30 de janeiro de 2006

Pascin. Joann Sfar (L'Association)


Primo. Uma busca rápida e tipicamente enciclopédica fará notar que os dois grandes temas recorrentes de Pascin, nom de plume do romeno Julius Mordecaï Pincas, pintor da Escola de Paris, cidadão do mundo, ilustrador do Simplicissimus (“a melhor publicação ilustrada de todos os tempos”, de acordo com o mini-site da Coconino World), foram os cartoons (pequena e simples plataforma de traços breves onde cabem o riso, o sarcasmo, a escolha pelo detalhe mais importante, o gesto que tudo diz em pouco) e as mulheres (que, como diz a canção, è mobile...). E esses parecem ser os dois únicos elementos que Sfar propõe utilizar no seu Pascin.
Secondo. Existe um género (sobretudo literário, mas que todos os leitores de banda desenhada contemporânea reconhecerão ser utilizado em larga medida numa certa produção norte-americana, sobretudo, mas também francesa) relativamente recente a que se dá o nome de autoficção, termo cunhado por Serge Dubrovsky como sendo, não autobiografia, mas “ficção, a partir de eventos e feitos estritamente reais. Ou mesmo, se o quisermos, autoficção, passando da linguagem de uma aventura à aventura de uma linguagem em liberdade, fora da sabedoria e da sintaxe do romance, seja este tradicional ou novo”. Discussões à parte, que levam ao estilhaçamento desse suposto género em sub-divisões, mais ou menos precisas, mais ou menos discutíveis, aceitemos, com Arnaud Genon, que se trata de “práticas literárias da invenção e da fabulação do Si”. O que nos permite colocar sobre essa bandeira desde Yourcenar a Edgar A. Poe, de Borges até mesmo Dante. E na bd? Debbie Dreschler, David B., Baudoin, Killofer, Seth, Kochalka (mas não Joe Matt, Chester Brown, Jeffrey Brown, Marjane Satrapi, pois não ocorre o “desvio” ou a “aventura da linguagem em liberdade” – ponto discutível). Que tem isto a ver com o Pascin de Sfar, se a personagem principal é o pintor das primeiras décadas do século XX, e não o próprio Sfar, condição sine qua non para que se tratasse desse “género”? A questão é que esta não é a história de Pascin, mas do próprio Sfar-enquanto-Pascin.
Joann Sfar é um autor extremamente se não impressionantemente profícuo, e que se tem dedicado aos mais diversos tipo des de produção, sejam estes infantis (Sardine de l’Espace, Petit Vampire), juvenis (Socrate, Grand Vampire, Le Petit Monde du Golem, Donjon), ou mais adultos (Le Minuscule Mosquetaire, Le Chat du Rabbin, os seus Carnets dos instrumentos), passando ainda pela ilustração e comentário de clássicos (O Banquete de Platão e o Cândido de Voltaire, até agora), e ainda a criação de novos géneros como L’Homme-Arbre – cunhado como “High-fantasy hassídica”... Os títulos e os projectos sucedem-se, e é sobejamente conhecida a sua incapacidade em parar de desenhar. Tal como Baudoin, também Sfar pensa pelo desenho (veja-se Ukelele e alguns dos diálogos de Pascin que discutem esses mesmos problemas e possibilidades). Sfar estudou filosofia e não há nenhum título em que ela não surja, de formas ora menos ora mais veladas, mas sempre buscando-se uma explicação pertinente e necessária à história em questão. Pascin não é excepção.
É curioso que as primeiras palavras ditas intradiegeticamente, e por uma das modelos/amantes do pintor, seja o seu nome verdadeiro. É como se surgisse para ser apagado de imediato, duplamente. Primeiro pelo pseudónimo pelo qual é mais conhecido, “Pascin”, e depois por esta não se tratar da personagem real e histórica, vivendo numa biografia estudada, mas se transfigurar numa personagem fictícia que revela mais do próprio Joann Sfar do que da época supostamente retratada. Este Pascin vive obcecado com o desenho, preferindo-o mesmo à pintura – que nos dizem as enciclopédias ter feito. Este Pascin vive obcecado, à vez, com cada uma das mulheres com quem vive e que vive – apesar dos dados biográficos apontarem para uma vida mais regrada e pautada por viagens, não obstante os obrigatórios excessos dos anos vinte, das cenas de Paris, Nova Iorque, e o final suicida do pintor. Este Pascin, o que habita entre as páginas criadas por Sfar, é um avatar de um diálogo possível entre o próprio autor e a sua obra. Através destas peronagens, dos espaços que percorrem, dos episódios superficialmente desconexos e variados que se sucedem, do convite às palavras dos outros (Sandrina Jardel), servem um só propósito que é a criação de um tipo muito particular de diário gráfico. A ideia de diário com Pascin é reforçada pelo facto de Sfar recorrer a toda uma série de registos gráficos, quer em termos materiais – carvão, aguarelas, lápis, tinta, china, outros? – quer em termos de expressão – ora mais livres, quase próximo de um esquisso de estudo inicial, ou apontamentos a utilizar e estruturar mais tarde, ora mais “arredondados”, em que surge uma preocupação em finalizar a figuração, ora deixando as figuras flutuar numa página quase branca, ora preenchendo-a ao máximo com objectos, pessoas, ambientes, sons, aromas, dobras nas quais se esconde um mundo. Essa flutuação revela-se na própria estrutura diegética, com episódios mais longos, pausados, em que as personagens se ficam durante um extenso momento para criarem um laço indelével com Pascin, com desvios curtos que esboçam fugazmente o contexto histórico-real, com descrições que fazem emergir toda a importância interior do espaço em que Pascin e os seus se movem, com pinceladas generalíssimas para os fazer simplesmente passar como corpos visuais. Por vezes surgem personagens que jamais se cruzam com Pascin, como o misterioso austríaco e a sua “mulher silenciosa” (Será o conde de Saint-Germain?), mas que servem no entanto para aprofundar a rede de relações da personagem, colocá-lo num determinado universo diegético próprio de Sfar (que estabelece um “universo ficcional” que atravessa os seus vários títulos e bebe muito do esoterismo de várias culturas, sobretudo o judaico como não poderia deixar de ser...).
É uma fonte de surpresas o facto de que, apesar da sua estrutura fragmentada não se aparentar em nada com, por exemplo, Wimbledon Green ou com Ice Haven, pois não se trata de focar em “pontos específicos” de uma “trama maior”, mas sim linhas diferentes de uma mesma rede que se mantém invisível no fim, ainda assim Sfar nos apresenta uma magnífica e refrescante obra de banda desenhada. Não é, de facto, um livro que possa agradar a todos, pois a sua leitura é difícil e desagregada, e, mais uma vez, como um “passeio nos bosques da ficção”, passeio que se preza mais a nos perdermos e sentarmos à sombra das árvores que vamos encontrando do que preocupados com a saída dele. Mas parece-me tratar-se de uma das obras mais, “acabadas” parece-me uma palavra tendenciosa, talvez “conseguidas” sirva... É uma espécie de confessio, de apresentação de um programa, de uma vontade de Sfar, o que representa para ele a existência através do desenho, desvio de um discurso demasiado racional, e que pode revelar âmagos bem diversos do que nos permite a inteligência. Não é que seja “superior” a qualquer arte, pois apesar de Sfar-Pascin utilizar o seu humor para desprezar o trabalho dos seus companheiros e confessar que “tenho a minha pena, a minha tinta, algumas cores e isso basta-me”, o facto é que Sfar-autor dá a palavra aos outros para expressarem as suas perspectivas (veja-se o diálogo entre Antanas e Chaïm Soutine no seu “combate de machos”). No entanto, tudo isso é-nos transmitido... através dos seus próprios desenhos!
Enfim, Pascin revela-se como uma personagem que expressa os seus sentimentos e ideias através do desenho, reservando todo o resto da sua expressão para relações imediatas, chãs, por vezes violentas, com todo o mundo que o rodeia. Do que exala um cheiro o mais humano, vivo possível...
Nota 1. Há um livro companheiro, Java Blues, que se presume uma colecção de aguarelas, coloridas, de uma vertente basta e graficamente erótica, numa continuação de um dos interesses mais marcados do Pascin de Sfar. Nota 2: a capa aqui colocada corresponde à edição recente e integral. Apenas tendo lido os seis volumes da colecção Mimolette, desconheço se existirá material inédito ou rearranjos nesta nova edição. Agradecem-se comentários e informações a esse (ou outro) respeito. Posted by Picasa

