11 de junho de 2011

Commando Torquemada. Evangiles I, II, III. Xavier Lemmens e Philippe Nihoul (Fluide Glacial)

O humor francês [os autores são belgas, avisam-me... cai o edifício do que está escrito?, posso falar de um humor francófono?, de uma zona que compreenda a Valónia?; as minhas desculpas] tem uma história longa de atravessar linhas que noutras paragens, inclusive em Portugal, são vistas como intransponíveis. E esse humor sempre teve expressão gráfica, desde a pornografia com praticamente todas as figuras políticas que se possam pensar aos salões da ilustração/caricatura de imprensa, do rei Luís Filipe visto como pêra por Philipon ou Gargântua por Daumier ao Sarko-“voyou”, e com toda a bateria de publicações - clandestinas, perseguidas ou legais - , da Lanterne e L‘Assiette Au Beurre e Crapouillot às revistas mais modernas e mais consensualmente de banda desenhada, como a Pilote, Hara-Kiri e Fluide Glacial. É verdade que o tipo de humor destas últimas revistas não é tão vincado, mordaz ou brutal como outras publicações anteriores (razão de novos modos de censura e circulação, sem dúvida), ou de outros círculos mais contemporâneos, e são bem diversas entre si, mas ao mesmo tempo essa modelação mais clara permite ao mesmo tempo uma maior visibilidade e acessibilidade junto a um público alargado. [Essas revistas terão outros tipo de criações mais fortes, como Fred na Pilote, e Goosens na Fluide Glacial, de que falaremos em breve]
Quando João Paulo II morreu, o jornal Charlie Hebdo publicou nas suas páginas toda uma série de caricaturas do Papa que fariam estremecer mesmo os mais críticos das suas políticas. Ver ganhar figuração e forma algumas situações que até poderiam correr, e correm, em muitas anedotas orais não tem jamais o mesmo efeito… O Comando Torquemada também envolve o Papa João Paulo II, mas não nos parece que seja assim tão forte na sua virulência.
A propósito do catálogo da retrospectiva de Leal da Câmara, falámos de alguns episódios ou facetas da atitude portuguesa para com a caricatura, e muito mais haveria a discutir, tivéssemos nós o conhecimento de poder fazer associar a essa mesma história vertentes outras tais como a separação ainda existente do ataque político ou ideológico da vida mais pessoal dos visados, as relações da imprensa portuguesa com a censura, a pós-censura e a cultura entretanto herdada de 48 anos de um regime opressivo, etc. O trabalho pessoal de Álvaro Matos, director da Hemeroteca de Lisboa, e a base de dados desta instituição, por exemplo, é um excelente ponto de partida para isso. Por outro lado, também seria importante debater os 500 anos de cada vez maior abertura em relação a questões de religião, que permitem fazer certos trabalhos de caricatura impensáveis noutras épocas históricas, e que deveriam estar nas nossas consciências quando nos deparamos com caricaturas sobre outras culturas e modos de ver o mundo que não partilham essa “abertura” eurocêntrica.
