31 de março de 2010

Breakdowns: Portrait of the Artist as a Young %@&*!. Art Spiegelman (Pantheon)




Estamos em crer que a maioria dos leitores de Spiegelman o conhecem somente pela sua obra, literalmente monumental, Maus. Mesmo aqueles que o terão seguido depois dessa obra não terão auscultado o seu passado, e talvez alguns ficassem surpreendidos em descobrir um autor que durante vários anos experimentou linguagens de inventabilidade formal e gráfica que pouco teriam a ver com a aparente calma do seu livro mais famoso (excluindo a apropriação de estratégias das fábulas para criar um estranho universo referencial e metafórico).
O “berço” de Spiegelman, no quer diz respeito à banda desenhada, é o movimento menos organizado por programas do que por uma vibração comum conhecido como “underground comix”, nascido e associado sobretudo à cidade de São Francisco, entre a segunda metade da década de 1960 e a primeira de 1970, agregando nomes importantes como os de Franck Stack, Gilbert Shelton, Spain Rodriguez, e outros, destacando-se acima de todos os de Robert Crumb, por razõs sobejamente conhecidas. Esse movimento estava mais preocupado em quebrar as barreiras que entretanto tinham sido impostas pelo Comics Code e por toda uma pruriente moral vigente nos Estados Unidos do que procurar construir uma mais coerente expressividade. Esta só viria a surgir pontualmente. Pelo meio das centenas de páginas dedicadas a todo o tipo de deboche não apenas sexual, mas de violência extrema, narcisismo, indulgência nas drogas, ataques directos a personalidades e instituições, com ou sem humor e inteligência, lá se separariam alguns exemplos de obras bem acabadas. E há sobretudo duas linhas de fuga mais fortes instituídas nesse movimento. Por um lado, a banda desenhada autobiográfica propriamente dita, com as obras de Justin Green, Harvey Pekar, Aline Kominsky, Lynda Barry, Robert Crumb, por outro, a experimentação gráfica e formal, sobretudo informada pela cultura visual do psicadelismo, com Victor Moscoso, Rick Griffin e algumas experiências de Crumb. Spiegelman, instado por alguns dos seus amigos e colegas desse movimento, experimentaria ora um ora outro desses territórios, fazendo-os cruzar-se de formas mais ou menos brandas até a In the Shadow of No Towers, em que encontra um equilíbrio entre essas duas forças.
Este livro é, em parte, a reedição fac-similada publicada em 1972, intitulada Breakdowns: From Maus to Now, an Anthology of Strips, mas com dois anexos. Em primeiro lugar, uma nova banda desenhada de 19 páginas que refaz, de um modo sucinto, o percurso de vida e de relacionamento com o mundo da banda desenhada de Spiegelman, fazendo aquele tipo de abordagem integrada presente em Shadow of No Towers. Em segundo, um posfácio que apresenta algumas das suas ideias e reminiscências em texto, inclusive uma das peças que nunca conheceu edição, Some Boxes for the Salvation Army, que aponta para uma direcção hoje experimentada por alguns autores da vanguarda da banda desenhada. Logo, não se pode dizer que é apenas uma reapresentação de Breakdowns, mas ao mesmo tempo não é uma antologia aumentada.
Seja como for que a interpretemos, é uma ocasião para poder revisitar toda uma série de trabalhos relativamente famosos do autor, sobretudo de um cariz experimental em termos gráficos, como a curta página de I don’t get around much anymore, que pensa a possível ideia de termos ma banda desenhada em que não há progressão temporal, ou Ace Hole, Midget Detective, em que se exploram, de forma activa, algumas das especificidades formais da banda desenhada enquanto linguagem estrutural, artística, material, etc. está também aqui presente a história Prisoner on the Hell Planet e uma primeira versão de Maus (de apenas 3 páginas), ambas num estilo mais contido mas que responde a interesses da época do artista (o expressionismo alemão, as histórias em gravuras de Masereel) e que procuram uma introspecção quer pessoal quer da vida da família mais profunda, e que iria desembocar nos dois volumes de Maus.
Algumas das ideias de Spiegelman em relação à banda desenhada são por vezes, a nosso ver, exageradas, sobretudo quando o autor as contrapõe a outras linguagens artísticas. Apesar de ser um cultor de formas inteligentes de expandir a própria banda desenhada, os seus movimentos largos de reapropriação de outros textos artísticos, estratégias visuais, ou formas de levantar a banda desenhada como meio “natural” de comunicação e compreensão do mundo revelam um entusiasmo que, apesar de positivo, pode levar a mal-entendidos e a que haja alguns leitores que o sigam sem se perguntarem se é correcta essa visão (isto é, sem a contraporem a outros exemplos dos vários mundos artísticos, sem ponderarem os aspectos hitóricos e sociais das artes, etc.). Não pode haver dúvida de que a banda desenhada pode ser um veículo de inventabilidade gráfica e artística, ou de transporte de tocantes ficções ou não-ficções, ou plataforma de pensar, ou, melhor ainda, de tudo isso ao mesmo tempo e mais além; mas isso só pode suceder com os exemplos concretos de obras que o façam, como Maus (e outras). Não pode isso nascer apenas da vontade de um autor (Spiegelman, por exemplo), e da sua criação de manifestos, de que Breakdowns ganha por vezes os contornos.