Diary of a Mosquito Abatement Man. John Porcellino (La Mano)


ou Existe Minimalismo na Banda Desenhada?
Talvez pareça um tremendo disparate e uma inutilidade absurda dizê-lo, àqueles que conhecem as respostas ou já pensaram a questão, mas penso que ainda merece o esforço voltar-se à seguinte afirmação: a banda desenhada é um modo de expressão particular. É verdade que partilha elementos ou estratégias lógico-formais com outras artes (a literatura, o cinema, as artes visuais em geral e a pintura em particular), mas é importante que essas unidades lógico-formais não sejam instituídas para depois as elevar a uma espécie de modelo aristotélico (modelação “a seguir”), precisamente porque a arte instaura um território de desterritorialização, de estranheza, no qual o Logos resvala, perde a sua aparente capacidade de tudo captar. Uma imagem que sobrevive, isto é, vive mais, para além da capacidade – limitada – da razão a subsumir a um género. Não obstante, portanto, essas unidades serem coincidentes com os de outras artes, a banda desenhada possui os seus mecanismos próprios. Mais importantemente, possui as suas crises próprias. As crises da banda desenhada não são as do cinema, sua mais próxima irmã quer em termos cronológicos quer em termos de ter nascido no seio da sua própria experimentação (ainda que não filhas do mesmo pai, a saber, duas Tecnologias diferentes). As crises pelas quais a pintura atravessou não são as que a banda desenhada tem de experienciar para… “crescer”, “evoluir”, a banalidade do mês que preferirem. E essas coincidências podem ser tão ilusórias e insistentes e inflectidas por tantos canais, que não nos surpreende de todo que ocorram também nas nomenclaturas. É o que me parece acontecer com este termo nos seus empregos em variados campos da criação, ainda que tenha em conta que poderão dizer que essa aproximação será apenas nominal, e que apenas nos lança em mal-entendidos. Seriam continentes iguais para conteúdos muito diversos. E com Wittgenstein sabemos que as mesmas palavras-invólucro podem ter conteúdos diferentes em dois diferentes “jogos de linguagem”, sendo o seu resultado, precisamente, esse expectável mal-entendido.
Um desses mal-entendidos parece-me ser o abuso da palavra “minimalismo” quando aplicada a uma certa linha de criação de banda desenhada contemporânea. Em primeiro lugar, aborrece-me a tentativa de classificações que sempre surgem a cada momento, como se uma qualquer teoria de géneros, ou uma estratificação pelas superfícies nos ajudasse de algum modo a ler melhor a banda desenhada, quer fruindo-a com prazer quer remetendo-nos através dela a um discurso mais geral sobre a História e a Vida das Imagens (e, logo, da Cultura). Ajudará, talvez, a arrumar as prateleiras. Mas como terão experienciado todos aqueles cujos gostos e aquisições são múltiplas, as arrumações de prateleira mudam de tempos em tempos, respeitando algo que se metamorfoseia em nós, e que é raro mantermos um qualquer princípio apriorístico durante um largo período de tempo.
Depois, porque essa tentativa em nomear de uma forma mais específica uma qualquer característica acaba por cortar, necessariamente, a sua inscrição junto a outras tantas formas. É certo que falo eu mesmo em “tradições”, “agrupamentos”, até em “escolas”, “filiações” talvez… Todavia, tento fazer disso um uso livre e múltiplo, que permita todo o tipo de inflexões possibilitadas por cada obra em questão. Não penso que quem use este termo de Minimalismo – e eu mesmo já o fiz, aqui – o faça fazendo ligações directas às artes plásticas (cujo grande figura de proa foi Donald Judd) ou à música erudita contemporânea (com variadíssimos famosos compositores). Convirá, ainda assim, procurar entender que poderá significar essa palavra, forçosamente de uma maneira o mais concisa possível, e tentar compreender se se aplicará à banda desenhada, e aos autores usualmente a ela associados, em especial o autor-desculpa ao presente ensaio, sumo pontífice do estilo gráfico com esse nome outro de minimalismo, John Porcellino, nesta sua recente antologia, The Diary of a Mosquito Abatement Man.
O termo de “Minimalismo” é algo conturbado, apontando regra geral para um despojamento, uma redução de uma dada linguagem – pictórica, sonora, propriamente linguística, narrativa ou outra – aos seus mais essenciais elementos, quer formais quer de significado, procurando assim uma “destruição da ilusão” das convenções da linguagem, do belo, dos contratos sociais. A sua aplicação difere, porém, se aplicada às artes visuais – nas quais a redução a uma mão-cheia de materiais é mais visível, como em Donald Judd – se à literatura – diminuindo a linguagem à sua comunicabilidade extrema e “pura” (oscilando desde o Kanzleideutsch de Kafka aos versos de um “average English” de R. Carver?) – se à música – na qual a repetição e a composição matematizada e serial são rainhas, desde Terry Riley.
Um conceito, mas intimamente relacionado com o grande advogado do minimalismo nas artes visuais, Donald Judd, é o de “objectos enfaticamente auto-referenciais que unem forma, material e conteúdo, encontrando-se assim entre a matéria e a mente, separadas de ambas, não representando nenhuma”, para citar de modo oblíquo Prudence Carlson, num texto sobre Judd, de um catálogo do CCB, 1997; nesse mesmo catálogo, num texto do famoso Hal Foster, encontrarão mesmo um “princípio do Minimalismo”, que retraduzo aqui: “Característico de uma forma [gestalt] que após se instituir exaure toda a informação sobre si mesma, enquanto forma [gestalt]”.
Enfim, que poderá significar tudo isto? É querer fazer-se crer na existência de uma possível redução do número dos traços gráficos ou da informação visual como que, concomitantemente, erigindo uma espécie de “notação” cuja chave é acessível a um primeiro, breve olhar. Isto é, numa palavra, a sua redução ao signo. (É esse o projecto filosófico, por exemplo, do Grupo µ, no seu Traité du Signe Visuel). No entanto, e já muito foi escrito e debatido sobre o caso, melhor do que alguma vez conseguiria fazer (no campo da banda desenhada, é Harry Morgan quem melhor expôs este problema em Principes des Litteratures Dessinées), pode-se tornar inteligível essa impossibilidade, se não “erro”, na seguinte consideração, que coloca em duvida a emergência de uma semiótica geral: o signo visual, ao contrário dos linguísticos, não tem dupla articulação, isto é, não pode ser decomposto em elementos menores do que os mínimos que ainda possuem significado, e que poderiam ser, por se diferenciarem entre si, elementos estruturais. Tais como os fonemas “b” e “p”, não tendo um significado em si, alteram estruturalmente – e, logo, o significado – às palavras “bato” e “pato”.
Se tal fosse possível, e se se erigisse um dicionário visual, então estar-se-ia correcto sem dúvida na consideração dos rostos (mas pouco mais) das personagens em Hergé ou de toda a série Peanuts, de Schulz, como “signos”. Assim, apelidar-se-iam de minimalistas não só Porcellino e José Parrondo, como Chester Brown (sobretudo em Underwater), Ron Regé Jr., Pauline Martin, Sam Henderson, Calpurnio, Ivan Brunetti... mas porquê pararmos aqui? Jeffrey Brown, Liz Prince, e algum do L. Trondheim (os primeiros álbuns?)... Quer isto dizer, portanto, que tudo se diz e tudo fica por dizer.
Devemos, informados por alguma da mais contemporânea filosofia das artes (grande peso no sobejamente citado Georges Didi-Huberman, retomando os estudos quase-esquecidos de Aby Warburg), riscar a ideia do signo – estrutura solitária, fixa, inflexível – para atingir a do sintoma. O sintoma é um conceito complexo, que não sei se terei o direito de tentar explicitar, pois incorrerei certamente na sua redução, quiçá mesmo incompreensão e consequente banalização. Trata-se de uma forma, uma plasticidade, que revisita o mundo de um modo inconsciente, uma presença que retorna não obstante a ilusão contínua de estarmos perante uma “evolução” – uma evolução dos géneros, das artes, das linguagens, da cultura, também da história... É um conceito, mais do que trans-histórico, a-histórico, e que no seu constante movimento perde a sua identidade, fazendo o seu significado proliferar, sobredeterminar-se, mesmo de um extremo ao outro (por exemplo, no caso geral que aqui abordamos, uma personagem desenhada com um número reduzido de simples traços pode ser um gesto visto como “redução à simplicidade sígnica” ou como “sublimação à essência pura”). “As imagens também suportam reminiscências”, para citar um dos capítulos de Didi-Huberman em L’Image Survivante, precisando-se que a memória não é o retorno do mesmo, mas um traço de memória que sobrevive. Aí reside o nosso trabalho: ter cuidado para não encontrar numa “mesma” forma o “mesmo” significado, mas estar alerta à inconstância da memória, a todo o corpo em que se insere esse “falso órgão” (v. mais à frente), cujo funcionamento pode não estar a obedecer a nenhuma norma generalizável. Entendam que isto faz parte também de uma contínua investigação que não encontrou ainda – nem poderá jamais cessar? – o seu termo.
Então, este, o sintoma, não deve ser entendido enquanto síntese, como um texto/objecto acessível a uma descodificação... Ele é incompreensível em si mesmo, como um rosto de uma pessoa que não conhecemos ou acabámos de conhecer. Só pode, só deve, só exige ser interpretado. Como todo e qualquer obra artística, afinal. O minimalismo de Porcellino será o mesmo que o de Trondheim das primeiras obras – os experimentalismos e iterações oubapianas ou para-oubapianas de Psychanalyse, de Moins d'un quart de seconde pour vivre (com Menu), de Le dormeur ou a tira que abre o seu site actual - ?
Terá antes a ver com o seu emprego, o seu uso e fim? De novo caímos nos termos de uma teoria de géneros. O minimalismo implicará necessariamente uma diegese mais adulta e introspectiva? Assim, considerar-se-á todo o Jeffrey Brown (com o complicado Bighead no meio, o seu próprio Superfuckers...) e toda a Maaike Hartjes mas não Joann Sfar, cujo “estilo” é, afinal, idêntico, de uma caligrafia quase viva? Ao considerar parcialmente Sfar, seria a sua série Pascin que estaria no centro da atenção, ou os Diários “dos instrumentos”? Seria permissível incluir o uso do seu traço em Le Chat du Rabbin ou mesmo em Sardine de l’espace (na verdade, ligeiramente diferente nos primeiros livros)? Será por estes últimos títulos terem um público – um fito – mais infantil, que se acabam por relegar da primeira consideração? Ou devemos estar antes atentos à forma e ao seu despojamento, incluindo assim Ariol (Guibert e Boutavant), Spiral-bound (Aaron Renier), mesmo que estes atravessem o estratagema comum de antropomorfizarem animais, logo não passando pela “destruição de ilusões”? Mas o desenho, um desenho, é já uma formatação, uma estruturação (agencement), uma escolha dos elementos em relação aos referentes reais da experiência dos autores, logo, uma ilusão de uma qualquer espécie. Se se trata de “redução” de um material existente, então porque está Schulz na lista central, e não Gerchner, quando trabalha sobre um álbum de Tintin (T.N.T. en Amérique)? Onde cabe aqui Herriman e as suas ante-oubapianas variações (na acepção musical do termo) e despojados/diferenciados cenários?
Se nos ficarmos pela autobiografia como género temático (genera propriamente ditos, pela tradição latina e medieval) por excelência do género formal (já associado a um significado instituído pelos gregos, com eidos, a “forma”) do minimalismo, devemos, em primeiro lugar, pensar nas sobejamente conhecidas propriedades da autobiografia, a saber, as semânticas – nas quais entendemos ser o autor real e histórico a personagem principal e/ou narrador – e as pragmáticas – que apelam para um “falar verdade” e não “criar ficção” (se bem que essa “verdade” seja, pelo acto de atravessar uma estruturação, discutível).
