicicleta (e não é uma bicicleta qualquer, mas uma bicicleta mística: perguntamo-nos se Grant Morrison terá lido Masse, ou se Masse terá bebido da mesma fonte que Morrison: a experiência de Albert Hofmann). Num sonho, é um guiador de mota. Além do aspecto da expressividade, os corpos são sempre representados com uma substancial atenção para as curvaturas, dobras, os tecidos, traços que são corroborados e intensificados pelo emprego de um complexo e variado jogo de sombras e manchas, a que chega com a utilização de, parece-me, películas autocolantes de tramas a meio-tom (que eram prática mais corrente na época a.P., ou “antes-de-Photoshop”; material comercializado pela Mecanorna ou Letraset), com graus variados dos espaços entre os pontinhos negros, provocando áreas ora de maior ora de menor densidade de sombras (obrigado ao António Gomes/Barbara says... pelos esclarecimentos técnicos). Nalguns locais entende-se o recorte que se segue para criar a trama: vejam por exemplo a mancha em torno do pobre cocar do protagonista.
Nas paisagens urbanas, Masse recorre ainda ao que parecem ser colagens, de fachadas de edifícios, de plantas de cidade, de variadas ilustrações de pesadas tramas do século XIX para criar os cenários onde as personagens deambulam ou se perdem. Aqui cumpre uma aproximação ao trabalho de Max Ernst, ainda que o propósito de Masse seja mais atreito a uma narratividade controlada e centrada do que a do artista surrealista. E os momentos em que estas opções estilísticas se suspendem – o brevíssimo sonho de l’Avalanche no “automóvel virtual”, em que surgem personagens estilizadas de um modo muito diverso, de um, digamos, “aerodinamismo” simplificado; ou o maior, sobre o ballet da escavadora, em que o uso das películas de tramas é mais restringido e passa a haver um jogo de maior contraste entre brancos e negros que recorda o seu contemporâneo Varenne – apenas sublinham o valor delas mesmas enquanto representativas do mundo diegético que instituem.
Um outro domínio dessa amplificação sígnica encontra-se no verbo. A sabedoria desta ou daquela personagem surge textualmente como um aglomerar impossível de termos técnicos ou eruditos cuja convivência torna esses mesmos termos, que se desejam indicar, não claros e específicos mas cada vez mais opacos. A linguagem utilizada pelas personagens nos diálogos ou legendas parece desejar uma clareza absoluta, desdobrando-se em explicações e floreados que as torna igualmente um bloco de peso. Por exemplo, quando ‘Avalanche é transportado como se se tratasse de uma situação não prevista pela estranha administração da cidade que visita, escuta os burburinhos dos corredores: “Malheureusement, je n’entendais plus que quelques glapissements nasillards parsemés de barrissements bubulés, qui me parvenaient étouffés par les épaisses parois d’orichalque plastifié à la feuille du bureau”. “A cobiça rompe o saco”, apetece dizer. Se Jacobs era famoso pelos seus visualmente pesados balões pairando sobre as cabeças das personagens, Masse opta por um peso interno, não só da ordem do significado como também da sua forma escrita, já que a oscilação entre maiúsculas e minúsculas – mas regrada – torna a leitura algo irregular no que diz respeito ao ritmo. O pequeno rato de corda que fala um francês mais límpido (para nós) torna-se um ecrã para as restantes personagens, e é visto como quem não atinge os complexos jogos de palavras da língua “normal”.
O desmoronamento final de toda a sociedade que l’Avalanche visita e as lições que ele aprende acabam por se tornar a “moral” ofertada aos leitores – movido pelo interesse num “poder” enquanto conceito abstracto e apetecível, ávido por conquistar “um lugar ao Sol” ou um “papel relevante na História”, tudo o que ele testemunha e não testemunha (uma vez que há momentos da narrativa em que a focalização passa a ser de um narrador externo e não do protagonista) acaba por o fazer entender que esse conceito é demasiado fluido para ser conquistado de uma forma corpórea, violenta – “selvagem” – e que é apenas através de uma vontade discursiva – “civilizada” – que se acaba por mostrar ter poder. Outra forma de colocar esta questão é a seguinte: toda aquela vontade do leitor conquistar numa leitura de banda desenhada uma mera história empolgante a partir da qual extrairá mais um pequeno bloco para adicionar à sua imaginação de fantasias, nelas ficará enredado; aquele que mergulhar e observar as especificidades com que uma obra se pode constituir e respirar aprenderá, seguramente, a entender e, quem sabe, procurar quais os seus próprios elementos a construir.