Toda esta introdução não serve para amansar os propósitos marcados desta obra de Lemmens e Nihoul, mas temos de compreender que este tipo de jogos de referências e humor já não se reveste do mesmo tipo de mandíbulas que teriam noutras circunstâncias. A premissa é bem simples. A Inquisição (tal como ela é entendida de um modo geral e caricatural) ainda existe, controlada por um jesuíta (perdoe Deus aos autores por alterar as ordens responsáveis), Juan Carlos Albuferque, ou Anaconda, e, dependendo do tipo de missões que há a resolver, dispõe de uma mão-cheia de comandos de acção. O pior de todos é o Torquemada, composto por uma freira sensual, a irmã Sarah (mas puríssima nas suas acções, com a excepção do estranho prazer que tem em se fustigar pensando nas chagas de Cristo) um frade especialista em venenos, Malachie (com um fortíssimo pendor para deixar um rasto atrás de si de ataques psicadélicos) e o ex-agente do IRA, o padre Feargal, expert em toda a espécie de armas e técnicas de torturas.
A partir daí, cada um dos álbuns apresenta, na sua tipicidade de “aventuras”, uma missão específica: a recuperação de documentos proibidos, a recuperação da lança de Longino, a destruição da carreira de uma freira cantora toxicodependente e lésbica que passou os limites do admissível pela Igreja, e o evangelho perdido de Judas, que prova a homossexualidade de Jesus (de que vemos aqui um “fragmento”…).
Estes dois elementos, as personagens por um lado e as missões por outro, permitem então aos autores salpicarem as páginas deste livro (trata-se da versão integral) com inúmeras referências que os leitores compreenderão, dos Monty Python (veja-se a vinheta com o comando) aos variadíssimos Códigos Secretos, a outras esferas de humor mais adolescente mas não menos eficiente (como a piscina do Papa, os seus ataques de raiva recorrentes, os seus apetites menos espirituais…).
Quer em termos de narrativa quer em termos de arte, esta obra é simples, linear e directa nos seus objectivos, e cumpre-os. Não se procuram estruturas narrativas demasiado complexas, mas integrando várias acções paralelas e desordens temporais que a tornam mais densa; o desenho é quase transformado num exercício de apontamento, suficiente para percebermos as acções e emoções das personagens, sem necessidade de distrair desse fito através do virtuosismo. Estamos longe de preocupações estéticas maiores, e antes numa mais simples abordagem comunicativa, o que não quer dizer que não existam modos de exploração interessante daquelas especificidades estruturais permitidas pela banda desenhada. O jogo de interesse está precisamente na rede de referências, de piadas curtas, de momentos em que se pisca o olho a ideias neo-colonialistas, racistas e machistas, explorando-as de tal maneira até que são devolvidas pelo frágeis que são. É daquele tipo de ironia que, junto àqueles que não a reconhecem, pode fazer-se passar por coincidente com o que tentam desmontar.
Muito provavelmente, o maior divertimento e proveito na leitura de Commando Torquemada estará mesmo em tentar perceber de que lado está mesmo o sentido da história…
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