As questões imediatas são: se o minimalismo é um “género formal” então não se poderá esperar um simples emprego num único (ou um grupo restrito) “género temático”, mas igualmente na mais escapista das ficções – como José Parrondo, Matt Feazell, Simone Lia e Tom Gauld o fazem cada um a seu modo; se se trata de uma reductio ad minimum, a partir de um suposto “material pré-existente”, então muito do que se considera como minimalismo – incluindo Jeffrey Brown – não o é, pode até nem existir.
E como entram casos mais complicados? The Angriest Dog in the World, de David Lynch, onde a vinheta é sempre a mesma, mudando apenas o texto dos balões?; Get Your War On, de David Rees, no qual se usa um número mínimo de desenhos típicos do clip-art, onde apenas o diálogo muda?; Red Meat, de Max Canon, onde também rapidamente se esgotam as “combinações” e “variações” entre as “personagens-tipo”?; poder-se-á acrescentar a este círculo M, le magicien... de Mattioli, apesar da cor?; poderão tiras boçais como Dilbert, de Scott Adams, e Cathy, de Cathy Guisewite, pertencer à família, ou exerce-se um círculo mais restrito a partir de um juízo de gosto (aqui, presidindo o meu)?
O problema é que seja o entendimento o de uma criação da “essência” ou o de uma “depuração”, é uma quimérica ideia a de existir arte em “estado puro”. Pois enquanto estruturação (agencement), ela liga-se de imediato, em contacto íntimo, à sua própria materialidade – sonora, visual, de cor, linguística, etc. – que tem um peso próprio e circunstancial, e surge sempre ligada aos desejos, à “saúde” do artista (vontade, processo de trabalho, diálogo que lhe é próprio).
Se a “partes” se podem reduzir estas obras, estes traços, estes desenhos e organizações, será então para a fabricação de uma mecânica inútil. “Mecanismos”, sim, como gosto de utilizar pessoalmente, nas não enquanto “organização”, isto é, precisamente conjuntos de “partes” ou de “órgãos” que sejam substituíveis, ou em que a falha de um impeça um suposto sistema funcionar, etc. É um “todo em variação interna contínua”, para utilizar a imanência descrita de Henri Bergson... Elas, as tais partes, jogam-se a cada etapa, a cada específica obra, livro, prancha, vinheta... Metamorfose completa. Percepções novas, centrais, próprias a essa indeterminação que apenas surge nesse momento. São máquinas inúteis, como disse, pelo prazer quase-sensual (ou mesmo sexual) de experimentarem estes órgãos naqueles, e depois outra combinação logo a seguir, e assim sucessivamente, só para ver a que leva, a que sabe, o bem que sabe, como nos famosos inventos de Rube Goldberg. As nossas próprias “variações Goldberg”.
Eis o busílis de sempre: as divisões de géneros, que me parecem ainda se imiscuir por toda uma certa linha da discussão sobre a banda desenhada, é algo que tem sido colocado em causa já desde Lessing, passando por Croce, Todorov, Blanchot, num teor crítico-teórico, mas também se apresentando uma vertente de criação crítica e decisiva a essa dissipação, cujos nomes a apelar poderiam ser tão diversos (ainda que consensuais) como Novalis, Baudelaire, Rimbaud, Joyce, Blanchot novamente... Desde o berço da crítica, discutivelmente na Poética de Aristóteles, existem asserções que podem ser entendidas como normativas, apresentando-se quase como critérios apriorísticos a partir dos quais, restritivamente, se iriam colocar as obras concretas com as quais nos deparamos em “nichos” existentes, postulando-os a partir de uma teoria, para parafrasear Todorov (quem particularmente sigo aqui no entendimento de “género”). Porém, a cultura ocidental, de que a banda desenhada é indubitavelmente um produto, atravessou várias crises em relação às normativizações da arte, desembocando numa situação que Blanchot, numa famosa frase, retratou: “não pudéssemos nunca reconhecer a regra, senão através da excepção que a anula” (Le Livre à Venir). Que é como quem diz, só a excepcionalidade nos faz reconhecer retrospectivamente um género (abandonado, não-respeitado); a obra que respeita todos esses “princípios estruturais” é “invisível”, diluindo-se no seu próprio género, cumprindo perfeitamente o seu receituário, mas por isso, pouco ou nada notável. Ora isto é retornar à questão de ser a própria obra a criar a sua regra, de obedecer a razões intrínsecas, endógenas à sua própria criação. Voltando a Lessing, isto significa a produção da obra não em relação a critérios exteriores – disciplinares, académicos, normativos, de género – mas tendo em vista um só fim, o da beleza, ou, na sua fórmula expressa, célebre, de “Kunst um ihrer selbst Willen” (“Arte pela sua própria vontade”). Infelizmente, seria logo corrompida em filosofias românticas e ensimesmadas da “arte pela arte”, não precisamente a ideia de Lessing, que antes dava muito mais liberdade à própria obra de arte, não ao artista.
A distinção entre uma atitude dedutiva (impor géneros como receitas a cumprir) uma outra indutiva (ver géneros num corpus anterior) é o que leva Todorov e Ducrot, no seu famoso Dicionário das Ciências da Linguagem (precisamente no capítulo/entrada concernente a Géneros Literários), a proporem a consequente diferenciação entre uma teoria de géneros no segundo caso e uma instituição de tipologias no primeiro. É esta atitude que nos importa combater.
Qualquer tipologia, classificação, generalização, sistematização é, assim, possível, e dependerá mais do “jogo brilhante” do autor em questão, do que de verdadeiras “essências” do(s) objecto(s) sob estudo, supostamente supra-históricas, trans-circunstanciais, verdadeiramente universais, isto é, tal construção testemunhará acima de tudo “uma percepção sintética, não demonstrável, por parte do crítico” (Cesare Segre). Bastará pensar na pirâmide que Scott McCloud tenta estipular no seu Understanding Comics, sobre princípios axiais formais/conteúdo. O que não se pode é depreender a partir desse esquema – uma leitura possível e válida dentro de certos limites – uma combinatória normativa ou mesmo um instrumento demasiado rígido para ler os textos que se nos apresentam de novo (nem sempre respeitando uma ordem cronológica, pois descobrimos novidades retrospectivamente, como quando se passa a considerar algo até ao momento desconsiderado, desconhecido, etc.). Muito menos estabelecê-lo como uma grelha de criação. (Para que se entenda bem, não penso ser esse o objectivo de McCloud; trata-se somente de uma válida maneira de ele procurar compreender o encontro da “linguagem mista” que a banda desenhada permite).
Por essas razões, é-me difícil instalar Porcellino (ou outro qualquer autor) num pretenso nicho, de nome “minimalismo”, e a partir daí ler a sua obra, as histórias reunidas em The Diary of a Mosquito Abatement Man. Olho não somente as formas nem os conteúdos, mas o holístico modo que ali se estrutura... Todavia, não obstante o modo como a “evolução” deve ser encarada – nenhum artista tem o seu estilo “congelado” desde o “início” – essas formas “minimalistas” não são as mesmas em todas as histórias aqui reunidas. A segunda secção é uma depuração de uma busca que só mais tarde se reúne como tal. Não estava programada desde o princípio, mas foi-se instituindo.
Nesta antologia em particular, até à história Chemical Plant/Another World, exclusive, os desenhos de Porcellino são de uma expressividade caligráfica, ou melhor, “esferográfica”, plena de uma simplicidade que nasce da necessidade de explorar apenas os conteúdos, uma “vontade em contar”. Mas Chemical Plant parece ser uma viragem drástica (notarão que não há um respeito pela ordem cronológica das histórias na edição do livro, mas antes uma preocupação pelo tom interno dessa busca, a-histórico, por isso essa viragem lê-se através da estruturação do livro em si). As formas quase infográficas não têm como fito a sua redução a um ícone (ou, lá está, signo), que sirva de fundo de leitura imutável: nas quatro últimas vinhetas dessa mesma estória, o preenchimento do espaço que circunda a carrinha por essoutro espaço “onírico/irreal” da fábrica é extremamente significativo e vivo, “sintomático”, até que apaga a presença da carrinha. Houve um “movimento de câmara”? Houve uma aproximação a um ponto espacial concreto na fábrica? Houve um crescimento quase-orgânico? Provavelmente verificou-se tudo isso, mas sobretudo uma condensação plástica da representação desse mesmo espaço e o modo como ele faz desviar a atenção de um eu para uma circunferência maior, mutação apenas possível na especificidade encontrada por Porcellino nesse mesmo momento. Que formas são essas então? Numa sua possível estratificação, são idênticas: espirais, linhas paralelas ora vazias, rectas e curvas (“tubagens”) ora atravessadas por listras (outro “tipo de tubagens”), riscos encimados por um “x” num círculo (uma “antena”), “chaminés”, “condutas”, “manípulos”, “volantes”... Mas na sua mais profunda contextualização na obra de arte são antes morfológicas, no sentido em que espalham ligações a leituras que só ocorrem, se tornam actuais, ganham contornos, no próprio acto de leitura, prometido que está na sua própria existência enquanto obra a ler...
Que há, permanentemente em curso, uma escolha, uma estruturação (agencement), torna-se claro ao se verificar que o provável acontecimento real de Porcellino se ter cruzado com um casal a ter relações sexuais num carro na praia de ComEd deu origem a dois modos quase opostos de duas estórias: “Sex on the Beach”, no qual o ponto de vista não só se centra nesse acontecimento, que se torna marcante por estar isolado de tudo o mais, e por se fazer representar com pontos de vista gráficos próximos e múltiplos das acções do casal; e “Waukegan”, apresentado como parte de toda uma experiência mais vasta, passando mesmo a segundo plano face à “transcendência” da tempestade súbita, e em que a vinheta que a representa, ainda que isolada em si de um texto dactilografado, se aproxima mais da perspectiva “real” de Porcellino (e onde a personagem se associa na cumplicidade do voyeurismo com o leitor, com as convenções do rubor).
Nota: Este livro fez-me protagonizar um engano. Quando o vi e comprei, pensava tratar-se de uma antiga antologia dos trabalhos apresentados no mini-comic de Porcellino, a série King Cat (que já vai no seu 65º número http://www.king-cat.net/), remetendo a outras colecções anteriores, The King-Cat Collection (Bülb Comix) e Perfect Example (Drawn & Quarterly)... Só depois, com uma atenção mais cuidada, é que entendi se tratar de uma antologia mais recente, reunindo uma específica linha narrativa que foi sendo tecida ao longo de dez anos, a saber, a do trabalho de Porcellino como exterminador de insectos. É como se fosse eleito um conteúdo recorrente, um complexo de eventos agrupados numa só ideia, para nos dar a conhecer uma possível “construção” da imagem do autor Porcellino – mais uma vez, insisto, não-cronológica, ou em que as leituras cronológicas se misturam, ora de eventos ora de criação, etc. O meu erro de interpretação a-cronológico não mais exprimiu essa inerente a-cronia da obra de um artista, como Porcellino, que não preenche escolas, mas cria-as consigo mesmo e encerra-as atrás de si mesmo...Tenho, portanto, dificuldade em responder de uma forma assertiva - seja esta negativa ou positiva - à pergunta que coloco como sub-título deste ensaio. Penso, porém, que é clara a minha inclinação para a primeira atitude, ma vez que permite mais espaço ao pensamento crítico, ao invés de uma mera preocupação em inserções disciplinares e formais. Posted by Picasa

