30 de setembro de 2007

Prison Stories. Igor Hofbauer (Otompotom)


Tal como se notará de imediato mesmo perscrutando a capa deste pequeno livro, a “prisão” a que estas histórias se referem tomam a aparência de jaulas de jardim zoológico. As jaulas são uma forma de prisão muito particular. O seu propósito não é somente limitar a liberdade de movimento da criatura encerrada, nem afastá-la de um contacto permanente com outras criaturas, mas de reduzir a um mínimo a própria teleologia dessa criatura (já que creio existir uma teleologia natural, ou melhor, a existência de elos sociais mesmo no mundo dito “natural” por oposição ao “humano”, e logo, o estabelecimento de fitos e relações entre todas e quaisquer criaturas) a objecto de observação. De conhecimento, de prazer, curiosidade passageira, coleccionismo, enciclopedismo... seja qual for o factor último apontado como objectivo dessa separação, a criatura passa da sua individualidade a exemplo. Não obstante a louvável noção de preservação e defesa, um jardim zoológico é sempre algo literalmente contranatura, artificial. Nosso.
As criaturas que estão presas nas Prison Stories, do croata Igor Hofbauer, previamente publicadas noutras instâncias (ver aqui), são de aparência humana, não o sendo totalmente. Todas elas, porém, são passíveis de serem inteligíveis enquanto objectos de observação e projecção. Que projecções de sentido serão possíveis?
Ler a primeira história, “Olympia Story”, como metáfora política não é muito difícil. Uma velha estrela da canção popular vive numa gaiola, como se de um animal se tratasse, exercendo uma curiosidade sobre várias pessoas, uma curiosidade que é uma mistura (ainda que esses elementos misturados possam parecer isolados conforme cada pessoa em particular que a observa) de nostalgia, ódio, sentido do ridículo, fascínio. Descobriremos de que ela se alimenta das novas estrelas da música que vão surgindo, mas cujas famas parecem mais fugazes e repentinas (precisamente por serem pasto da fome das velhas glórias); mas cada refeição torna mais perigosa a manutenção dessa dieta. Não será, portanto, essa uma possível maneira de metaforizar aquele regimes que parecem suspensos no tempo, que se vão consumindo numa autofagia crónica (literalmente, “como Cronos”), nos quais os poderes instituídos “desde sempre”, “no direito divino”, “com a bênção de Deus”, “a bem da Nação” engolem os pequenos movimentos de diferenciação política que podem ir surgindo, mas conhecem de imediato a morte prematura, sem sequer terem tempo de criar uma oportunidade de deixar uma inflexão nesse dado país. E que depois os regurgitam, não como interlocutores de poder, mas confirmações da “degenerescência” e do “perigo” em que as suas respectivas sociedades e estados poderiam eventualmente cair, caso os poderes não estivessem “no controle das coisas”. Esta é uma constante histórica, e presentemente, os acontecimentos na Birmânia, a posição da Sérvia em relação à independentização do Kosovo, as dificuldades de emergência e consolidação dos movimentos islâmicos democráticos laicos (isto é, “laicos” mas inscritos numa sociedade de base cultural islâmica, tal como vivemos nós num estado laico de inscrição católica) na área do sudoeste asiático, são ocorrências que confirmam essa continuidade.
Mas há outras formas de ler as prisões, corroboradas pelas seguintes histórias, “Band you never heard never saw” e “My prison story”, ambas em torno de personagens licantropos. O país ou estado enquanto prisão, sendo a antiga República Democrática Alemã o grande exemplo, com o seu imenso muro, para além da extensão física, e as Stasi e as Cheka, erguendo outros muros, aparentemente menores, em torno da vida de cada cidadão. Mas não são somente esses estados aqui desvendados como prisão. Os ditos estados democráticos, que permitem toda a “liberdade de entretenimento” possível, todas as “escolhas de canais” que se podem desejar, acabam no prato da mesma balança. Quer um quer outro afunilam o espaço confinado permitido ao indivíduo, e é neste que chegamos à ideia do próprio corpo ou da pele como prisão (os lobos-homens da banda rock e o lobisomem da segunda curta). Há um lado da irreverência violenta da cultura musical do rock e do punk e do hardcore de cariz político que se instala através destas personagens, mas esse proverbial poder libertador surge aqui limitado. Por outro lado, a dimensão mais ampla nas histórias é a do absurdo, já que todas elas apresentam as suas pequenas realidades como fait accompli, sem qualquer necessidade de contextualização ou explicação. Nesse jogo de deslocação passa-se aquilo que Mieke Bal apelida de descrições de tipo “metafórico-metonímico”, nas quais existem relações de contiguidade entre os elementos de cada termo mas em que apenas o seu todo constitui a comparação entre os objectos; leva-se assim a uma grande metáfora, e é essa metáfora que se tenta aqui desvendar.
O modo como Hofbauer gere as memórias das personagens (sobretudo na primeira história) e as capacidades organizativas da prancha para permitir a assunção da multiplicidade de sensações e pensamentos dos inervenientes apenas torna a implicação dessas leituras metafóricas mais ricas.
Igor Hofbauer é sobretudo conhecido pelo seu trabalho de designer de uma centena de cartazes de eventos relacionados com música, espectáculos, cinema e praticamente todas as artes existentes. O seu “sentido de design”, portanto (perdoe-se o chavão), é empregue aqui numa série de elementos construtivos da banda desenhada. É sobejamente repetido (facto que de tão claro quase pode passar em silêncio) que os seus cartazes trabalham na tradição que Rodchenko, se não inventou, pelo menos tornou como o “seu” estilo: linhas oblíquas gerindo o texto composto de letras de uma legibilidade extrema, uma gestão equilibradíssima entre os pretos, cinzentos e brancos para a disposição das figuras e informações a ler, uma distribuição clara entre os espaços da imagem e os do texto, e das vinhetas pelas pranchas. A imagem aqui apresentada mostra claramente parte dessa herança artística, ao mesmo tempo aliada ao tipo de crítica avançada. Os contrastes vincados entre as áreas de cor, não-cor e intermédio, aliadas às suas linhas que misturam breves traços direitos e longas e nervosas curvas para criar os contornos das personagens e objectos, poderão recordar uma tentativa de imitar as especificidades da xilogravura expressionista de um Masereel, por exemplo, mas num grau naturalmente de maior suavidade formal. É na presença do absurdo, nas violências retratadas, nas pequenas personagens secundárias deixadas sempre em segundo plano apesar dos seus desejos em passar para o primeiro, que essas suavidades formais se dissipam sempre, como o fumo que está num espaço qualquer, pairando, mas jamais se deixará como presença tangível.
Nota: agradecimentos a Sílvia Pereira, por ter insistido sempre na atenção deste autor. Houve em tempos uma ideia de oportunidade em trazê-lo a Portugal, num pequeno projecto “de café”... Ficam os votos para que se concretize num outro futuro.