[Presume-se que a editora L’Association continue - tal como faz com Forest e Gébé (apesar de partilhar este com outras editoras na “redescoberta”) - a editar outros títulos de Francis Masse.]
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:55 da tarde 7 comentários
Etiquetas: França-Bélgica
2 de março de 2008
Reading Bande Dessinée. Ann Miller (Intellect)
Reading Bande Dessinée. Critical Approaches to French-language Comic Strip é um livro, diríamos, académico. No entanto, não é regido por uma tese, explorada na necessária argumentação. É antes uma colecção de estratégias de leitura, tendo como objecto – julgado unificado – da banda desenhada de expressão francesa. A autora distingue logo este “objecto” pelo emprego, num texto em inglês, da designação bande dessinée. (Mais)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:52 da tarde 0 comentários
Etiquetas: Academia, França-Bélgica
Acme Novelty Library # 18. Chris Ware (auto-edição)
Penso que podemos empregar o descritivo “inacabado” a uma obra de arte de duas maneiras. De uma forma mais definitiva, naqueles exemplos onde a morte – ou uma sua substituta menor (é sempre menor, forçosamente) – se veio instalar como obstáculo ao acabamento de uma obra qualquer, em relação à hipotética vontade do autor (penso no Maestro de Caran d’Ache ou no l’Alph’Art de Hergé mas também nas imagens que Botticelli iniciara para ilustrar a parte do Inferno, da Divina Commedia, para ser impressa). Outra classe de instâncias é quando estamos perante uma obra que ainda progride e entendemos que cada um dos seus novos blocos (história, livro, contribuição) obrigam a repesar e repensar o que lhe pertence, e veio atrás. Noutros momentos neste espaço, havia tomado de empréstimo a expressão de Herberto Helder, e referido essas obras como se de um Poema Contínuo se tratassem. Esta situação não ocorre com todos os autores, nem sempre da mesma maneira num mesmo autor. Há alguns autores cujos novos livros são simplesmente novas unidades, autónomas, suficientes, que virão a ser consideradas como parte de “toda a sua obra” após a morte do autor, mas sê-lo-ão de um modo meramente nominal, arquivístico, embora os elementos constituintes dessas novas obras não contribuam de forma clara para a redefinição das anteriores.
Chris Ware pertence a um número reduzido mas feliz de autores que parecem conseguir manter-se numa mesma senda, em que cada livro novo surge como uma peça de um contínuo perfeito.
O que começara como sucessiva pesquisa sobre o humor, e que o próprio título da sua série revela (primeiro na Fantagraphics, agora por conta própria: “Acme” remetendo para a marca omnipresente nos filmes animados da Warner Brothers e “Novelty Library” para a ideia de uma colecção de publicações baratas e descartáveis, de fruição momentânea mas também momentaneamente empolgante), explorando todo o rol de lugares-comuns da banda desenhada e cultura popular – astronautas, cowboys, super-heróis, gatos e ratos, etc. – foi paulatinamente deslizando para um território cada vez mais mergulhado na angústia. Não é que as histórias de personagens como Quimby, the Mouse, Sparky, a abelha Branford, Rocket Sam, Big Tex, o “homem-batata” (sem nome), Rusty Brown, a versão patética do Super-Homem e a mais solitária das suas personagens, Deus, não sejam histórias de humor que não albergam no seu âmago tragédias profundas. Até podemos mesmo encontrar nessas histórias dramas humanos terríveis, desconcertantes, mas sobre o qual se havia depositado uma cobertura de comédia. Nesse sentido humano que Charles Chaplin explorava nos seus filmes e que raras vezes foi, se o foi, superado. As “fontes” de Ware são bastante claras e várias oportunidades houve em que isso se tornou patente. Max Fleischer, Frank King, George Herriman, Charles Schulz e tantos outros. O aspecto em comum em todos estes artistas é que criaram linguagens plenas de representações estilizadas do mundo para expressar aquilo que de mais emotivo nos move. Todavia, é natural que Ware se tenha permitido ir mais longe, não num sentido de “profundo”, pois há vários caminhos para rasgar a superfície e chegar ao verdadeiro coração do homem, mas num sentido de que o momento histórico em que ele criou os seus livros permitia uma abordagem mais adulta da banda desenhada, sem condescendências para com o público mais generalizado. E assim chegou a essa obra-prima – no mais completo sentido desta palavra, usada as mais das vezes ao desbarato – que é Jimmy Corrigan, the Smartest Kid on Earth.