Supermurgeman. Mathieu Sapin (Dargaud)


Depois das conversas sobre géneros, em tantos dos títulos ou autores aqui indicados (Junko Mizuno e John Porcellino, Lincoln e La Mort rôde ici), eis um outro exemplo de “amálgama”. Não se tratará de uma fusão, pois o objectivo é mesmo a confusão, o bouleversement total das convenções, um contínuo acumular de peripécias que se vão desdobrando. Supermurgeman (de que a capa representa o segundo de três títulos) traz à baila nas suas páginas toda uma tradição de banda desenhada. Mas ao passo que Art Spiegelman, em ...Torres..., procurava achar um sentido entre a memória da banda desenhada e a sua experiência pessoal enquanto ser histórico, Sapin atira com tudo para um caldeirão na esperança de que nasça algo... anómalo. Superhomem, o Fantasma-que-caminha, Kazar, Popeye, o teatro do absurdo e piadas de cocó-xixi, a crítica social e uma inclinação para o obsceno (vejam as guardas do livro e procurem um certo ramo de árvore... ilusão minha ou artifício pouco subtil?). Se isso não cria certamente uma obra acabada, coesa, equilibrada e, assim, angariadora de um gosto mais ou menos consensual, pelo menos titilará as mentes dos que procuram às vezes algum permanente desequilíbrio, quase no auge da ilegibilidade ou irresolubilidade... Perto de Malus, se bem que os materiais e as estratégias, os campos atravessados, sejam muito diversos...
Nota: livro pertencente (note-se no autocolante com o código de barras) à Medieteca do Instituto Franco-Português.Posted by Picasa

Sardine de l'Espace + Ariol. Emmanuel Guibert, com Joann Sfar e Marc Boutavant (Bayard)


Na verdade, dá-se aqui conta de duas séries que já reúnem 5 títulos a primeira (Ariol – um jovem burrinho que todos os dias tem de ir para a escola, mas lá chegando não se importa) e 10 a segunda (Sardine de l’Espace – jovem menina que vive aventuras siderais com o seu tio), mas que mais recentemente foram reeditadas em formato de álbum, como uma espécie de “crescimento da respeitabilidade” ou se procurassem uma maior “vida de estante”. São duas séries infantis escritas por Emmanuel Guibert, ele próprio desenhador de várias excelentes séries que tanto se imiscuem em questões de linguagem formal como das intensidades próprias de um tema recorrente, a saber, a memória, tanto em La Guerre d’Alan como Le Photographe. Ariol é desenhado por Marc Boutavant, ilustrador professional de vários trabalhos para um vasto público mais jovem, e Sardine de l’Espace por Joann Sfar.
Guibert trabalha num outro plano, como não poderia deixar de ser. Tendo como público crianças novas em idade de leitura (e o vocabulário é haddockiamente rico, mas não difícil – para uma criança francesa, pois eu preciso de dicionário), e apresentando as histórias curtas, sempre de dez páginas cada uma, numa revista (tendo sido depois reunidas em pequenos volumes que reúnem entre 4 a 6 das histórias), não nos admirará que elas sejam simples, lineares, sem variar de estratégias narrativas, registos gráficos, etc. Para além do mais, a “moral” é também directa, onde os “maus” são “maus”, e cada dia se segue como se não tivesse existido um “ontem”. Assim, os eventos de todos os dias tornam-se aventura. Não obstante, são todas personagens de imediata atracção, graças ora a detalhes que instalam crises permanentes nas histórias – por exemplo a relação do pirata “Épaule Jaune” com a mãe extremosa, a paixão de Ariol pela vaquinha Pétula, a sua crise em não ser considerado “burro”, entre outros...
Ariol fará lembrar quase de imediato, neste nosso espaço de discussão, o título Spiral-bound, sobretudo pelo emprego da “ilusão” dos animais antropomorfizados, mas mantendo ainda assim as suas próprias características comportamentais e ambientais... Outra ligação será a obra do profícuo Richard Scarry, cujo nome poderá não ser e imediato reconhecimento, mas cuja imensa obra também foi traduzida e divulgada em Portugal para um público infantil dos anos 70-80. A utilização de animais para parodiar e, ao mesmo tempo, de uma forma subtil, elogiar o comportamento humano é apanágio destas novas fábulas, e é uma tradição respeitável, na qual um dos mestres foi, como não podia deixar de o ser, Carl Barks.
Quanto a Sardine, o proveito é mais imediato, até pelo ritmo dito alucinante, e não tão ressonante em termos humanos, pois aposta antes na espetacularidade, mas é um daqueles títulos cujo intuito em “fermentar a imaginação” não pode falhar, com a profusão de personagens secundárias, estranhos planetas, criaturas tão hediondas como ridículas, procedimento inusitados, etc.
Porém, se estas estórias parecem ser desprovidas de sentido lógico, de continuidade, de objectivos unificados, não deve isso surgir como um problema, mas antes como precisamente uma osmose à mentalidade das crianças.
Nota: É uma pena que não esteja nos planos editoriais a tradução destas obras, num mercado que continua a apostar sobretudo numa certa linha “politicamente correcta” para crianças, pouco atenta a algumas experiências intensas entre nós ou simplesmente à loucura ilógica que é própria das crianças (neste aspecto, a televisão está mais atenta). + Normalmente, os posts são sobre livros que me pertencem, comprados, salvo empréstimo, que anoto. Neste caso, os livros foram requisitados da Medieteca do Instituto Franco-Português, cuja secção de banda desenhada não é nada desprezível, e aconselho aos bedéfilos francófonos e francófilos. Posted by Picasa