28 de setembro de 2007

Le Coup de Grâce, AAVV (La Cinquième Couche)


Le Coup de Grâce é, como reza a primeira nota, um álibi “sem projecto nem fito”. A equipa desta editora – pertencente ao círculo da Autarcix Comix (que já havíamos debatido em parte em relação a um dos seus objectivos gerais – reuniu ou convidou artistas a desenvolver novos trabalhos para este livro em torno das limitações, ultrapassagens ou dissoluções possíveis da ideia de narrativa, aliada à criação da banda desenhada. Cita-se como sombra de pensamento por onde se desenvolvem novas correntes o famoso ensaio de Walter Benjamin, “O Narrador” (que já havíamos também citado a propósito de Joann Sfar como paladino da “narração”), no qual o crítico apontara a uma emergente “crise da narração”, e ao mesmo tempo sensibilizando-nos para a de novas formas de partilhar as experiências entre o criador e o fruidor de uma obra de arte, que descia, digamos assim, de um círculo colectivo para a da comunicação directa entre dois pólos isolados. O que isto significa é que as obras de arte deixariam de ser partilháveis em termos comuns, como cultura de comunidade, para existirem enquanto recorrente leitura e recriação (não necessariamente apenas de teor literário restrito). Peter Watkins é outro dos autores citados, sobretudo na sua noção de “monoforma”, isto é, uma estrutura narrativa relativamente básica (linearidade e determinismo, intriga e herói, continuidade e localização) e repetidamente empregue nas mais variadas indústrias, de Hollywood até à banda desenhada como um todo nos mercados comerciais.
Estes dois signos – “crise da narração” e “crítica da monoforma” – permitem que se problematize a narrativa enquanto estrutura rígida, formulaica, e ainda o aparente imperativo de que a banda desenhada deve ser ou seguir esse tipo de narrativa. Pode ser, mão não deve ser somente. Watchmen, de Moore e de Gibbons, o run de Daredevil de Bendis e Maleev, L’Ascension du Haut Mal de David B., são exemplos de grandes e maravilhosas bandas desenhadas em narrativa, cada uma com a sua especificidade e rigor, mas não podem servir como fronteira para lá da qual se esgota a ideia de banda desenhada. Le Coup de Grâce revisita experiências e propõe novas tentativas, ou cumprimentos mesmo, em que se permite a produção de sentidos (isto é, “significados”) em todos os sentidos (agora como “direcção”), reformulando um princípio deleuziano neste território. Relatar, como “re-transportar”, “re-ligar”, e assim, “re-estabelecer uma relação”. Historicamente falando, é possível incorporar num contínuo a existência de obras de imagens em séries das quais emerge um sentido último sem que ele tenha sido criado por elementos lineares ou ordenados, uma estória, uma resonância pela presença dos instrumentos e não pela organização das notas: Goya, Hokusai, Masereel são exemplos únicos, mas mais recentemente e entre nós, poder-se-ia falar igualmente de Tiago Manuel (e haverá uma experiência de Richard Câmara que mergulhará nesta natureza). E outros exemplos haveria a notar.
A banda desenhada, tal como o cinema, é uma arte que nasceu no seio da sua própria experimentação, sem quaisquer “modelos únicos” pelos quais se pautar, se bem que se permitisse beber de tantas e tão díspares fontes. A fotografia, por exemplo, não obstante o seu aspecto inovador em termos tecnológicos, levou algum tempo a separar-se das suas associações, modelares, a certas escolas de pintura, o academismo, a paisagística... Apenas por razões sociológicas, e que levaram o seu tempo a sedimentar (por volta dos anos 20 ou 30 do século XX, no mundo ocidental), a banda desenhada seria tornada refém de um círculo estreito de temas, públicos, canais de distribuição. As excepções sempre verificadas, todavia, serviam precisamente para confirmar essa regra, ou pior, essa normatividade (que passa ainda hoje por “normalidade”). Mas se este debate é "eterno" na pintura, e saudavelmente existente no cinema, para apenas citar duas áreas, na banda desenhada ainda é matéria votada a um quase esmagador silêncio, que faz destas excepções fogos nada, esperemos, fátuos.
Le Coup de Grâce não o é totalmente, isto é, não é um terminus irreversível em relação à narrativa na banda desenhada (nem nos parece que deva existir um, crendo-se antes em toda a diversidade); mas é um golpe que tenta restabelecer a liberdade da criação despojada dessa canga. Apresentam-se artigos de discussão, ensaios, entrevistas e correspondências sobre projectos antigos e outros inacabados ou problemáticos, bandas desenhadas tout court, mas que apresentam ligeiros desvios em relação à narração, exercícios oubapianos (Manouach, Laurent D’Ursel), e croquis (os quais, por razões agora suspensas, não incluímos no território da banda desenhada, por mais amplo que este seja).
Algumas das experiências incidem mais no aspecto da visualidade, ou onde a aparente simplicidade se alia ao humor, como no caso de Harry Lagoussis ou Greg Shaw (vejam-se aqui “O misterioso motard dos piscas”; as quais se citam no livro, pelo que se depreende da diferença de tamanho das restantes obras e a colocação periférica na mancha da página), ou que prima por uma fragmentação do figural (mais do que do figurativo, como no exemplo das "amibas" de Francesco Defourny), atendendo a sensação de estranheza que ainda assim mantém um que outro princípio da banda desenhada (nem necessário nem suficiente, mas verificável estatisticamente): a sequencialização, a distribuição espácio-temporal por vinhetas contíguas, a manutenção de uma unidade espacial ou de personagem, etc. São esses os casos de Pascal Mathey, Benoît Guillaume, Pauline Cardon, Ruppert e Mulot. Outros há que exploram a relação entre texto e imagem, a relação plasmática entre as duas instâncias na banda desenhada, mas cuja dimensão do texto se dissocia de um programa narrativo-linear para entrar num território de abertura poética: Benoît Preteseille e Carl Roosens. Neste âmbito, estão acompanhados por algumas outras experiências anteriores já referidas noutros momentos neste espaço (John Porcellino, Dice Industries, Warren Craghead, Fredrik von Blixen), e que Olivier Deprez, no seu ensaio aqui incluído, abre a autores como Thierry van Hasselt, Vicent Fortemps, Dominique Goblet, Frédéric Coché.
Uma antologia cuja diversidade permite não só pensar, mas repensar e repesar este ainda não-identificado objecto cultural.