Este é um livro forçoso no estudo da banda desenhada enquanto meio artístico, enquanto linguagem e meio de expressão. É, a um só tempo, uma plataforma de pequenas obras maiores e uma alavanca para pensar outros futuros trabalhos. É também uma porta para compreender cada vez melhor a perspectiva particular de Spiegelman e até mesmo de como a banda desenhada pode ser um veículo privilegiado na expressão da memória. E, até mesmo, enfim, como um manifesto da vontade do autor. Mas quanto a este último ponto, é preciso negociar a sua pertinência.

L’Ancien Temps. Le roi n’embrasse pas. Joann Sfar (Gallimard)

Por vezes, perguntamo-nos se não incorreremos numa espécie de discurso maravilhado com determinados autores, predilectos, que espelha o tipo de admiração acrítica suscitado pelos resquícios das leituras da infância e adolescência que tantas vezes pautam os escritos em torno da banda desenhada e que se verificam quando se tecem frente a Hergé, a Pratt, a Moore e Gaiman, ou algo pior (sim, estou a desenhar uma hierarquia nos mestres convencionais), ao eleger Baudoin, Sfar, David B., e uns quantos outros como as nossas próprias “vacas sagradas”. Esperamos que não, como é evidente. Isto é, não negamos procurar um esforço por acompanhar o trabalho de determinados artistas de um modo mais atento e completo do que outros, mas não nos procuramos reger nem pelo completismo nem pela admiração e fascínio mudos.
Não obstante, sentimos que Joann Sfar, acima de muitos autores da sua geração e do seu nicho particular (autores que nascem no seio da edição independente mas conquistam um espaço noutros circuitos de maior visibilidade e exposição comercial, com os companheiros óbvios Lewis Trondheim, David B., Emmanuel Guibert) se tem destacado cada vez mais como uma referência incontornável num certo fazer e até estar da banda desenhada contemporânea francófona, sobretudo aquela que melhor herdou a grande tradição iniciada pela tríade Saint-Ogan-Hergé-Jacobs. Digamos, uma ideia central(izada) do que constitui a banda desenhada (na Europa).
Apesar de algumas das séries e ciclos de Sfar estarem suspensas, ou sobre as quais não há notícias há longo tempo (pensamos sobretudo em Les Olives Noires e os clássicos ilustrados de La Petite Bibliothèque Philosophique), a “graforreia” de Sfar leva-o a multiplicar-se continuamente em novos projectos, histórias, desdobramentos, inflexões, apuramentos, e até mesmo novas vidas, como a de cineasta, há pouco ganhando novos contornos com a média-metragem sobre Gainsbourg (e do qual existem metástases gráficas, dois livros, pelo menos, mas que julgamos não daremos conta em tempo útil, pelo proibitivos que são). L’Ancien Temps parece ser mais um desses projectos, e um daqueles em que Sfar se melhor associa à tradição indicada atrás.
Há um momento em que a protagonista deste livro, uma rapariga habitante da floresta, de poderes de metamorfose, e dada à volubilidade da magia, Nadège, emprega a palavra “aventuras”, mostrando o seu desejo em vivê-las, ao que o avô-lobo lhe pergunta se se refere às aventuras como dos “cavaleiros”, e a moça, respondendo que não, diz que são antes como as dos “amantes”, utilizando essa palavra no “seu sentido mais pejorativo”. A palavra “aventura” é apanágio, de pedra e cal, de todo um rol de ficção juvenil que vai desde o Telémaco de Fénelon a todo o historial da banda desenhada do século XX (mormente a dita “franco-belga”). É quase apodo obrigatório nas séries de banda desenhada que são publicadas em francês, nas obras de Hergé e Jacobs a Tardi, e o próprio Sfar não é alheio a essa formulação. Aliás, não é a primeira vez que Sfar faz convergir toda uma série de personagens-tipo num objectivo fictivo para se (re)pensar esse mesmo objecto, sobretudo se tivermos em conta os ciclos do Golem, do Grand Vampire, do Professeur Bell e, claro está, todo o Donjon. Pois é dessa forma que devemos entender este, senão todos os trabalhos de Sfar. Uma máquina pensante.
E essa é uma das maneiras de entender duas coisas, uma apontando para o passado e outra para um dos futuros da banda desenhada. O que aponta para o passado é a inscrição na tradição, o conhecimento da memória interna, dos mecanismos, princípios e elementos mais associados à tal ideia central da banda desenhada (coincidente com a sua percepção social mais alargada). É como se Sfar, diferentemente de outras experiências (os autores associados à Frémok, por exemplo, os que elaboram abordagens abstractas, ou aqueles que vemos “dividir para conquistar”), procurasse uma linguagem não tanto de rupturas e experimentação, mas de processos de continuidade. Aquilo que aponta para um futuro (é importante sublinhar a não-unicidade desse eventual movimento) é o facto de Sfar utilizar esses mesmos mecanismos da banda desenhada “clássica” para fazer transportar ideias novas, abordagens holísticas de significados, buscas mais amplas de sentido criativo. L’Ancien Temps é isso mesmo.