10 de junho de 2011

CBDPT2011

Serve este post para dar a conhecer através deste espaço a organização das Primeiras Conferências de Banda Desenhada em Portugal, as quais esperemos se tornem um fórum de encontro de investigadores e leitores críticos da banda desenhada, que produzam esse discurso em língua portuguesa.
Para mais informações, vejam o blog (ainda em produção) correspondente.
A imagem é de Filipe Abranches, que utilizamos com o seu conhecimento e autorização.

Picture This. Lynda Barry (Drawn & Quarterly)

Tal como Edmond Baudoin, e talvez um outro pequeno punhado de artistas da banda desenhada, Lynda Barry cria livros que, mais do que um conjunto de criações heteróclitas e independentes entre si, são blocos do seu próprio “Poema Contínuo”, em que cada novo passo inflexiona um percurso que já vinha de trás e se articula e enriquece com esse novo passo. Se Barry atravessou uma fase de livros que se integravam de uma forma menos problemática na carreira dos géneros da banda desenhada, a saber, no território da autobiografia (mais ou menos velada), com Ernie Pook's Comeek - colectado em vários volumes/títulos, a partir de One! Hundred! Demons! ela penetra outros territórios contíguos, complicando a relação entre a banda desenhada e a ilustração, o livro de artista, e outros círculos de criação.
A frase anterior, no entanto, parece resolver de uma penada um percurso de extrema riqueza, variedade e questionamento de todos os seus termos. Afinal, Barry iniciou alguns dos seus passos em círculos artísticos, criando objectos impressos na Printed Matter (pelo qual Catarina Leitão também passou) como o Naked Ladies! Naked Ladies! Naked Ladies!, um naipe (literalmente) de representações de mulheres de todas as configurações físicas, étnicas, e de papéis sociais, e, para mais, representadas nuas, como forma a desfetichizar o olhar masculino mais premente nestes mesmos territórios. Mas também é amiga e foi colega de Matt Groening, com quem chegou a círculos mais populares e abertos, através de bandas desenhadas publicadas em jornais, participação nos quais nasceria Ernie Pook e que lhe garantiria um espaço de reconhecimento. Mais, apesar de dizermos “autobiografia”, a verdade é que Marlys, a personagem que se pode fazer passar por avatar da própria Barry nalgumas dessas histórias, eventualmente atravessa construções fictícias que não tornam a existência do “pacto autobiográfico” muito simples de ler. Ainda, e tal como estudado por Hillary Chute em Graphic Women, Lynda Barry é mais uma autora que explorou sempre mais os não-ditos do que a representação directa das suas memórias e traumas (ao contrário, mas sem qualquer tipo de valorização inerente a esse sinal, de autoras como Phoebe Gloeckner, Debbie Dreschler, Marjane Satrapi, entre tantas outras).
Ainda assim, até certo ponto poderemos dizer que o trabalho tinha uma coesão determinada que se diferencia muito do que apareceria com os três últimos livros: One! Hundred! Demons!, What it is e este Picture This: The Near-sighted Monkey Book. Julgamos que essa diferenciação opera em duas dimensões da obra de Lynda Barry.
Em primeiro lugar temos a maneira como o material empregue se torna semanticamente importante. Isto é, em vez de termos a utilização simples dos materiais na construção da figuração, do mundo diegético, das imagens, para que possa emergir a ilusão desse mesmo universo ficcional/narrativo, esses materiais existem de uma forma que não deixam jamais de se mostrar como tal, não ficam subsumidos aos significados da representação para a qual contribuem; bem pelo contrário, preservam a sua especificidade e características, o seu “peso”. O mais importante, porém, é que a preservação da sua materialidade não serve somente para a criação de uma rugosidade - a autora fala mesmo de “bumpiness” -, como que uma promessa táctil (háptica) no domínio do visual (óptico), mas antes para a transformação dessas unidades de material em unidades de sentido. A autora utiliza como suporte, por exemplo, papéis que preservam as suas funções ou formas originais: papel amarelo pautado (“legal paper”), páginas arrancadas de livros, papéis de embrulho. E se algumas dessas experiências nos poderiam eventualmente colocar num caminho por onde passam Tom Phillips ou Jorge Nesbitt, a diferença está em que Barry não está muito interessada num diálogo conceptual entre o texto anterior e o novo, numa espécie de construção do sentido por camadas, de construção de palimpsestos, mas somente nessa realidade enquanto aproveitamento físico e material das condições, promessas e potencialidades desses materiais. A atenção da autora, portanto, é mais de aproximação táctil, do que ponderação intelectual.
Associada a vários movimentos feministas, que empregavam este tipo de atitude com materiais, Isabelinho, num post sobre Barry no seu blog, cita um nome do movimento Pattern and Decoration, e Chute também fala do modo como esta autora tenta corrigir a ideia negativa associada à palavra “decoração”. Mais do que intertextualidade, portanto, Barry cria uma rede de associações às quais poderíamos dar o nome de intermaterialidades.