27 de setembro de 2007

Duas experiências (por) entre a banda desenhada e a música.


Na verdade, o título deste post é falso. Ou pelo menos, incompleto. Se o livro de Fábio Zimbres é de facto uma construção suscitada pela colaboração com a banda de rock “da pesada” Mechanics, o outro livro é um catálogo de uma exposição patente no Museu Nacional de Etnologia. Em ambos os casos, porém, estamos perante narrativas contadas por uma sucessão de imagens sequenciais (não que esteja a reduzir a banda desenhada a essa definição, atenção; é simplesmente uma descrição e constatação de factos em relação a estes textos) que vive em diálogo ou se especifica ou se corporaliza através da música.
Em primeiro lugar, debrucemo-nos sobre a exposição Pinturas Cantadas (patente no Museu Nacional de Etnologia, desde 5 de Julho até ao final deste ano de 2007; a investigação e catálogo é da responsabilidade de Lina Fruzzetti e Ákos Östör). Trata-se, para explicar da forma mais concisa possível, de uma exposição que reúne pinturas sobre papel, colados numa espécie de rolos de tecido, que são depois desenrolados [havia escrito "desdobrados", o que prova um preconceito de leitor] e acompanhados “ao vivo” por canções que explicam as imagens, ou que com elas contam uma história. O catálogo reúne traduções em português das estórias-canções, depoimentos, fotos, scans excelentes de pormenores das pinturas, mas as reproduções das mesmas completas são francamente más; parecem ter sido scans feitos por mim. É uma tradição muito específica da região de Bengala (Índia), a que se dá o nome de pata, que correu o risco de desaparecer, e esta exposição mostra trabalhos de um grupo de mulheres de Naya que reavivou esta tradição, alterando-a em alguns pontos (na foto, a cantora-artista Manimala).