23 de janeiro de 2006

Lincoln 3. Playground. Irmãos Jouvray, Olivier & Jérôme (Paquet)


Dizia Borges que não havia livro no mundo, por mais banal ou medíocre que fosse, que não tivesse uma frase memorável. É talvez uma verdade, e temos de nos esforçar para ter a capacidade de a capturar, soletrar e compreender no seio do acto mais penoso de leitura.
Se bem que a leitura de Lincoln não seja, de todo, penosa, banal, e esteja bem acima da mediocridade, esta é uma série relativamente comercial, todavia, que não faz mais do que trabalhar sobre elementos clássicos de construção da banda desenhada, elementos dos quais seria até fácil fazer uma "história"... As páginas são estruturadas de formas simples, mas legíveis e bem ritmadas, as figurações claras e suficientemente agenciadoras, a peripécia (e seus "episódios") bem encaixados, se bem que sejam flechas que jamais olham para trás. Não há propriamente uma tressage de todos esses elementos diegéticos, cf. Groensteen.
Lincoln, cowboy solitário, amargo com a vida, vive contra tudo e todos; Deus lui-même cruza-se com ele e passa a invectivá-lo a uma nova existência, feita de calma e atenção para com os outros; junte-se o Diabo para arranhar o disco um pouco, e eis que temos uma mistura de géneros - auto de mistério mais western mais comédia de acção - ligeira, mas dissonante dos escaparates. Uma pequena peregrinação pelos territórios da ascensão de uma consciência própria, enfim, que se defende do controle pouco velado desejado quer por uma parte (Deus, e os seus "inefáveis e indizíveis planos") quer por outra (Diabo, e o "só quero chatear as pessoas").
A presença de Deus foi também uma constante nesta arte, mas há de facto um mais sentido retorno de há umas décadas para cá (aliás, Le Retour de Dieu era um dos títulos das antalogias da Autrement)... Pode ser a Sua bendita presença integrada num novo sistema ficcional, como em The Sandman (Neil Gaiman et al.), pode ser como fundo político-religioso para a raiva contra o sistema odioso de controle social que a Igreja montou como em The Preacher (Garth Ennis e Steve Dillon), pode surgir ora como metaforizada de uma forma directa (Grant Morrison e Jon J. Muth em The Mystery Play) ora como personagem da sua própria história (como tento fazer na Saga de Deus, com Marcos Farrajota nas Cricas), e tantas outras formas.
Em Lincoln, não há exageros de raiva adolescente como em The Preacher, nem humores fáceis. O facto de Lincoln se aperceber imediatamente que apertar o pescoço a Deus não lhe traria prazer algum em especial revela de imediato a maturidade que se esconde na própria personagem - e nos autores. Os diálogos metafísicos não são mantidos exaustivamente, surgindo antes na troca de duas ou três frases por entre a acção que se desenvolve nesse momento - ajudar um índio na sua vingança, proteger cidadãos, salvar um miúdo - mas é esse "ruído de fundo" que de vez em quando surge à tona de forma visível o verdadeiro móbil de toda a série. O livre arbítrio é o protagonista destes livros. Sobretudo a dificuldade que ele tem em se assumir, devido à quase impossibilidade de escapar das circunstâncias presentes, dos aparentes "empurrões do destino", do peso das consequências de cada acção tomada. Como não pode deixar de acontecer, há uma certa quantidade de eventos deux ex machina, que por vezes levam a uma certa desilusão na forma como os autores mudam de cenário ou evento, mas é o expediente que encontram para delinear os papéis diferentes entre Deus e o Diabo, e voltarem então ao tema central.
Do que conheço de outros títulos dos irmãos Jouvray (separados), este parece-me o mais intenso trabalho, se bem que seja uma intensidade sob uma camada que pareça pouco notável. Como disse, é preciso um pequeno esforço e escavar até nos apercebermos do que merece ser visto... neste caso, basta riscar a superfície.
Nota: o quarto volume (e último?) deve estar quase a ser publicado. Veja-se site próprio www.bd-lincoln.com Posted by Picasa

Aqui no Canto, boxing number. João Rubim e Manel Brito (autoedição)


Nova aventura de um fanzine de que aqui já falámos, este "boxing number" apresenta uma fórmula relativamente simples: dois artistas, desenhando "lado a lado", cada um assumindo um dos boxeurs envolvidos em uppercuts e direitas bem assentes (na verdade, cada um é responsável por uma vinheta, que pode ou não representar os dois combatentes, que mimam os rostos dos autores reais). Por um lado, poderá ser reminiscente de um trabalho que revisite um artista anterior, como quando André Lemos "brincou" com desenhos de Georges Grosz, em Super Fight II (v. comentários) ou por outro, os diálogos de Kochalka e os amigos. Este projecto está aquém das questões dessoutros trabalhos (revisitação & questionamento) mas para além em termos de diálogo vivo.
Verão que a distinção é clara entre o traço dos dois artistas - não se trata da busca de uma osmose, como no caso do Flat Bosnian Dog, de Andersson e Sjunnesson: os de João Rubim com traços desenhados de uma forma mais solta, o que faz sublinhar as costumeiras linhas de movimento da banda desenhada, de impacto, de metaforização dos choques físicos, de irradiações e linhas de fuga da acção em curso, ao passo que os de Manel Brito, mais estilizados, se parecem centrar mais nos pontos de impacto, nos ecos que um corpo faz no outro no momento do embate, nas repercussões (inclusive as visuais) que esta pequena e escorreita banda desenhada provoca...
A montagem de Ana Lúcia deve-se ao facto dos autores terem delegado essa responsabilidade - qual montagem - a outra pessoa, mas que respeitou uma "ordem aparente" da acção. Ao princípio, pensei tratar-se de um exercício livre de desenhos cuja sequencialização seria ao acaso, pela "montadora", mas fui informado pelos mesmos que iso não era assim. No entanto, uma vez que somos lançados e abandonamos a "estória" (ou o segmento, se preferirem) sempre no combate propriamente dito, sem quaisquer outros elementos laterais, faz-me pensar numa sequência circular, num loop eterno de dois amigos que se empurram um ao outro nos terrenos da criação.
O preço é algo elevado (5 Euros), mas deve-se à inclusão, na compra do fanzine, de um CD com uma animação pelos dois autores, uma curta-metragem que mostra um outro combate gráfico, também experimental, também intenso. Só há 30 exemplares, duas metades com capas ilustradas ora por um ora por outro. Esta é a de Rubim. Ide: http://aquinocanto.do.sapo.pt/
(Apesar de saber que isto vai irritar pessoalmente o Manel Brito, deixo só mais uma vez a ideia de que, havendo diferenças, há também semelhanças em escolhas gráficas, ou uma linguagem geral, com o seu pai, o Fernando Brito, pintor, artista multifacetado e autor de algumas bandas desenhadas, inclusive a Fado - v. Quadrado #5, da Bedeteca - e uma epopeia de ficção científica, há anos para ser editada... Aceitam-se discussões sobre este assunto).
Nota: notarão numa dedicatória na capa. Não consta da capa original. Posted by Picasa

Dossier Bedeteca de Lisboa 2006. Crítica.


Deixo aqui o link directo ao texto que escrevi, mais uma vez a convite da Bedeteca de Lisboa, sobre o panorama da crítica de banda desenhada em Portugal, e que tenta fazer o balanço, pela minha perspectiva pessoal, do ano passado. Dão-se alvíssaras por contínuos debates. Posted by Picasa

22 de janeiro de 2006

A fome faz sair o lobo do mato. Carlos Pinheiro (Senhorio)