Disfarçado de “high fantasy”, acompanhando um grupo mais ou menos coeso de personagens (a rapariga-raposa, o avô-lobo feiticeiro, o jovem aprendiz, a rainha do “arminho” e do “licorne”, e esses mesmos animais, a espada-cobra, e elfos, espíritos arbóreios, gigantes, etc.) o livro procura explorar questões que têm a ver com o abandono de religiões afectas à localidade, à especificidade dos povos na sua relação com a terra em que se encontram e a entrada numa nova forma de religiosidade, a saber, aquelas direccionadas por um poder central e por uma ideia de centralidade. Representando, obviamente, o Catolicismo, aqui representado pelos Papas e a Igreja, e o misterioso “deus do olho único”, que, escreve o lobo, “é uma invenção política”. Historicamente é correcto. Mas em vez de transformar essa matéria histórica numa espécie de romance que se leve a si mesmo demasiadamente sério, como muitas séries “históricas” ou “fantasiosas” de banda desenhada ocupando um nicho temático idêntico, Sfar prefere estabelecer a forma de pensamento dessas mesmas ideias através de um veículo aparentemente ingénuo ou mesmo inócuo. Não o é.
Notar-se-á uma diferença entre aqueles trabalhos escritos por Sfar mas desenhados pelos seus amigos e colaboradores e aqueles que ele próprio constrói na íntegra. Bastará folhear rapidamente Les Olives Noires, A Filha do Professor, a série Socrate le Demi-chien, para verificarmos que a composição das pranchas é preterida em nome de uma grelha fechada, regular, na qual o ritmo dos acontecimentos é ditada de uma forma relativamente linear, e que depois é preenchida pela mão dos artistas envolvidos, ao passo que aqueles que Sfar desenha são escritos no próprio acto de desenhar. Claro está, esta afirmação carece de um estudo exaustivo da obra de Sfar e de qualificações entre esses dois grupos que aqui se estabelecem de forma um pouco dura (Le Chat du Rabbin também segue a grelha, Les Potamoks não); deve ser entendido apenas como uma forma de entender, cada vez melhor, o acto de desenho caligráfico, de escrita imagética, de graforreia holística, de Sfar. A que L’Ancien Temps se vem juntar como forma de pensar pela banda desenhada.

The Upside Down World of Gustave Verbeek (Sunday Press)



As mais das vezes, quando se fala da banda desenhada norte-americana das primeiras décadas do século XX (que ocupa um lugar de destaque em detrimento de outras produções, mesmo que se as conheçam) apontam-se como exemplos maiores, senão insuperáveis, Little Nemo in Slumberland (1905-1927, com interrupções) de Winsor McCay e Krazy Kat (1913-1944) de George Herriman. Seria necessário explicitar as diferenças estruturais, contextuais, estéticas e de história da publicação e recepção para percebermos os contornos da apoteose dessa dupla, merecida, mas o que mais importa é esse sucesso ser feito em detrimento de outros objectos que mereceriam idêntica apreciação, mesmo que jamais viesse a ser tão vincada. Desses outros objectos, alguns foram alvo de uma antologia marcante, já discutida aqui, Art Out of Time.
O trabalho de Gustave Verbeek inscrever-se-ia nesse território negociável que estaria entre Art Out of Time e Masters of American Comics, isto é, uma obra maior que viria a conhecer uma relativa obscuridade (em parte, talvez, por ofuscação das outras séries indicadas) mas cujas características a colocariam eventualmente no mesmo prato dessa vida visível. Está acompanhado, portanto, por nomes como os de Feininger, Sullivant, Sterrett, e outros. Mas haverá razões para essa invisibilidade, como veremos... Seja como for, a série mais famosa de Verbeek, The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo, foi conhecendo um repetido, se bem que tímido, percurso de edições, presenças em antologias e surgindo como referência em muitos textos. No que diz respeito às antologias, conhecemos pelo menos uma brasileira dos anos 70 (da série Almanaque do Gibi Nostalgia, se a memória não nos falha) e a francesa da Horay, mas a presente não só é a primeira que reune a totalidade dos Upside Downs, como a publica no formato, tamanho e estrutura originais e numa glória visual sem precedentes (nem mesmo, imagino, a do jornal, dado o tipo de impressão e papel). O aparecimento de uma editora como a Sunday Press e todo o movimento contemporâneo da recuperação da memória da banda desenhada tornou este novo gesto num corolário desse movimento, e que esgotará, pelo menos nas próximas décadas (supomos, imaginamos), a necessidade de “pesquisar” a obra de Verbeek: não será preciso, ela está aqui, neste livro.