Quando Joaquim Pais de Brito, director do Museu, afirma logo na Apresentação do catálogo que as artistas “tiveram de conjugar a competência técnica do desenho e da pintura com a capacidade performativa da narrativa que se consubstancia nas canções que dão corpo à pintura”, está a revelar, pela própria construção frásica, o movimento de maré entre convergência e divergência, aproximação e afastamento, comunidade e separabilidade, dos dois tipos ou naturezas de arte aqui implícitas. Por um lado, as artes de inscrição, que largam vestígios materiais no mundo, mais ou menos perenes, transportáveis, transmissíveis e, por outro, as artes performativas, de uma realização efémera enquanto actualidade. [O fotógrafo Vik Muniz opõe as "artes da encarnação" às "da projecção gráfica"]. É óbvio que isto não pode ser visto como um retorno a velhas dicotomias insustentáveis, mas antes pólos de um espectro inanalisável em todos os seus mínimos elementos (irredutíveis a elementos mínimos discretos, isto é), um intervalo de diferenças que se fundem nas suas fronteiras. No entanto, mais do que uma consubstanciação, a junção de duas substâncias, há como um ultrapassar das substâncias originais para uma outra, “além”, “superior”: transubstanciação. Isso é já o que ocorre, a meu ver, na banda desenhada tout court, que não é uma mistura de texto (ou narrativa ou estrutura, etc.) e imagens mas antes uma convergência num mesmo espaço para a ascensão de algo que difere e ultrapassa essa união. Mais ainda aqui, onde uma outra dimensão se vem acrescentar a essa primeira, já de si complexa e implicada (não heterogénea mas múltipla-em-si-mesma).
Os temas a que estas artistas recorrem bebem tanto das fontes das suas religiões (e, curiosamente, sendo este grupo de mulheres islâmicas, revelam as suas proximidades e afinidades étnicas com as fontes hindus, quase indiferentemente em termos narrativos) como da realidade do mundo. Algumas recontam mitos, hagiografias, lendas. Mas estas pinturas, para além de servirem de suporte de estórias, acabam por permitir dois serviços públicos: por um lado, divulgam notícias de acontecimentos do mundo a uma população sem acesso à leitura de jornais ou a outros meios de comunicação como a televisão ou a internet. Um dos eventos representados mais repetidos nesta exposição, para surpresa deste lado do mundo (supostamente hegemónico), é a representação do “11 de Setembro”: em algumas imagens, os aviões surgem com cabeça de leão, noutras parecem-se com gigantescos peixes, e todos os prédios caem como se se tratassem de peças de brinquedo. Não é uma representação “ingénua”, “naïf” e muito menos “selvagem” ou “mitómana”. É uma representação, e isso deveria ser suficientemente claro, fôssemos nós igualmente capazes de discernir o que pertence ao reino da representação – e não da realidade objectiva, como se esta fosse alguma vez discernível e palpável – das nossas representações. Mas estão presentes também a “guerra contra o terrorismo” dos E.U.A. no Afeganistão ou o tsunami de 2004. Para além destas notícias, e o segundo serviço público das pata, discute-se a descriminação das mulheres nas culturas locais e informam-se dos perigos da SIDA. Não que possa reduzir-se a banda desenhada a um mero instrumento educativo, mas neste sentido, esta linguagem tem sido empregue com êxitos de grau variado para informar variadíssimas populações sem acesso a canais de informação mais democráticos e imediatos de todo um rol de problemas ou questões que lhes dizem respeito (veja-se um exemplo e explicação aqui). Essa é portanto uma outra medida que me permite aproximar estas pata da banda desenhada como campo geral.
(A exposição e estas obras de arte ainda levantam imensas questões e surpreendentes realidades que dizem respeito à consciência social, existencial e política destas mulheres, e haverá imensos frutos de teor antropológico e outros a beber delas. Aqui, como de costume, concentrar-nos-emos nas questões que nos dizem respeito.)
No artigo sobre esta exposição de Nair Alexandra, (“Cantar sobre o papel”, revista Actual, Expresso, de 25 de Agosto de 2007) descreve-se ser esta “uma tradição desconhecida entre nós: a das pinturas narrativas, acompanhada de canções”. No entanto, e sem querer com isto denegrir a apresentação excelente da jornalista, essa informação não é totalmente verdadeira ou, como disse a respeito do título deste post, é uma informação incompleta. Em primeiro lugar, se virmos bem as coisas, esta aproximação destas linguagens tão diferentes não é comum em praticamente nenhuma cultura moderna, onde os territórios ("pintura", "música") se acabaram por cristalizar no afastamento, mas podemos ver as coisas por outro lado. Ou pelas várias experiências contemporâneas – nas quais poderíamos colocar as experiências de António Jorge Gonçalves do “desenho ao vivo”, as performances de Vaughn Bode ou de Gary Panter, determinados espectáculos performativos ou operáticos de vanguarda, ou até mesmo um concerto de Jean-Michel Jarre ou de Sakamoto com artistas de “light shows”, os quais, não obstante o seu mau gosto, estão em todo o caso a pisar esse território fronteiriço. Ou por uma perspectiva da primitividade (mesmo que incorra aqui num absurdo abuso eurocêntrico) – passando a considerar as primeiras inscrições do período musteriense sobre ossos ou pedras (primeiras, isto é, sobreviventes), que implicavam inscrição de traços e performace efémera; ou vermos as várias tradições onde se combinam imagens mnemónicas e tradição oral: as churinga australianas, os códices meso-americanos, a escrita pictográfica dos inuítes ou a dos sioux; ou considerarmos a tradição japonesa do kamishibai, que era uma espécie de teatro infantil onde se apresentavam vários rolos desenhados narrativos, ou ainda os sketches, literalmente falando, de vários artistas norte-americanos no Vaudeville do início do século XX, actos conhecidos por “chalk talks” (mas com desenhos) por onde passou, facto sobejamente conhecido, Winsor McKay. (Claro, poder-se-ia acrescentar que um manual de montagem também segue essa natura mista de traços que obrigam a uma performatividade, mas estou seguro que compreendendo que apenas se reduz a essa função imediata, inimaginativa e desprovida de associações exteriores, esse objecto está fora do âmbito artístico a que nos referimos).