Das páginas dos fanzines de "O Senhorio", e por ocasião da mostra de banda desenhada e ilustração e venda de fanzines A Mula, nos Maus Hábitos (Porto), eis que foi editado um fanzine num grande formato (A3, o que lhe permite, ainda que diferentes em termos de conteúdo, ser arrumado fisicamente junto ao Nemo no Século XXI, ao Memórias 10, e ao primeiro número da Satélite Internacional, para ficarmos por edições nacionais) de desenhos de Carlos Pinheiro.
São 17 desenhos no interior, alguns dos quais já tinham aparecido nas páginas dos fanzines "Senhorio" e outros, penso, inéditos. Tal como nos livros de André Lemos, não há propriamente aqui um pólo em torno dos quais os desenhos se agreguem, pelo que surgem em relações livres, e é o seu espectador que os poderá associar conforme entender e conseguir. Os desenhos são todos a preto e branco, com linhas bem definidas e torneadas, com um preenchimento de áreas através de pequenos riscos paralelos que fazem emergir uma textura "esferográfica"... Trabalhando a partir de referentes reais, corpos humanos, a maioria da vezes, Carlos Pinheiro fá-los desviar com um qualquer aparato absurdo - uma máscara enorme, a nudez, um indício qualquer de violência... A associação entre esses desenhos, parece-me a mim, poder passar por uma qualquer vontade em retratar a violência subliminar que atravessam todas as relações humanas, ou a animalidade a que retornamos sempre que deixamos a segurança do verniz social, etc. Mas isso são leituras bastante superficiais, e haverá seguramente alguém com maior capacidade de análise plástica para os apreciar melhor...
Mas se falo deste fanzine, que não é de banda desenhada tout court, é pelo que se segue. Aos poucos, parece-me estarmos a aproximarmo-nos de uma situação artisticamente mais compreensível e feliz para alguns artistas que trabalham a ilustração, a banda desenhada, ou trabalhos gráficos que estão próximos da narratividade sem por isso se tornarem criadores de bd. Tal como acontece com um sem-número de galerias (e museus, alguns) nos Estados Unidos da América, no Canadá, em França, e surgem nas páginas de algumas publicações dedicadas às artes visuais, esta família alargada da criação tem o seu próprio nicho no "mercado artístico", no circuito galerístico, etc. São questões que tinham sido levantadas e criticadas pela própria existência de alguns fanzines, que desejam ligações directa a esse mesmo mundo (e não outras publicações de contornos mais definidos e disciplinares, presos a um mercado da bd, preocupados - o que é perfeitamente válido! - em uma comunicação com um público amplo, com valores mais comerciais, narrativos, de heroicidade, etc.). Esses indícios são estas pequenas feiras que têm acontecido pontualmente, mas de uma forma coesa e com algum êxito, ainda que ainda "sob o nível do radar crítico", para parafrasear Roger Sabin. Pois nada têm a ver com mostras ou exposições maiores, de grande impacto (ou menor) sobre o público, mas em que a intensidade e liberdade dos trabalhos se dissipa no espectáculo total, e as escolhas vertem sempre sobre uma ideia preconcebida de "trabalho acabado", "publicado" ou "publicável", etc. Aqui, não se trata de manutenções profissionais, mas vontades artísticas puras.
No caso de Carlos Pinheiro, e espero que esta não seja uma informação fora do âmbito crítico nem que seja uma indiscrição, todos estes desenhos foram vendidos. Não será sinal de riqueza material, seguramente (ainda!) mas pelo menos aponta a algum interesse e discernimento da parte de um público determinado.
Acredito, por isso, que se "a fome faz sair o lobo do mato", os lobos certos, ao trabalharem deste modo inusitado e destemido, farão criar eles mesmos num público cada vez maior uma fome de que não sabiam ser capazes. Posted by Picasa

21 de janeiro de 2006

Wimbledon Green. Seth (Drawn & Quarterly)


É notável como esta obra é fruto de um prazer. Seth trabalha lentamente, com um tipo de velocidade de artesão, dados os seus gostos e inclinações nostálgicas por um momento passado da banda desenhada - sobre-romantizado, como o próprio admite. Quase simultaneamente à edição do último número de Palookaville, que continua a “tempestade calma” da saga familiar Clyde Fans, e um pequeno volume de contos ilustrados (Bannock, Beans & Black Tea), escritos pelo seu pai, John Gallant, sobre as memórias da sua infância nos anos 20/30, sai Wimbledon Green – The Greatest Comic Book Collector in the World, pelo que se pode ler, directamente das páginas dos seus sketchbooks (de que algumas páginas foram publicadas em Vernacular Drawings, também na D&Q). Como se compreende facilmente pela leitura do prólogo do próprio autor, e por outras informações mais ou menos veladamente expressas nas histórias inclusas, Seth segue fórmulas narrativas de pequenas, aparentemente desconexas partes para construir um todo contínuo, tal como Chris Ware havia feito com Jimmy Corrigan ou Daniel Clowes em Ice Haven, ou ainda David Heatley nos seus comicbooks (todos eles directamente citados por Seth).
Os materiais usuais de Seth estão todos presentes. Personagens de meia-idade mas bons-vivants, e cuja paixão dedicada à banda desenhada, para além de um gozo aos verdadeiros coleccionadores, dos reais e muitas vezes patéticos (como todos os coleccionadores, cujo desejo é possuírem uma fatia de universo, serem um deus menor nesse seu mesmo universo), tanto atravessa a nostalgia por um tempo “de ouro” – que nunca existiu exactamente como se imaginara – como se aproxima à verve dos apreciadores e conoisseurs de vinhos antigos, exquísitos ou raros (deliciosa, a referência a um vinho “1928 St. Ogan”!). Wimbledon Green é um coleccionador de banda desenhada, misterioso, cujos gostos são “amplos mas elitistas por natureza” (p. 91), e cuja presença carismática ora conquista ora acirra, capaz de mobilizar pessoas a ajudá-lo a descobrir colecções completas de títulos obscuros, quase desaparecidos, ou até supostamente inexistentes (como o número um e único de The Green Ghost, uma espécie de Santo Graal dos bedéfilos norte-americanos). Escusado será dizer que todas essas referèncias são inventadas por Seth, tal como na busca pelo trabalho de Kalo em It’s a good life, if you don’t weaken, ou a famosa biblioteca de Hicksville, Nova Zelândia, divisada por Dylan Horrocks. Não será, por isso, difícil de conseguir fazer extrapolações e ligações a referentes reais, que ele também cita, ao falar de Batman e de Superman, de lojas existentes como a Beguiling, ou até surgindo ele próprio transmutado no papel do “vilão” Jonah…
Neste tipo de apocrifia, Seth está mais uma vez próximo de Ware, mas também de Sikoryak (que tem finalmente um site), se bem que em termos muito diferentes. Acho magistral a forma como ele cria todo um referencial sobre determinado título ou autor, conseguindo, graças às suas próprias experiências de autor, memórias de leitor e gostos educados, erigir todo um ambiente coeso e pertinente: veja-se, por exemplo, a “invenção” da série Fine & Dandy, atribuída a um Lester Moore. As pistas da filiação dessa série de banda desenhada cómica na “psique” da sua época é imediatamente sublinhada pela dupla Laurel & Hardy (apesar dos nomes lembrarem antes Amos & Andy), e depois segue-se um historial do título, “citações” de episódios vários, etc., com o intuito, conseguido, de nos fazer “crescer água na boca” em ler directamente essa série indicada... Hélas”, pura ficção!
Tendo o livro pranchas de formato pequeno, ainda assim Seth utiliza-as de uma forma extremamente compartimentada, com vinhetas regulares e pequenas, por vezes mesmo recorrendo à repetição da imagem do falante – síndrome “talking heads” – mas que serve perfeitamente para sublinhar a ideia de entrevista, da opinião dada dessas personagem sobre Green ou uma qualquer situação, e todas essas estratégias marcando um acelerado ritmo de leitura. É uma fórmula que não é apenas concomitante a Ware, já citado, mas também a alguma tradição europeia, que podemos encontrar deste as tiras infantis de Massimo Mattioli até vários dos primeiros álbuns de Lewis Trondheim. É esse ritmo que torna toda a diegese de um interesse inesperado. Enfim, à partida, julgar-se-ia que a história sobre a vida de uma personagem destas, e uma busca de vários coleccionadores pelo Green Ghost (um “fantasma” que jamais se reincarna, ou por outra palavra preferida dos narratologistas, um “McGuffin”), não poderia ser estruturada de um forma empolgante, mas Seth consegue-o, não fosse ele um leitor atento de Carl Barks, por exemplo (as peripécias em torno desse comicbook lembram as aventuras de um Tio Patinhas opondo-se a um Patacôncio ou um Porcolino, e, mais, também recorda a atitude de Patinhas perante os seus “tesouros”, não me mera acumulação e arrogância materialista, mas profundo prazer humano em saborear o prémio de uma busca ou de um valor humano que subjaz esse objecto). A estruturação em pequenos episódios, sub-plots, pequenas diferenças em torno de um mesmo tom, talvez moral, nostálgico, “limpo”, directo – tão próximo a uma vida de “backyard childhood” que compõe toda a filosofia de um Schulz (a quem Seth tem feito uma homenagem pelo arranjo gráfico da colecção dos Peanuts) – não o impede de explorar vários géneros que se aglomeram em torno de Green: desde a aventura ao undeground, do policial ao jornalístico, até mesmo pelo absurdo e o experimental (como na estória das páginas 104-105). [Nuno Franco alertou-me para uma entrevista em que Seth afirma nunca ter sido um leitor atento nem interessado na obra de Barks, preferindo antes a de John Stanley - o autor mais associado à Little Lulu - o que poderia anular as minhas palavras em relação à aproximação dos dois autores. Porém, não deixando de ser uma questão premente e que separa o discurso estético do biográfico-positivista, talvez o facto de Seth não ter sido um leitor directo e real de Barks não invalide o facto de se ter verificado um "trânsito de forças" entre os dois, quer se entendam essas forças como fluindo entre variados continentes, estabelecendo redes complexas de influência, tal como entendidas por Harold Bloom, quer se as vejam como formas múltiplas que se desdobram e vão reconquistando novos empregos e significados ao longo do tempo, mas fora dele, como os "sintomas sobreviventes" de Aby Warburg. Nada disto deve ser entendido como fantasmagorias facilmente derrotadas pelos cépticos, trata-se de uma aturada visão ampla e livre para além do positivismo histórico e dos saberes disciplinares, empregando métodos de trabalho e uma faculdade de entendimento que bebe de muitas fontes... Seth não foi capaz de ultrapassar o écrã - compreensivelmente irritante - das personagens Disney(C) para atingir o ouro de Barks, não obstante o seu gosto por Floyd Gottfredson. Todavia, ambos conceitos de forças permitirão dizer que Seth fez levantar esse écrã da melhor forma, que foi deixar-se habitar por uma força idêntica à de Barks, e que se revela não só nessas aparentes fórmulas de aventura (a saga, "the quest") como também no valor humano que elas acabam por revelar. Dito isto, agradeço a N. Franco.]
As cores, diminuídas a um mínimo, ora cinzentos, ora verdes, ora ocres, com um belo e denso trabalho de aguadas e sombras, apenas sublinha esse ambiente contínuo e as esperadas excepções, como a abertura das malas da colecção de W. R. Webb, que se tornam mais significativas. Os tons são típicos desta patina de nostalgia que Seth tem vido a desenvolver nas suas histórias, que procuram retomar esse “tempo falso” de um passado dourado. Ele mesmo diz que há grandes diferenças entre a sua arte e a de Ware (especialmente de Rusty Brown, mas também de Corrigan). Mas vejo-os como caminhos diferentes em direcção a um horizonte comum. Através de recursos mínimos, e bem diversos – Ware é mais conciso, sintético, geométrico, Seth mais fluido, de uma serenidade contemplativa -, querem ser o mais expressivos possível na sua comunicação desse olhar, necessariamente, solitário, e não desprovido de dor nos seus casos particulares, para o passado, para poderem então enfrentar de um modo mais protegido os dias de todos os dias...
Uma última palavra sobre o próprio objecto, cuja capa com dourados, cantos redondos, e figuras em relevo, fazem deste livro um belíssimo “objecto para meter na estante”, como diz Mário Moura, mas que tornam o acto de leitura – um acto físico em muitos sentidos e por todos os sentidos – também um acto sensual (se não o fosse, não os “levaríamos para a cama”). Posted by Picasa