Dos conhecidos elementos que tornam esta uma banda desenhada histórica ressalvem-se os seguintes: Verbeek faz parte do número de autores que pertencem àqueles que estiveram envolvidos na “guerra dos jornais” entre o New York World (de Joseph Pulitzer) e o New York Herald (de William Randolph Hearst), logo ao número de autores que batalhavam em nome da popularidade e do aumento das vendas dos jornais através de todas as possíveis estratégias – sendo uma delas a da excelência gráfica -, e portanto trabalhando num suporte de divulgação de enorme popularidade, de facto, chegando a um variadíssimo público na época e com direito a um espaço “nobre” que não se repetiria tão cedo. Essas condições de produção também ditariam que o tipo de trabalho desenvolvido por Verbeek tinha de ter um peso mais ou menos universal de humor, não se procurando trabalhos adultos, mas sim de um sinal humorístico (não sarcástico), apelativo também a públicos muito jovens, etc. A inventabilidade da performance (oubapiana avant la letttre?) das pranchas da série The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo não é de somenos [para quem nunca ouviu falar dela, tratam-se de pranchas de 6 vinhetas, todas elas reversíveis; quando se vira a página ao contrário, temos 6 novas vinhetas, numa história com as mesmas personagens, e com nexos lógicos], e deve ser vista como a grande obra, brilhante, do autor, largamente diferente das restantes. Mas essoutro trabalho também está parcialmente presente no livro. Em primeiro lugar, as outras séries, Loony Lyrics of Lulu e The Terrors of the Tiny Tads, que também se revestem da sua importância, ainda que se diluam na tradição ora do nonsense de Lear e Carroll ora nas bandas desenhadas oníricas de McCay e seguidores (v. abaixo). Mais, também as ilustrações que fazia para várias publicações, como a Judge ou a Puck, ou para livros (um deles intitula-se Nigger Baby and Nine Beasts, e, calma, é sobre animais… mas que título!) se encontram exemplificadas no volume, e elas também participaram num qualquer domínio de capricho e de fantástico. Mas são esses os contributos que o fazem, a Verbeek, entrar nos anais dos grandes autores da banda desenhada dos jornais norte-americanos do princípio do século XX. O factor de não ser uma tira/história de continuidade (como, de resto, quase toda a banda desenhada deste tipo da sua era) permitia a que não sofresse com esse peso postergado e pudesse explorar várias linhas de força internas a cada episódio/aventura, integrando-se na fantasia total que isso permitia (a “totalidade” diz respeito ao facto precisamente de não estar essa fantasia subsumida a um qualquer princípio de narrativa longa, de obrigatoriedade de continuidade, etc.), igualmente típica da época (de novo, McCay e seus imitadores). O cerne está, de facto, porém, na trouvaille magnífica de ter apenas duas personagens principais que são, literal e graficamente, reversíveis, é um dos pontos altos da série.
Como se disse, este volume conta ainda com outros trabalhos, nomeadamente a tira de maior duração de Verbeek, The Terrors of the Tiny Tads, que foi publicado no mesmo jornal do Little Nemo, o The New York Herald. Muitas eram as séries “oníricas” da época (“surrealistas” não será o termo correcto), na senda de McCkay: Peter Newell com The Naps of Polly Sleepyhead, George McManus com Nibsy the Newsboy in Funny Fairyland, Mr. Twee Deedle de Johnny Gruelle, The Wiggle Much de Herbert Crowley, entre muitos outros... Este título de Verbeek pareceria inserir-se nesse grupo, mas a verdade é que tem um grau de diferença importante, já apontado anos antes por Richard Marschall (na Nemo americana, no. 10, de 1984): a de que, mais do que “sonhos”, as formas criadas nestas histórias são de “pesadelo” [daí, “terrors”], e que a relação das personagens com essas mesmas formas nem sempre têm contornos positivos, como tinham em Little Nemo. Falamos aqui das criaturas compósitas como o Cangurégua, o Elefantotel, etc.
Mas haverá algo um peso contrário, que explique a parte de ocultação a que foi alvo? ma das características que a leitura completa destas páginas traz, e que constitui algo de incómodo, é a violência perpretada contra os animais. Estes, sejam reais ou inventados, parecem somente surgir para poder sofrer às mãos das personagens de Verbeek. Há inúmeras cenas de caça (tema específico e contínuo em Lulu), mas os imperativos do desenho obriga a que Lovekins e Mufaroo se passeiem por paisagens naturais, bosques, florestas, junto à água... terrenos populados por um sem número de animais que os atacam, assustam, encurralam, sempre vindo a conhecer desfechos mortíferos, ora por graça divina ora pelas mãos dos protagonistas. O mesmo acontece com os Tiny Tads, e muitas vezes assumindo algum grau de crueldade pouco expectável nos dias que correm. Essa violência pode ocorrer também em termos sociais, como na tira em que um maltrapilho (“tramp”), que se tenta defender de um balde cheio de água deixado cair por Lovekins, venha a ser atacado ainda mais por Mufaroo... Como se esse homem, pelo facto de estar “fora” da sociedade aceitável e consensual, não merecesse o respeito dos protagonistas. Esse indigente tem o mesmo papel dos animais: carne para canhão das aventurinhas e rápidas acções das personagens.
A preocupação de Verbeek era de facto esta inventabilidade gráfica. É assombroso que o tenha feito durante tanto tempo (um total de 65 pranchas desta forma), mas percebemos que havia um limite à sua prossecução, limite esse naturalmente associado às soluções gráficas, mas também aliado ao facto de não haver qualquer tipo de desenvolvimento narrativo possível, no interior desse universo. Por exemplo, nunca é muito claro qual a relação entre Lovekins e Mufarro, que tanto pode ser a mais seráfica (pai e filha) como algo de mais sórdido (dois amantes fugindo da sociedade, escondendo-se numa viagem sem fim).