Ou ainda pelas experiências que aproximaram os universos da banda desenhada e da música em complementaridades especiais. Não falo aqui de histórias de banda desenhada que versem a vida de músicos, reais ou ficcionais, como as biografias de músicos de blues de Robert Crumb ou as aventuras de Red Rocket Seven de Mike Allred (não descuro a importância desse tema, e aconselho a leitura de um artigo de José Marmeleira, "Irmãos Pop", sobre este território na revista de Julho/Agosto do clube Lux, passando por muitas das mais brilhantes experiências de afinidades e proximidade entre estes meios criativos aparentemente insolúveis um no outro). Nem tampouco de bandas cujas músicas sejam reminiscentes de personagens de banda desenhada, como jazz em torno de Spirou ou as odes de Daniel Johnston ao Gasparzinho. Simplesmente, estou a falar aqui não de “ligações” mas “con-fusões”; falo de verdadeiras colaborações entre a dimensão musical e a dimensão da banda desenhada para chegar a um objecto estranho, que pode ser apreciado “em separado”, mas cuja existência se deve “em agregado”.
O exemplo mais antigo que conheço é o das medievais Cantigas de Santa Maria, imenso projecto do rei Alfonso o Sábio que apresenta imagens em sequência narrativa, versos provindos de um texto poético e a notação musical desejada. No século XX pode-se alistar o projecto de Luciano Berio com Cathy Berberian, “Stripsody”, o álbum Amenaza al Mundo dos Fantômas, ou algumas canções de Jeffrey Lewis, durante os concertos das quais o artista vai folheando as pranchas que ilustram o que canta (já o fez em Portugal, na zdb).
E é nesta estreita mas real tradição que se inscreve Música para Antropomorfos (Livros Voodoo/Monstro Discos) , projecto em colaboração dos brasileiros Mechanics (banda rock) e Fábio Zimbres (“quadrinhista”). Os trâmites deste projecto poderão recordar o método da colaboração entre os Moonspell e José Luís Peixoto, em que este acompanhou a banda na produção do seu álbum The Antidote para a elaboração de um livro de poemas intitulado Antídoto. No entanto, a colaboração entre os portugueses parece ter sido mais unilateral (Peixoto bebendo dos Moonspell mas não o contrário), ao contrário de Antropomorfos, que implicou um verdadeiro trabalho de vaivém na construção dos dois objectos finais – livro de quadrinhos e álbum de canções rock – que se acompanham a par e passo. Aliás, as palavras de Márcio Jr. na introdução são eloquentes o bastante: “Música para Antropomorfos não é a adaptação quadrinística das músicas contidas no disco. Nem a versão musical de um romance em quadrinhos. O buraco é mais embaixo”. E continua no prefácio a explicação: “é a experiência empírica de uma dissertação de Mestrado em Comunicação que estudou as possibilidades de interface entre histórias de quadrinhos e rock”. O resto do processo é explicitado, em que as pré-matérias se cozinhavam entre a banda e o artista, de trás para a frente e no tal vaivém criativo, passando por correcções, progressos, versões e finalmente se cristalizar num livro de 15 histórias e num álbum de 15 canções, as quais, “degustados em conjunto, propõem toda uma série de novas experiências e significados. Se você estiver louco, melhor”. Não está longe de um desejo real de entendimento o autor destas palavras, já que é necessário ser-se louco, em relação à “normalidade”, para entender mais profundamente que nenhuma categoria faz sentido, que não há divisórias, e que as marcas das fronteiras são afinal só marcas de tinta num papel, facilmente transpostas com um passo apenas.
Concentremo-nos, porém, no universo gráfico de Zimbres, arrebatando o livro à sua simbiose com o álbum de música. Se utilizo a palavra “universo” não é por um qualquer facilistismo ou chavão, mas porque me recorda precisamente experiências similares de construção de mundos, mais do que diálogos com o mundo, como se verificam noutros artistas. Zimbres já trabalha há muito tempo, e talvez seja injusto da minha parte recordar Mat Brinkman (sobretudo Teratoid Heights) para tentar estabelecer laços de afinidade criativa, uma vez que não desejo criar uma espécie de dívidas entre nenhum dos dois, perfeitamente independentes. Mas é nessa senda de trabalho que lhe encontro as forças, em que uma linha nervosa ainda presa ao risco ocasional constrói corpos e espaços, aparentemente associados ao mundo real (uma cidade chamada SP, personagens minimamente inscritas na relação com a realidade), mas onde se instala uma total liberdade e transfiguração perante o mesmo. As criaturas parecem viver entre uma construção sígnica perto das simplicidades infantis a que a Disney, as produções Maurício ou outras nos habituaram num certo círculo de influência, e uma interferência das imperfeições estilísitcas do cartoon apressado do underground ou do punk – um do-it-yourself onde o virtuosismo não está nos floreados ou nos acabamentos, mas antes da assunção de um nervosismo que não se deseja momentâneo, mas perene. É ainda construído o mundo que lança pontes com o real através da ironia em torno dos sistemas políticos, da inerente corrupção dos políticos, da indiferença disfarçada como fátuo interesse da parte do “povo”.