Acme Novelty Library #16: Rusty Brown. Chris Ware (Chris Ware)


Após alguns anos de espera, fome que foi sendo saciada pela inclusão de trabalhos curtos de Ware em outras publicações, ou seus arranjos gráficos espalhados pelo mercado, eis que nos presenteia o autor de Jimmy Corrigan com o 16º número da sua publicação Acme Novelty Library. As expectativas eram enormes, pois vivemos permanentemente sob a ilusão e desejo banal de “evolução”, de “melhoria”, de “cada vez mais” da parte dos autores. Não escapo a essa ilusão a maior parte das vezes, mas neste preciso caso, não há resposta definitiva, pois em relação a todo esse fôlego que foi a colecção de Corrigan, este Rusty Brown vem fazer um contínuo nada displicente, mas nenhum corte. Não dou qualquer valor moral nem a “contínuo” nem a “corte”.
Algumas destas pranchas foram sendo apresentadas em exposições em várias galerias norte-americanas nestes últimos três anos. Ver a “arte original” e comparar com a forma como foram incorporadas na edição em livro levar-nos-ia a discussões interessantes sobre a distância que existe entre essa pretensa “originalidade” do desenho em papel e o seu produto verdadeiramente acabado, destinado não só à reprodutibilidade como ao manuseamento e fruição do leitor, do “livro”. Um exemplo: a sub-/para-história dos irmãos Chalky e Alison, que corre como um rodapé (e funciona como tal, especialmente quando existem sobreposições/iterações de eventos em diferentes perspectivas), foi desenhado num número reduzido de pranchas, cada uma com 84 vinhetas (algumas delas sub-dividindo-se em 4), e para se incluírem no livro foram retalhadas em tiras de 7.
As personagens são recorrentes – trata-se da infância de Rusty Brown, que será em adulto um “loser” e um “nerd” dos quadradinhos e ficção científica com o seu amigo Chalky. Aliás, este é o primeiro volume dessa série prometida. Há, porém, uma assunção especial da auto-ficção, quando surge um professor de arte que é o próprio Ware. Os temas são também os frequentes: solidão, falta de amor, de compreensão, de realização, falhas e faltas de um ponto de vista existencial. O “estilo” gráfico de Ware – cenários esquematizados, vinhetas e pranchas estruturadas formalmente (ele próprio fala de “conto glacial”), cores quase mecânicas – parece minimalizar qualquer tipo de expressividade, mas esse é apenas um mal-entendido que ele próprio fabrica. A redução de informações gráficas nas personagens leva a que os mecanismos que significam as alterações de humor estejam concentradas nas pequenas diferenciações que leva a cabo nas aparentes iterações do rosto da personagem: basta a mudança de um ou dois traços (como já Rodolphe Töpffer dissera ser possível nesta “nova arte” no seu Ensaio sobre a Fisiognomonia) para transmitir toda uma onda de flutuação emotiva. Digamos que Ware é um inimigo do “actores de método” e prefere uma aproximação mais “nouvelle vague” na expressividade das suas personagens. Less is more, de facto. Não obstante, o momento em que o professor Brown centra a sua atenção na recém-chegada Alison/Alice, a vinheta que mostra esta última personagem parece escapar a essa regra de ouro do “minimalismo” wariano. É uma figuração muito subtil, que nada tem a ver com o estereotipado da “Supergirl” no sonho de Rusty, e que marca sobretudo a percepção veladamente apaixonada do professor Brown.
Há uma série de outros dispositivos gráficos interessantes e que tornam esses pequenos exercícios como mais-valias de todo o objecto-livro: o “genérico”, a introdução textual, cuja metáfora do floco de neve pode ou não ser entendida como extensível a toda a obra de banda desenhada, a prancha em que o autor/editor se dirige directamente ao leitor potencial num diálogo sobre a própria obra (e nos revela certos aspectos da sua vida, ou a romantiza da sua maneira peculiar), a inclusão dos planos de cada andar do prédio que se apresenta no final do livro, etc. Esses exercícios não são, de modo algum, ao acaso. Abaixo, explicar-me-ei melhor.
Há algum tempo, falei das edições de certos fanzines passarem para as mãos de editoras profissionais, mas em que essa mudança não implicou qualquer espécie de perda de liberdades criativas do autor. Neste caso, se bem que a liberdade esteja imaculada como antes, trata-se do contrário, pois esta edição é de autor, sem a chancela da Fantagraphics – se bem que a distribuição e a os contactos de produção tenham sido os mesmos. É uma nota de interesse, acrescida pelo facto de o próprio Chris Ware a considerar uma “edição de autor”, de limitada e irrepetível (é óbvio que se trata de estratégias comerciais, mas é um belo objecto, de facto).
As quatro “Building Stories”, uma espécie de variação d’“As Quatro Estações”, onde essa linguagem de espacialização do tempo a que Ware nos habituou se torna central e o próprio modo de estruturação das estórias, foram antes publicadas – cada uma, semanalmente – num suplemento de Domingo do New York Times. Trata-se de um edifício de três andares, com uma cave, e começando de cima e focando cada “episódio” num andar, nas personagens que o habitam e na estação (não por ordem cronológica), o círculo de relações vai-se alargando paulatinamente, complexificando as “redes narrativas” que os nem, mesmo que essas ligações sejam apenas “wishful thinking” da parte das personagens. É este tipo de experimentalismos de um grande êxito de aplicabilidade narrativa que tornam Chris Ware – ou noutros autores – a sua importância enquanto autor e verdadeiro contribuidor para uma espécie de, não de “evolução” (inexistente nas artes), mas antes de “intensidades”, fulgurações que de repente se nos tornam significativas, brilhantes… Convenhamos que esta tipo de construção, por si só, não é propriamente “original”. Francisco Ibañez (sim, o do Filémon y Mortadelo) experimentou desde os anos 80 uma fórmula quase-próxima com 13, Rua del Percebe e depois o 7, Rebolling Street. Mas ao passo que Ibañez transformava cada divisão do prédio, visto em “plano de corte”, como simples vinhetas onde colocava gags separados uns dos outros, Ware transforma essa espacialização como o fulcro da sua construção. Há outras linguagens gráficas a se concentrarem aqui ao mesmo tempo: a infografia e o pictograma, as estruturas visuais da genealogia, as convenções sígnicas dos desenho geométrico (“rigoroso”) da arquitectura… Mas nada disso surge por acaso, como um experimentalismo vazio, só “para ver como funciona”. São conscientemente aproveitados e empregues para um fito, que é o da estruturação narrativa. Não que toda a banda desenhada ou artes visuais de sequencialidade tenham de ser “narrativas” para serem de êxito – mas aqui entraríamos na discussão do que significaria “sequência” se não no tempo, e não é o momento. Importa ver que Ware, com estas quatro estórias, faz um imenso contributo à crise desse mesmo entendimento, provocando uma acronia sobre a narrativa, colocando o ónus da estrutura no espaço e não no tempo. É aí que reside o seu (ainda) valor de “revolucionário”, cuja melhor definição é aquele que permite ou faz mudar de eixo, e não que se mantém na mesma estrada, ainda que com espalhafato. Posted by Picasa

Tribune Brute & Even gravediggers read Playboy. André Lemos (MMMNNNRRRG/Opuntia Books)