A violência a que me referi atrás é sublinhada também por um dos vários participantes dos textos neste volume, Marco Graziosi. Essa violência não é algo que possamos imputar somente a Verbeek. Não nos esqueçamos que o tipo de atitude ecológica, ou de direitos (mínimos) dos animais, que hoje aceitamos, ou assim o espero, é algo que apenas se tornaria mais divulgado (ainda que não consensual) nos tempos nossos contemporâneos. Presumo que muitos dos leitores se recordarão da hecatombe a que Tintim se entrega no Congo...
Esta é uma série, ou melhor uma obra, de banda desenhada absolutamente maior em termos artísticos. E merece, sem dúvida, estar naquela constelação mínima de McCay e Herriman, e à qual acrescentaria Lyonel Feininger, Cliff Sterrett e outros dos nomes já citados. Mas ao contrário desses autores, Verbeek não procura um contínuo desdobramento e exploração no interior das relações entre as personagens. Poderíamos dizer que se trata da circunstancialidade do tempo, da rapidez com que cumpriu o seu papel neste território, o que sucedeu a Feininger igualmente. É possível. Mas também é possível que este virtuosismo técnico, esta capacidade para deslumbramento gráfico, ao não se aliar a uma criação do seu “interior”, ao facto de não procurar uma ressonância mais humana (que, de modos diversos, aqueles três artistas conseguiram, McCay no mundo infantil, Herriman numa poesia muito própria, Feininger num universo de maravilha panteísta), tenha ditado, desde logo, a sua própria limitação e delimitação. Nesse sentido, este volume é um espaço circunscrito, a revisitar as vezes necessárias, mas no limite, circunscrito.

9 de março de 2010

Alice no País das Maravilhas, filme de Tim Burton.

É inevitável que as adaptações impliquem não apenas transliterações e transformações a nível dos elementos constitutivos e expressivos específicos de cada meio – da ilustração à imagem em movimento, do intervalo subtil entre texto e imagem à subserviência nítida de um pela outra, a introdução de som e música, tornando mais unívoca uma interpretação de determinado momento –, como também a alterações no que diz respeito à leitura cultural, moral e política da obra original.
A Alice de Carroll é uma menina respondona, inteligente, teimosa e inquiridora, o que faz dela uma personagem feminina atípica no quadro cultural da sua época, e que filosoficamente explora um território até ali quase inédito nas letras inglesas e mundiais, que é o do nonsense (sendo o outro “pai” desse “género”, ou melhor, “modo”, o amigo de Carroll, Edward Lear; e é necessário separá-lo de outros métodos de construção apenas aparentemente similares, mas mais inóspitos, a-lógicos, violentos, de Lautréamont a Rimbaud, pelos Simbolistas e Dada e Surrealistas, etc.). A maioria das versões cinematográficas torna Alice numa criança de boca aberta e maravilhada com o que vê, subserviente aos acontecimentos e ao ambiente em torno dela, e quase subsumida à exploração do dramatismo e espectacularidade visuais proporcionados pelo cinema, delindo a força dos diálogos, que é onde reside o valor literário inestimável do escrito. Recordemo-nos que, no princípio, Alice se queixa do livro que a irmã lê, um livro “de adultos”, sem imagens nem diálogos: “E de que serve um livro, se não tem gravuras nem diálogos?” (trad. de Margarida Vale de Gato, para a Relógio d’Água). O livro proporcionará umas e outros, mas os filmes usualmente secundarizam os diálogos nas suas estratégias histriónicas. Carroll é um precursor do absurdo, no sentido em que as personagens humanas não se surpreendem com os factos à sua volta, por menos aparentados que sejam à nossa realidade consensual: os filmes sublinham a “maravilha”, e colocam expressões estupidificadas no rosto de Alice.
Esta situação verifica-se desde a versão de McLeod (de 1933) até à versão com Kate Beckinsale (de 1988, na verdade, é uma adaptação de Do outro lado do espelho), passando por todos os telefilmes e variações. Quase todas as versões cinematográficas norte-americanas (ou de outros países) parecem seguir a tradição daquele país dos teatrinhos escolares infantis, nos quais o cenário é colorido, os figurinos gigantes, e os textos reduzidos a frases suficientemente claras e sucintas para que a cada criança caiba uma breve intervenção (com a a excepção dos protagonistas, se os houver, como no caso de Alice). Numa palavra, todo o livro é reduzido a uma só dimensão, aquela que supostamente é a melhor suportada por este – então novo, hoje em profunda transformação, não apenas tecnológica mas social – meio do cinema: a fantasia. Todos os outros elementos, desde a inteligência dos diálogos às referências específicas, históricas, circunstanciais do texto, são totalmente apagados em nome das “cenas maravilhosas”.