Mas todas essas camadas de sentido, como se se tratassem de uma das camadas instrumentais que se misturarão depois na canção apresentada, vão cruzando-se de formas mais ou menos complexas, sobretudo com personagens que atravessam de uma estória para outra, assumindo um protagonismo aqui e reduzindo-se a figurante ali. Um momento que me parece alto é a história-faixa intitulada O Sombra: o papel do eremita. Trata-se tão-somente de cinco desenhos (que ocupam cada um duas páginas, e podemos ver aqui dois exemplos), onde uma personagem acocorada simplesmente “se deixa estar”, e é o cenário que muda por baixo dela, não como se fosse um espaço que pudesse ser habitado, mas uma fina camada que se dilui e refigura a cada virar das páginas. Esta personagem, o suposto eremita, também surge mudo e calado noutras estórias, por vezes invisível ou por outras notado pelas restantes personagens. Assim, ganha como que uma dimensão estranha, de intersticial, que pode ser visto como um elemento normal e insuspeito da restante construção gráfica, as suas linhas não se diferenciado das outras em termos de função actancial, ou como uma presença absoluta de diferenciação, de convergência dos sentidos, de compactação e de imo da criação de Zimbres. Aparentemente simples, descomprometido, e quase que “ao acaso”, reúne nela todas as potencialidades do cruzamento entre o fragmentário e a leitura possível.
Antropomorfos, assim, parece ser a palavra exacta para decifrar estas personagens que parecem partilhar a mesma forma dos homens mas não sendo homens exactamente, mas sem nunca se perceber também exactamente se por estarem num espaço além ou aquém do nosso. Ambas as experiências oscilam entre um ponto e outro das artes que parecem viver separadas, e é essa oscilação o que as une, a as transubstancia num novo corpo. É confuso, porque converge e funde. Mas dá que pensar.
Adenda: numa conversa informal em torno do mesmo tema, como José Marmeleira, apercebi-me ter esquecido mencionar uma experiência fundamental. Não se trata de acrescentar mais um nome a uma lista, exercício eventualmente infindável e, quanto mais extenso, menos produtivo. Mas sim de sublinhar a tão única qualidade deste livro em falta: La Musique du Dessin, de Edmond Baudoin.
Nota final: agradecimentos a Fábio Zimbres, pela oferta do seu livro e o CD dos Mechanics.