Por outro lado, a diferenciação diz respeito à matéria conceptual que é trazida à colação, à superfície da leitura e interpretação, que é de facto muito complicada. Como poderemos descrever este livro? Se a resposta optasse por descrevê-lo empregando os termos “banda desenhada”, “autobiografia”, “livro de actividades”, “manual artístico”, “colecção de desenhos”, “diário gráfico”, “exploração de técnicas”, “meditação sobre arte”, “Kunstlerroman”, e ainda outros, nenhum deles seria suficiente, o seu conjunto não seria exaustivo, e a sua combinação não nos prepararia para o efeito final da sua leitura. Se é que leitura é a palavra mais exacta para a acção a que Picture This nos obriga. Mais do que leitura, com tudo o que essa palavra implica de linearidade, acumulação de informação com vista a uma teleologia e uma finalidade, uma resolução climática ou de alívio final, este livro convida à consulta livre. Eis aí uma outra dimensão que a reaproxima de Baudoin, sobretudo nos livros deste artista francês que versam o ensino do desenho, o despertar da poesia que o desenho pode encerrar na sua aproximação mais simples, de acto imemorial ou físico simples como veículo para despertar um acesso profundo a estados emotivos, criativos ou mesmo de iluminação intelectual expressivos. Não é uma surpresa que a associação ou mesmo chamada directa que Barry faz de noções Zen esteja presente. A autora explica como se baseando numa manuscrito Zen antigo, que versaria as artes caligráficas (apontando desde logo à corrente sino-japonesa da continuidade entre o texto e a imagem, ou a escrita e o desenho/pintura pelo gesto artístico de fundir os movimentos do pulso com o pincel), se lhe despertou a vontade de criar um modo de construção que não passaria pela planificação narrativa ou imagética, mas sim por um “ataque” imediato ao papel. O símbolo de um monge simiesco com um sorriso búdico, espalhado ao longo de Picture This, não é mais do que um eterno retorno a essa noção de raiz.
A linguagem tem também um papel preponderante no livro. O título, Picture This, pode ser lido/traduzido para português de duas formas. Ou utilizando-se o imperativo “picture this”: “imagina isto”, ou um mais literal, e torto, “imagem isto”. O primeiro lança-nos a uma das possibilidades de uso desta obra, a de uma espécie de manual de exercícios zen de desenho e despertar da expressividade. A autora pontua todo o livro com pequenos exercícios de desenho, de coloração, de estratégias de preenchimento de figuras, das páginas, de folhas, dobragens, cortes, etc. Se recorda alguns dos livros de exercícios de imagens infantis, também se pode aproximar de esquemas mais complexos virados para novas abordagens livres e psicologizantes para adultos. A segunda opção, ainda que muito mais frágil em termos geométricos, respeita mais o paradoxo de toda a obra. Uma colecção heteróclita e livre de imagens, sem quaisquer preocupações de uma subsunção absoluta e final, que mima as vontades da autora, as flutuações de humor, os ritmos de criação livre a que se propôs e que persegue. Mesmo com a organização em capítulos diferenciados pelas estações do ano, com cores correspondentes, o interior está sempre a vogar por entre as várias linhas de desenvolvimento narrativo ou pseudo-narrativo. E toda a sua matéria paratextual (dos créditos de produção às páginas de título, molduras das páginas e numeração, etc.) tem também uma dimensão material significativa. Tudo deve ser lido para construir o sentido final (se este existir, ou se for perceptível/capturável).
O “macaco míope” é a própria autora, estamos em crer. Não só é ela representada com o famoso lenço à cabeça que Barry sempre leva, como as suas actividades semi-passivas parecem ser um contraponto à actividade da própria autora, que se coalescem na existência do livro que lemos… Esse macaco, e outras personagens recorrentes, também de contornos mais simbólicos que agenciais, fazem continuamente publicidade a uma marca fictícia de tabaco chamada “Don’t”. É curiosa essa escolha, pois ao dizer-se “Smoke Don’t”, opera-se uma inversão gramatical em inglês que não só complica o acto publicitário como abre toda uma segunda série de paradoxos que não são resolvidos no livro. Não se procuram soluções; bem pelo contrário, é a abertura de novas questões o que importa e, outra vez, é muito próximo dos koan zen.
Estas formas tornam ainda mais importante o trabalho de Barry, e, como escreve Domingos Isabelinho no seu blog, a sua ausência de exposições, balanços ou considerações gerais sobre os “melhores” da banda desenhada - arrolamentos que não apenas são sempre fragmentários e temporários, mas por vezes contra-producentes à respiração natural e crescente de uma arte - revelam o desequilíbrio constante da banda desenhada em relação às outras esferas criativas, por problemas (de cegueira) criados pelo seus próprios mecanismos. Barry é um dos pilares dessa outra forma de ver este campo.