E o mesmo ocorre com o famosíssimo filme de animação da Disney, de 1951, apesar dos meios visuais serem diferentes. Só que a especificidade da animação, como muitos (mas não todos) dos filmes dessa casa industrial, é preterida em nome da criação da ilusão da realidade e da mimese humana, notável sobretudo pela expressividade exarcebada – “overacting” – da personagem principal. E este filme tem uma outra agravante, que é a da desonestidade intelectual. Tendo em conta o papel da Disney em termos de defesa dos seus direitos “de autor”, das suas marcas registadas, muitas vezes atropelando outros autores que com ela colaboram (Canepa e Barbucci, por exemplo), e raiando o ridículo (tendo em conta a disparidade dos seus interesses e a forma como o exercem, de um modo comparável com a Fundação Hergé), é muito curioso que não haja qualquer referência nas fichas técnicas do filme a John Tenniel, o segundo mas oficialmente primeiro ilustrador da Alice de Carroll, apesar de todas as imagens beberem directa e literalmente, inclusive a cor (da edição de 1890, The Nursery Alice), do seu trabalho.
É preciso ter em conta essa dimensão política e social ao considerarmos este filme de Burton como não apenas um retorno do realizador à casa onde iniciara o seu trabalho, como uma manutenção dessa personagem enquanto associada a esse império cultural e financeiro. Não é inocente que, nesse contexto, Burton afirme em entrevistas que não gosta de nenhuma outra versão cinematográfica da história. Poderemos aceitar esse comentário se tivermos em conta a frágil qualidade e a unidimensionalidade apontadas acima daquelas versões norte-americanas, mas não deixa de ter contornos de “tudo o que é de outras companhias é falho, este trabalho tem o selo de qualidade Disney”. Todavia, podemos ver esta afirmação de Burton de um modo ainda mais grave, e que ou raia a ignorância ou é dita de má-fé.
Existem, a meu ver – limitado aos filmes-versões da Alice que conseguimos, até à data, conhecer –, quatro experiências cinematográficas de adaptação do livro de Carroll que merecem um destaque particular, dois deles atingindo um grau de excelência. A primeira é, obviamente, a primeira versão, de 1903, recentemente descoberta, e que pode ser vista no Youtube, aqui, com comentários explicativos de Simon Brown. O interesse não reside apenas numa perspectiva arqueológica, mas também social, cultural, etc., pela sua ligação às versões teatrais/musicais vitorianas, ou outros factores explicados por Brown.
A segunda, mais por alucinação e estranheza, é a versão pornográfico-musical (!) de 1976, de Bill Osco. Se bem que esta versão seja mais interessante pelo bizarro humor dos actores que cantam, dançam e fornicam, há toda uma série de pormenores que o tornam curioso, sendo um deles o impecavelmente lógico facto de que quando Alice bebe a poção que a encolhe, as roupas não são afectadas [terá Burton visto aqui este pormenor?], e assim Alice fica nua, e o outro uma interpretação muito especial do acto de “colocar em pé” Humpty Dumpty... E mais não digo.
Mas aquela versão cinematográfica que penso respeitar melhor a dimensão textual, histórica, existencial e mesmo filosófica do livro é a da versão de teatro filmado de Jonathan Miller, de 1966 (da série televisiva The Wednesday Play da BBC, imitada em Portugal pelo Teatro às Quartas, a partir de 1970). Para atingir esse propósito, Miller dispensa totalmente toda a carga fantasiosa, a parte da fábula, os figurinos e máscaras de animais, e procura que os actores, apenas com as suas características físicas e habilidades e talentos consigam transmitir as personagens conhecidas: e como o conseguem! Não conheço Dormouse/Arganaz mais mortiço que Wilfrid Lawson, um Mad Hatter/Chapeleiro Louco mais assustador que o já-de-si louco Peter Cook, uma Mock Turtle/Tartaruga Fingida mais dignamente melancólica que John Gielgud, um King of Hearts/Rei de Copas mais benévolo, lasso e tonto que o benévolo, lasso e tonto Peter Sellers. E a Alice criada por Anne-Marie Mallik é soberbamente exacta. Miller também dispensara a camada fantasiosa de fadas e espíritos de outras produções teatrais, notavelmente Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare, pela razão de esses seres viverem uma existência “amaldiçoada pela imortalidade” e a “aborrecida” manutenção por milénios da mesma natureza, bem diferente do paradoxo da resiliência frágil dos humanos, e a sua habilidade (a mētis de Ulisses). E é essa habilidade que é mostrada por esses actores, sem recorrer ao milagre ou ao efeito. É certo que essa dimensão não pode ser descurada totalmente, mas não deixa de ser um acto de coragem e de exploração, uma verdadeira pesquisa e versão, aquilo que Miller cumpre no filme. O trabalho dos actores, como sempre das academias inglesas, é insuperável no que diz respeito a teatro textual, a escolha física de uma Alice morena (como a própria Alice Liddell) e despenteada (como Irene McDonald, uma das modelos fotográficas preferidas de Carroll enquanto fotógrafo, com uma das fotografias precisamente sobre esse tema), a introdução de uma dimensão “misteriosa”, ou até “psicadélica”, com a cítara de Shankar e o tom impassível, quase indiferente, da troca de diálogos, faz desta uma obra-prima intelectual e adulta (e é relativamente fácil encontrá-la, nesta era de torrents...).