22 de setembro de 2007

Reading Comics. Douglas Wolk (Da Capo Press)


Os ensaios que compõem os capítulos deste livro foram publicados anteriormente em toda uma diversidade de suportes editoriais, ocasiões, diálogos, circunstâncias que não importam especificar senão na sua própria natureza circunstancial que se dissipa na medida em que Wolk os reescreve ou reapresenta para se tornarem num corpo coerente e organizado neste livro. Ainda assim, essa natureza multímoda é notável pela própria diversidade de aspectos da banda desenhada que são debatidos, desde aspectos históricos e sociológicos a abordagens mais profundas, em termos artísticos, ontológicos ou de posição epistemológica no concerto dos saberes e das artes.
Uma outra grande força de Wolk está no facto de não haver tanto um desejo de catecismo, isto é, de uma instrução pelo dogma, do estabelecimento de uma doutrina infalível, mas antes na instauração de uma possibilidade de argumentação, de discussão no seu sentido kantiano: a de que um juízo de gosto pode ser proferido sem interesse (de “interesseiro”, não de “interessante”), e num tácito acordo de que ambos os interlocutores convergirão, mais tarde ou mais cedo, num sentido comum (diferente do “senso comum”). Assim sendo, são menos importantes as “lições” que Wolk ambiciona materializar do que os passos que ele dispõe em toda a sua argumentação para as tornar pertinentes, exequíveis, passíveis de serem debatidas.
Uma primeira e curta parte é feita de princípios gerais sobre os significados, potencialidades e especificidades da banda desenhada, matéria debatida já por muitos outros autores anteriores a Wolk (quer do campo particular da banda desenhada, como Kunzle, McCloud ou Groensteen, quer de um campo mais vasto, de Arnheim a Lessing, Barthes ou Sontag), e em relação às quais o contributo de Wolk é mais da ordem da exposição clara do que do rompimento fulgurante de novos trilhos. A segunda e mais extensa parte é constituída por recensões particulares de uma série de trabalhos específicos, ou melhor, se mo permitem, artigos sobre ler bd. Wolk revela de imediato que não se trata de uma escolha qualitativa ou sequer uma espécie de exercício catedrático de construção de cânone – muito interessante de notar, sobretudo contra os que acreditam na existência de “idades de ouro” no que diz respeito à criatividade e poder interno da banda desenhada, e impermeáveis e insensíveis ao feroz, titânico e brilhante momento em que vivemos nesta arte. Um cânone é impossível de se construir, pois este só pode emergir com um largo intervalo de tempo, um consenso que nasça de um diálogo de saber e de memória, grave ausência neste território. Todavia, essa falta acaba por se tornar numa espécie de robustez da liberdade de pensamento e de diversidade da banda desenhada, permitindo oscilarmos, enquanto apreciadores, leitores, críticos, pedagogos, fãs, seja qual for a nossa atitude, por todos os géneros, círculos de produção, formas de apresentação. Como, de resto, ocorre na cultura. Isto é óbvio. Mas parece ser ainda necessário afirmá-lo, sendo a banda desenhada um modo de expressão que suscita mais paixões e tribalismos do que verdadeira curiosidade intelectual e amplitude de visão. Essa liberdade de leitura expressa-se na diversidade dos autores ou livros discutidos nas recensões-ensaio de Wolk, que vão desde um mainstream com Frank Miller, Alan Moore, Jim Starlin, ao círculo alternativo dos irmãos Hernandez, Dave Sim e Kevin Huizenga, a autores que escapam de todos os modos dessa dicotomia (já de si fluida) como Alison Bechdel, Carla Speed McNeil, passando ainda por David B., como exemplo de “estrangeiro” (claro está, por ter sido traduzido para inglês).
De uma forma muito superficial, poder-se-á dizer o seguinte (banalidade): Wolk faz apresentações sumárias das obras de que fala e através da mais feliz das associações livres, ainda que ancoradas na inteligência, pertinência e uma forte cultura humanista, vai despertando os sentidos inerentes às mesmas, sublinhando aquilo que mais suscita interesse e força na leitura, o que leva a despertar a curiosidade e busca pelas obras que não se conhecem (partindo do pressuposto que haverá um ou outro autor desconhecido para os leitores portugueses) e uma reponderação ligeira sobre os que se conhecem. Essa reponderação deve-se a pequenas chamadas de atenção, análises textuais brilhantes, súbitas fulgurações esclarecedoras, ou simples reparos de algo que não havíamos notado. Nem todas as suas considerações são concordáveis, como se disse, mas todas elas são sustentadas da melhor forma. Só isso merece o estabelecimento de um diálogo inteligente com este livro.
Mas nem tudo são rosas... Na badana do livro reza que este é o “primeiro livro de teoria e crítica da banda desenhada sério, legível, provocador e destruidor de cânones”. Sei que provavelmente esta é uma superficial impressão da minha parte em sentir-me vexado e abespinhado até com estes comentários de elogios publicitários, tão típicos dos livros norte-americanos (e que, infelizmente, a meu ver, vão entrando no nosso mercado livreiro), mas a razão mais profunda é que revela a falta de honestidade em estabelecer um contínuo diálogo com outros autores que anteriormente falaram da banda desenhada de um modo equilibrado. Aliás, e esta é uma questão em aberto que os scholars norte-americanos não parecem conseguir chegar a uma conclusão única, há uma grande diferença entre a investigação europeia, onde vemos nomes como os de Groensteen, Peeters, Baetens, Lefévre, Morgan, entre outros, a serem citados uns pelos outros, a entrarem num diálogo extremamente coeso e inteligente, a completarem-se mutuamente, ou a contradizerem-se para melhor esclarecer as especificidades deste meio. Mas quando se lêem livros do campo da investigação norte-americana, ou livros como este que versam mais uma crítica livre, as mais das vezes parece que cada novo autor quer “começar do zero”. Isto já ocorrera com o filósofo David Carrier, por exemplo, mas apesar de podermos falar de autores como David Kunzle, Bart Beaty, Charles Hatfield, Joseph Witek, entre outros, como autores de livros fundamentais no estudo e acompanhamento da banda desenhada contemporânea (não necessariamente apenas norte-americana), parece que muito dificilmente se consegue construir um discurso de continuidade. Apenas McCloud e Eisner são sempre citados pelos seus livros, que estão mais próximos de manuais do métier do que de verdadeiros exercícios de sistematização e análise. O que, de resto, revela muito em relação à atitude intelectual dos “investigadores” norte-americanos; é como se todos desejassem ser “o primeiro a ter pensado na banda desenhada como algo realmente digno de discurso intelectual” (veja-se, por exemplo, a apresentação do mais recente This Book Contains Graphic Language: Comics As Literature, de Rocco Versaci, para “mais do mesmo”). Hélas!, estão atrasados por décadas dessa originalidade, pois poderíamos aqui lembrarmo-nos de Gilbert Seldes ou e. e. cummings, para falar apenas dos norte-americanos. Talvez se prenda com o facto de que cada um destes autores parte de uma disciplina completamente diferente do outro, talvez até diametralmente oposta (uns são historiadores, outros sociólogos, outros “English majors”, outros filósofos, etc.). Talvez se prenda com o facto de que cada um se dedica a um nicho da banda desenhada que está em termos separada de um outro (mainstream vs. alternativos vs. undergound vs. super-heróis vs. fantasy vs. etcs. sem fim). Talvez se prenda com o típico egoísmo de um fã (“lemos o mesmo, é certo, mas eu li melhor que tu”). Talvez se prenda com uma simples falta de vontade em realmente estabelecer um diálogo. Não tenho resposta para esta situação, é apenas uma constatação de factos.
Não obstante, Wolk mostra mesmo ser capaz de navegar em toda a sorte de águas, e mantendo o barco numa rota certeira. Só lendo, no mais acabado dos gerúndios, é que podemos pensar sobre a banda desenhada.

17 de setembro de 2007

Un Taxi Nommé Nadir. Romain Multier e Gilles Tévessin (Actes Sud)