Não sendo propriamente livros de banda desenhada, e ainda aquém de uma organização em torno de um suposto centro como outras obras nos limites desta arte, como as de "Tim Morris" de a "Obra-Prima de..." de J.C.F., não quero deixar a oportunidade de indicar a publicação quase ao mesmo tempo de duas publicações com desenhos do meu amigo André Lemos, com o qual colaboro numa obra que espero ver editada em alguns breves meses, e de que darei aqui notícia...
A primeira (cuja capa está aqui truncada) trata-se de uma publicação de vários desenhos, em serigrafia, trabalhadas pelo Mestre-Super-Serigrafia Mike Goes West, e editadas pela MMMNNNRRRG ... A segunda, um fanzine de 50 exemplares irrepetíveis, todos com detalhes únicos, fotocopiado em papel azul de 25 linhas. São desenhos soltos, que não obedecem a nenhum critério ou tema ou estruturação a não ser a plena vontade das mãos de André Lemos, que por vezes me parecem ser criaturas com vida própria. Para os fãs do seu trabalho, estes são desenhos já de si mesmo narrativos (com as costumeiras frases à la hasard mas que, queira o Santo Bourroughs, nos conduzirão a territórios de histórias submersas no absurdo e na estranheza de quem vive alerta ao mundo) e com as forças plásticas da sua tinta da china que se espalha em todas as direcções. Para quem não aprecia, serão dois óptimos instrumentos de uma mais ampla educação cultural e gráfica...
Para compra e/ou mais informações, cliquem no nome do André que irão dar ao seu próprio blog.Posted by Picasa

Sequential. Paul Hornschemeier (AdHouse Books)


Creio que Paul Hornschemeier é um sério concorrente na criação contemporânea da banda desenhada a ser rememorado, mais tarde, como um dos grandes da sua geração, sobretudo depois do seu Mother, Come Home e os novos títulos que já se prometem. É como se fosse possível ver no estado presente do seu trabalho, cujas curtas mas substanciais contribuições para vários títulos, como por exemplo a Mome já aqui citada, ou nos seus trabalhos do passado, em que Sequantial tem um papel preponderante, estivessem já submersos nos ecos do seu valor futuro. Nem sempre isso é óbvio, e uma tal leitura não é de todo nem positivista nem racional; entrega-se antes a uma espécie de percepção atenta a pistas que se dissipam no nevoeiro que está à frente...
Sequential trata-se de uma antologia que reune alguns dos trabalhos - sobretudo banda desenhada, mas há também textos - publicados nos sete números do fanzine do mesmo nome, iniciado em 1999 mas que veio a ser descontinuado mais tarde, por razões expressas no prólogo e nas notas de produção finais. Todo o historial está descrito exaustivamente nesses anexos ao livro. Já algumas vezes falei aqui de dois temas que me parecem estar no centro do palco ao falar deste volume de Hornschemeier: por um lado, a "liberdade intrínseca" que fundamenta a razão de ser de um fanzine, por outro, a questão da "evolução", ou falta de, no trabalho de um autor. O primeiro ponto prende-se com o facto da multiplicidade dos estilos, humores, tipos de estórias e experiências gráficas e narrativas a que o autor se entrega ao longo das suas fanzines, aqui retomadas. São raras as estórias de maior fôlego, cuja curva mais abrupta é sem dúvida a do homem-sapo que é abandonado pela companheira e que passa um dia em pensamentos sobre como lidar com a solidão (sem título). A esmagadora maioria são pequenas anedotas humorísticas ou de situações estrambólicas, muitas de apenas uma prancha, outras tantas avançando em territórios mais assertivos e políticos, mas sem nunca se assumirem totalmente como tal, outras ainda em tons mais poéticos, mas sempre com uma patina de absurdo (como as histórias do demónio). Essa liberdade é incontestável, mas por isso mesmo é possível que muitos leitores que venham a conseguir apreciar e encontrar alguma continuidade nos trabalhos mais recentes de Hornschemeier, poderão não encontrar aqui a mesma segurança, quer em termos artísticos quer de voz narrativa. Sequential é quase como que um caderno/diário - aliás, isso é dito pelo autor - onde foi experimentando todas as técnicas e saberes que foi aprendendo ao longo do tempo com a leitura e experiências de outros autores, citando-se directamente Dave Sim, do Cerebus, e Daniel Clowes. Ele acrescenta ainda, "como todas as experimentações, teve os seus resultados. Alguns desses resultados são completamente desinteressantes ou pouco produtivos ou não me levam a lado nenhum. Mas há certos momentos nestas páginas em que penso conseguir ver-me "acertar" em algumas coisas." Talvez esteja aí um possível valor na experiência de ler todo este volume, em testemunharmos essas aplicações, este longo (e provavelmente doloroso) processo estocástico e tentarmos, então, apercebermo-nos de que lhe serviu, e onde estão os êxitos que o fariam continuar.
A questão da "evolução" está nessa mesma aprendizagem, na lenta emergência de temas: como uma certa linha contemporânea, vai desembocar nas relações amorosas e nas solidões que as intervalam, em pensamentos que têm a ver com uma certa desilusão perante o futuro, a vida profissional, a vida familiar... Não propriamente um "urbano-depressivo", mas uma "bd-novela" que precisa de atravessar certos elementos-chave, habituais. A arte só falsamente parece "evoluir", mudar de campos, de técnicas. Mas no seu ruído de fundo, as alterações são poucas, ou apenas variações umas das outras, há sempre um contínuo (eterno, diria Nietzsche) retorno da brutalidade que se move sob o verniz da nossa civilização. Paul Hornschemeier parece ser um autor que dedica a sua obra precisamente a riscar esse verniz, para nos mostrar como a pele dói independentemente da cultura. Sequential foi só o aparar as unhas. Posted by Picasa

Fanzines "O Senhorio". AAVV (auto-edição)



Com alguns dos mesmos elementos de fanzines já aqui debatidos, vieram parar-me às mãos mais três publicações que se apresentam separadamente, com títulos e uma estrutura que lhes são próprios, a cada um dos objectos, mas que podem também ser lidos como um projecto contínuo: eis "O Senhorio". Este nome deriva de um espaço no Porto onde os artistas se reúnem, apresentam expondo os seus trabalhos, ou seja, pelo que pude compreender, que funciona como uma espécie de atelier de encontro, se não mesmo de trabalho.
Uma outra aproximação aos fanzines aqui antes debatidos é uma certa posição para com o círculo da produção e divulgação das artes visuais contemporâneas, ditas maiores ou da Alta Cultura (ou outro epíteto qualquer que julguem mais adequado). No entanto, uma diferença imediata é que esse "ataque", pela via do gozo, da subversão humorística, da reapropriação de algumas das suas estratégias ou unidades de linguagem idênticas para fins muito próprios, é muito mais directo e visível. Por um lado são referências nem sempre veladas a um "material de pensamento" (ou de mera citação) utilizado por artistas, ou directa e humoristicamente a experiências tipificadas - como nos exemplos d'"O Cantinho de Serralves", a Dra. Schmuckgeschaft, os classificados especializados, ou a personagem do Professor Catedrático. Mas essa reapropriação de estratégias da experimentação, que nem sempre é apanágio ou território fechado - não obstante a História da(s) Arte(s) ou uma certa linha de crendice cultural - das Artes Visuais, muitas vezes tomam um desvio tal que acabam por surgir precisamente criações de um franco interesse formal e esteticizante, o que não é de forma alguma para ser tomado de uma forma traumática nem busca ser redutor. A meu ver, o número que reúne num só fôlego os maiores trunfos é o de Maio de 2005 (intitulado Pingue, com uma epígrafe de Fedro que poderá apontar para o grande paradoxo da existência das fanzines de banda desenhada, na eterna discussão das vontades de criação vs. público), com "O meu enxoval em seis passos", que me faz recordar uma Renée French mais controlada em termos de referencialidade no real, mas com a mesma verve feminina em desmistificar papéis sociais, os retratos de "caça e actividades ao ar livre" com os desenhos do profícuo e virtuoso Carlos Pinheiro, e umas tiras curtíssimas e histórias de estrutura livre de Nuno Sousa. Surgem em todos os números mais episódios do Senhor Pinhão, de Miguel Carneiro, e as pranchas "diárias" de Marco Mendes, já aqui discutidas.
A presença do material já citado, e ainda de pequenos "objectos gráficos", de "personagens" (ou melhor, characters), de intervenções várias poderão tanto nos fazer lembrar os mais acabados sketches curtos dos Monty Python aquando versavam figuras da Grande Cultura, como projectos (já aqui indicados antes pelas mesmas razões) portugueses como os do trio que se viria a conhecer nas Artes como Sparring Partners, muitos dos fanzines femininos dos anos 80/90, entre até trabalhos de autores como Pedro Proença - que me veio à mente pelos desenhos de uma contracapa de Nuno Sousa -, o qual já autorou um livro de banda desenhada (ou ilustrado, se preferirem, ainda que considere eu Edward Gorey um autor do "nosso" território lato), The Great Tantric Ganster (Fenda).
O único senão está na forma como os nomes dos autores são apresentados, uma lista não organizada, impedindo o leitor normal de entender a quem atribuir os trabalhos (eu próprio posso ter aqui incorrido nalgum erro, afora as não-atribuições). Mas essa é uma responsabilidade que deve ser desde logo assumida na liberdade de edição de um fanzine.
Creio estar algum destes números esgotado, mas vale a pena contactar o editor: acsenhorio@yahoo.com.