Finalmente, e apesar de tantas versões em animação (dos primeiros filmes da Disney às versões da Europa de Leste, e as versões em animé, uma dos anos 1980 que por cá passou em dobragem alemã e a mais recente série Haruhi in Wonderland, com maior liberdade interpretativa, e passando ainda pelas versões dos Marretas e da Rua Sésamo, Abby in Wonderland), aquela que arrecada maior prestígio crítico é a da animação de volumes de Švankmajer, Něco z Alenky (1988). Não há espaço suficiente para podermos falar do valor deste filme no que diz respeito à experimentação própria da obra do realizador checo, das camadas de leitura que as suas opções provocam, do significado dos desvios, apagamentos e adições em relação à obra de Carroll, da forma como se distancia das versões anteriores e se reaproxima de uma maneira cuidada da parte mais terrífica da fantasia prevista no livro. Todavia, é este o filme que, aceitando essa ideia da necessidade e da presença da fantasia, procura não apenas recriar a fantasia verdadeiramente negra que era possível para os tempos modernos (a cena das máscaras ou dos sarcófagos e efígies sucessivas é admirável, por exemplo, ou os animais compósitos e em decomposição) como restitui o ambiente pouco açucarado do original (que a Disney disfarça).
Poder-se-iam ainda acrescentar a versão musical de Robert Wilson, que foi apresentada no CCB em 1994, e a ópera de Chin, Un-Suk, mas o tipo de questões levantadas pela incursão na composição, cenografia, e até mesmo a densa trama de referências quer do autor norte-americano quer da compositora coreana levar-nos-iam a outros territórios que escapam quer a esta leitura quer às nossas competências. O importante é vê-los como uma outra ordem de adaptações que exploram as circunstâncias e as valências do texto original sem recorrer necessariamente a estratégias de redução pelo mero espectáculo e fantasia.
É portanto no quadro de toda esta problemática que o filme de Burton surge. Este realizador tem em carteira toda uma série de filmes no qual há uma indubitável preferência pela fantasia, naquele sentido apontado acima. É óbvio que muitos quererão qualificar essa fantasia de “negra”, “gótica”, “tenebrosa”, mas na verdade a ordem dos factores deveria ser invertida, isto é, Burton é um realizador de filmes “góticos”, “negros”, “tenebrosos”, em que as sombras e os fantasmas e os terrores mostram a sua face mais histriónica e, logo, mais fantasiosa e benigna. Mesmo as partes mais violentas dos seus filmes – crianças torturadas, tartes de carne humana picada, a pomba da paz carbonizada, a passagem para o domínio da morte – acabam sempre por provocar mais alegria e escárnio que qualquer outra emoção.
Walter Benjamin, em “As Afinidades Electivas de Goethe”, discutindo o papel da crítica e o seu acto de escavar, explica como uma obra de arte possui duas metades que, estando intrinsecamente ligadas, poderão vir a ser desassociadas ao longo do tempo assim como através do acto de interpretação crítica. A essas metades dá ele o nome de “teor da verdade” e “teor material”, e o acto, ou melhor, “a questão crítica fundamental [é] se o brilho do teor de verdade se deve ao teor material ou se a vida do teor material se deve ao teor da verdade. Pois, ao dissociarem-se na obra, decidem sobre a sua imortalidade”.
O cinema pode atingir um estádio avançado do segundo tipo de teor, mas estar vazio em relação ao primeiro. É o que acontece com muitas das grandes produções contemporâneas, de que escusamos de dar exemplos por serem às dezenas e famosíssimos. O problema principal desse tipo de produção cinematográfica, usualmente associado a grandes estúdios e aos fetichismos da aplicação imediata de novas tecnologias desenvolvidas, é não terem a coragem sequer de se tornarem puro cinema a-narrativo, quase num regresso ao que Tom Gunning (numa confluência que contaria com os nomes de Eisenstein, Jacques Aumont e André Gaudreault) chamou, noção conhecida, de “cinema das atracções”. Este cinema, de acordo com o teórico, sobretudo conta-corrente antes de 1906, pautava-se por ser um cinema de espectáculo, de choque, de uma comunicação directa com o espectador e as suas sensações, sem a mediação de uma narrativa (integrando-se nas várias tradições de géneros herdados da literatura e teatro). Se me for permitido um exemplo, imagine-se um filme como o Transformers 2, de Michael Bay, que dispensasse a história das personagens, o elemento sensual com Megan Fox, e a estruturação dos arcos narrativos, e apenas mostrasse uma infindável série de transformações, metamorfoses, combinações e combates entre os seres mecânicos. Não seria o mesmo filme, mas seria algo de magnífico, quase idêntico à pesquisa de McLaren em termos de movimento e formações contínuas.
Alice in Wonderland cai na categoria de filmes que sofre dessa falta de coragem. Não faltarão, decerto, todos os defensores do grau superior de qualidade no que diz respeito à fotografia, à pintura matte, à construção de cenários e pequenas soluções de decoração e cintilação, mas tudo isso são elementos materiais que não coalescem numa obra de arte se não estiverem subsumidos a um conceito maior. O filme de Burton entrega-se àquela lógica indicada atrás de “milagre e efeito”, mas de uma forma vazia, sem que se associe a um qualquer desejo narrativo.