A personagem principal do volume 18 é uma jovem rapariga, que não tem uma perna, está a tentar terminar os estudos superiores, trabalha numa florista, rememora a única relação que teve (um homem bem mais velho e que conseguiremos entender não ter sido a pessoa mais bem formada do mundo), recordando o seu velho gato e tentando resguardar-se de todas as maneiras dos males que advêm da vida. Já havia surgido nas “Building Stories” do volume 16, e acabou por ir ganhando vida noutras publicações em que Ware participou (a Kramer’s Ergot 6 ou a McSweeney’s, por exemplo). Todas essas histórias se reúnem neste volume, assim como material novo. O facto desta personagem ter sido empregue numa pequena série de histórias em que Ware havia feito uma abordagem formal experimental (de que falámos anteriormente) talvez tenha impelido Ware a continuar essa experimentação. Todo o livro é legível, como tem sido característica do autor norte-americano: se a capa evita qualquer tipo de informação visual (exceptuando o lacónico título da série, o número e um breve arranjo gráfico), as guardas participam imediatamente da diegese, apagando essa ideia mesmo de guarda – (já no ANL # 16 tinha explorado um “genérico” em torno da neve/chuva televisiva). É possível identificarmos pelo menos vários “episódios” simplesmente pela tipologia da composição das páginas, apresentadas como breves sequências uniformes, ainda que não autónomas em relação à história completa, e distribuídas intricadamente. Para quem segue a noção hipotética da tressage de Groensteen, este livro é um território riquíssimo de estudo e análise.
Tentemos detectá-las: temos a primeira estrutura, o “exórdio”, num esquema circular e plurilegível (que já havia explorado antes, como na capa da McSweeney’s); existem as páginas de estruturação metódica, em vinhetas regulares e múltiplas; existem as páginas duplas, centradas por uma imagem que se torna de imediato o núcleo das acções disposta nessa unidade narrativa; as pranchas-monólogo que começam com o início da frase como um título e perseguem um texto contínuo desfasado em relação às imagens que retratam um tempo e acção maiores do que o texto, mas com ele relacionadas; as páginas que apresentam os sentimentos e as memórias do próprio edifício, revelando secções dele mesmo, e as leituras que faz dos seus inquilinos; e as três pranchas que vão revelando as camadas que compõem o corpo da protagonista para chegarmos a interpretações mais profundas [vejam-se as várias imagens ao longo do artigo]. Tudo isto é muito fácil de perceber durante a leitura. Depreende-se que Ware explora modos diversos de poder escavar este personagem, como se transformasse a alma e espírito desta rapariga numa estação arqueológica que pudesse ir explorando com vários instrumentos.
Por um lado, mais imediato e superficial, temos toda uma série de elementos que nos permitem criar retrospectivamente a “história” desta rapariga, uma parte substancial da sua vida, as suas relações, e a sua inscrição no espaço que “agora” habita e é o palco de estruturação destas mesmas narrativas. Mas também podemos procurar uma outra perspectiva. A uma primeira vista, poderá parecer que a abordagem ultra-estilizada de Ware implicaria um apartamento total, “frio”, dir-se-ia, da esfera das emoções humanas. Mas aqui recordamos os nomes arrolados acima, a propósito das influências – os rios que fluíram na sua direcção, para o seu interior, de que ele é efluente e em que é fluente – que participam deste mesma natureza. Encerrando as suas personagens em corpos e paisagens aparentemente delineadas com os instrumentos mais rigorosos, e em planificações que parecem não deixar espaço à espontaneidade, erigem os mais exactos, pautados e por isso mesmo mais dolorosos retratos da existência humana. Veja-se a página (o que chamei de “monólogo”, pois são ininterrompidos por falas, e são transmitidos em balões, criando essa ilusão teatral) que inicia “That girl” e apercebamo-nos como se desenha um movimento de aproximação e afastamento dessa outra rapariga, de compreensão e negação dos seus sentimentos, acompanhando as palavras da nossa protagonista.
É sabido como Ware, quer em pessoa quer nas suas aparições ficcionais, gosta de se apresentar como alguém aberrantemente tímido e inseguro, e até mesmo desinteressante e alheio e dissimulado para com o que o rodeia. Esta nova personagem, na continuidade, mas numa curva ascendente, das anteriores, vem provar exactamente o contrário: a sua capacidade não de imitação – que passa por “realismo” nos nossos dias – mas de uma subtil e empática observação para depois nos devolver trechos da vida como apenas a ficção nos na pode explicitar e fazer compreender.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:37 da tarde 1 comentários
Etiquetas: EUA