Muitos dos seus espectadores apontam para o facto de se tratar de uma espécie de “sequela”, mostrando-se o regresso de uma Alice mais velha, a uma Wonderland cabisbaixa e abandonada à sorte da Rainha Vermelha, mas são por demais os elementos correspondentes aos dois livros de Carroll com esta personagem para pensarmos que o realizador os quisesse dispensar na totalidade: são os pequenos episódios, os passos de entrada em Wonderland, e muitas frases dos diálogos, desconectadas dos seus contextos concertados e transformadas em meras citações que deverão exercer o seu papel de símbolo. Todavia, há ainda dois factores na escrita deste Alice que o torna particularmente pernicioso. Em primeiro lugar, de uma forma manifesta, está a subsunção do filme, da sua narrativa, ao género da high-fantasy, procurando-se sublinhar toda uma série de elementos, de tramas de acção, de ritmos e nódulos de solução que o aparentam a este rol de filmes que vão desde O Senhor dos Anéis ao Príncipe da Pérsia (cujo trailer passou antes do nosso visionamento deste filme). Quer dizer, há uma reinscrição do material narrativo num outro género que não o original. Nada obsta a esta reinscrição, e os exercícios de Burton de fazer convergir num mesmo texto fílmico elementos do horror, da comédia, do kitsch e até mesmo da fantasia infantil de tantos desenhos animados é prova de um caminho possível (sobretudo em Beetlejuice, Mars Attacks! e, em grau diverso, o seu Batman e Ed Wood). O problema está em que essa reinscrição em pouco ilumina, retroactivamente, a obra original, e não instaura um novo discurso que atinja um valor substancial.
É verdade que uma obra como a de Carroll, e sobretudo os seus dois livros mais famosos (já que Sylvie and Bruno não desperta tantas paixões, e os tratados de matemática são ilegíveis para quem sofre de inumeracia) levam ao que também Benjamin chamou de “familiaridade egoísta”, no sentido em que os seus leitores os tornam muito seus, em detrimento de poderem sequer ser amados por outros. Uma das formas mais normais de demonstração é a dos coleccionadores, que rapidamente revelam o que têem. Respeitando esse egoísmo, todo e qualquer pessoa, e para mais os autores, poderão construir o seu próprio caminho de apropriação, de recriação, de reinstauração. No entanto, temos também o dever, e não somente o direito, de exigir que esse movimento se revista de alguma dimensão significativa. E é aqui que surge o segundo factor de imperfeição deste Alice in Wonderland. É que Burton (ou Woolverton, a argumentista) parte do pressuposto que é capaz de “melhorar” a obra de Carroll. Deleuze apresenta uma argumentação esmagadora da fraqueza da reinvenção da lógica de Carroll, por contraponto a um Artaud, por exemplo, em Logique du Sens. Mas a crítica de Burton/Woolverton é mais prosaica, partindo-se da ideia de que o livro é uma amálgama mal-enjorcada de breves encontros, sem um mel agregador, e sem todos aqueles elementos calcados até à exaustão à la Joseph Campbell-Robert McKee (o cansado “monomito”, no qual por exemplo A Noiva Cadáver encaixa que nem uma luva até se tornar uma espécie de pastiche mole de si mesmo), que é precisamente o que a dupla providencia para este filme.
Este princípio de arrogância face à obra original, que transparece mais do que a capacidade reinventiva que se esperaria, a subsunção aos programas narrativos mais repetitivos da contemporaneidade do entretenimento, a desproporção entre a camada da inventabilidade tecnológica e alicerçamento nos efeitos (mas enfraquecimento destes em nome da narrativa e da lógica de fantasia) – ou, por outras palavras, o seu “teor material” – a revisitação a uma moral maniqueísta (as personagens “más” são tão ridículas por hipérbole quanto a “boa moral” final), histriónica (Depp parece cada vez mais especializar-se em personagens de cartão, “bonecos”, com este Chapeleiro Louco misturando Madonna e doses maciças da MTV [e ainda os olhos heterocromáticos da Delírio, de Gaiman, que me parece uma fonte mais directa do que Bowie]), e muitas vezes de um mau gosto atroz (a expectativa pelo “futterwacken” é derrotada por um momento grotesco mau gosto e total dependência das CGI), torna este filme superficial num perfeito pasto para o cosplay, a citação em festas, e a languidez vazia que passa por “romantismo” nos nossos dias (com os laivos de Crepúsculo), mas nem faz dele uma obra maior nem um digno dialogante com a obra original.
“Down the rabbit hole” ganha um novo significado.
Nota: tendo dado uma entrevista para a Sapo sobre alguns dos livros de banda desenhada que aproveitam os materiais e elementos de Alice in Wonderland de Carroll, para públicos "adultos" (enfim...), deixo-vos aqui o link. Agradecimentos ao Luís Salvado, pelo convite e sugestões, à Inês Mendes, e à Bdmania, pela hospitalidade. Ainda tinha falado do Alice do Atak, mas não houve espaço para tudo...