Notas para a apresentação deste livro

  • Entrar num táxi não é somente uma escolha de um meio de transporte, mas penetrar numa idiossincrasia, numa personalidade, numa história de alguém. Quando entramos num táxi, sozinhos, a maioria das vezes sabemos que estaremos a entrar num diálogo – indesejado, inevitável, fomentado, simpático, há-os de todos os paladares – com o taxista. Poder-se-á falar somente do tempo, de um recente jogo de futebol, de um qualquer tema do dia, mais ou menos requentado, mais ou menos temperado por uma mistura de ideias feitas e opiniões férreas da parte do taxista.
  • Milan Kundera, em A Lentidão, provem-nos de uma imagem magnífica: quando caminhamos, pode surgir-nos nas dobras da cabeça uma pequena ponta de memória; se for uma memória de que nos queremos recordar, caminhamos mais devagar, como se ao mesmo tempo estivéssemos a puxar por essa ponta para nos recordarmos na totalidade; mas se adivinharmos ser algo penoso ou desagradável, então estugamos o passo, para que se possa essa ponta dissipar o mais rapidamente possível. Talvez pudéssemos acrescentar, pobremente decerto, a esta imagem, que um homem cuja profissão é conduzir, isto é, uma actividade de passeio e caminho mas a velocidades superiores, acaba por pagar esse acesso à memória e mergulha no mito, na ficção, na estória. Conduz-se para ficcionar.
  • Un taxi nommé Nadir é precisamente isso: a um só tempo, entramos com os seus autores num táxi, na vida do taxista, na estória que se desenvolve ao longo das páginas. São poucas as informações internas ao livro que nos desvendam o modo de trabalho que levou à produção deste livro, mas podemos apercebermos de que a distribuição das responsabilidades, tão típicas neste modo de expressão, coloca nas mãos de Romain Multier a parte que cabe às palavras e nas de Gilles Tévessin a que cabe às imagens. No entanto, e essa é uma das características que, não sendo original, é ainda atípica, estes autores não pugnam para transformar este num veículo das suas ficções, mas sim para transportar a voz de Nadir, um taxista de Paris, de ascendência argelina (tema que se torna significativo ao longo do livro, pelas suas considerações sobre a integração na França moderna, pelas paragens especiais em restaurantes com petiscos típicos), que tanto cita Rabelais como rosna entre dentes de situações menos próprias um pouco por todo o lado. O que importa salientar aqui é que a equação da banda desenhada acaba por pertencer a este Nadir (a personagem do livro, não a pessoa real, impossível de discernir e fora do âmbito da obra) e não à presença dos autores, que se dilui na estruturação, ou é a estruturação, mas não a parte dialogante com o leitor.
  • Fazer generalizações é sempre lateral a um crime quando diz respeito a pessoas reais. Assim sendo, estes dois autores optaram por dar lugar a um só condutor e não à elaboração de uma personagem compósita, que fosse de facto construída a partir de generalizações, clichés, ou preconceitos. Nesse sentido, associar Un taxi nommé Nadir a obras desse recente género da banda desenhada a que se pode dar o nome de reportagem ou de entrevista não será um risco de qualquer espécie, é uma simplicíssima constatação de factos. Agregar-se-ão nesse género autores tão diversos como Grenberger, Joe Sacco e Emmanuel Guibert. Aliás, não é por acaso que é este último, autor de Le Photographe e La Guerre d’Alan (onde se lançam complexas implicações em torno do trabalho de entrevistador e repórter, supostamente objectivo e que dá a palavra ao outro, e de amigo e autor, que tem a liberdade para tornar sua a voz do outro), quem escreve o prefácio deste livro presente, não só como dando a sua bênção mas também como garantindo a inscrição desta obra num espaço que ele ajudou a encetar.
  • Porém, há que ser rigorosos, e asseverar que não estamos perante uma obra tão forte como as desse autor. Há aspectos curiosos, como transformar o que foram provavelmente várias entrevistas a Nadir numa só viagem nocturna – a diegese inicia-se nos momentos em casa antes do turno, atravessamos uma Paris nocturna magnificamente diversa nas suas gentes, culturas e níveis de existência, e por ruelas e desvios não só geográficos mas da vida de Nadir igualmente, e voltamos a casa novamente -, a de transfigurar Paris do outro lado das janelas de um carro num espaço mudo mas habitado pela diversidade, a pequena ilusão de que somos passageiros no banco de trás escutando Nadir, os pequenos afastamentos do “texto” central para seguirmos um qualquer figurante (o cliente da prostituta, os “gunas” a curtir uma mini-moto). E apesar da personagem Nadir ser, sem dúvida, uma personalidade garantida, segura, redonda, “interessante”, como se costuma dizer, não há uma sua metamorfose pela e na banda desenhada, como acontece com Alan Cope ou Didier Lefèvre.
  • As imagens são um encontro de duas qualidades ou mesmo naturezas: os cenários, espaços, interiores de lojas, alguns objectos, parecem ser fotografias posterior e densamente retrabalhadas por computador (tornando-as um exemplo curioso entre a ilusão de naturalismo e objectividade da fotografia e a construção sígnica do desenho); as personagens são desenhadas de um modo muito simples, quase básico, e segundo os pequenos limites que programas fáceis de desenho por computador permitem a qualquer pequeno esforço (o que não invalida a emergência de um “estilo” ou da continuidade de uma perspectiva gráfica de todo o livro, mas não abona a favor de uma aproximação estética forte).
  • Não obstante, e seguindo a ideia de Borges de que não existe um único mau livro sem pelo menos uma frase memorável, apresento aqui as duas páginas que me parecem as mais sólidas em termos de trabalho conjunto e de especificidade do livro:

  • Finalmente, e mais uma vez numa comparação, se em Sacco e em Guibert há uma procura mínima pela ilusão do realismo, e se no primeiro se opta por revelar o mais claramente possível a natureza das entrevistas e relações interpessoais, e no segundo se opta antes por uma composição a partir das vozes dialogantes numa só voz autoral, neste livro de Multier e Tévessin é dada totalmente a voz à personagem Nadir, sendo ele quem nos conduz (literalmente!) pelas “cerejas” que a sua conversa suscita, sem direito a resposta, como, e perdoe-se a generalização, sói a um típico taxista.
  • Nota final: agradecimentos a Corine Saulneron pela oferta do livro e pelo convite feito em nome da Nouvelle Librarie Française, onde decorreu a apresentação deste livro, integrado no Festival Táxi.

7 de setembro de 2007

A Invisibilidade do género feminino em Tintin. Ana Bravo (Chronos)


[texto grande]
O artigo a que me referi num post anterior foi publicado na Vértice no. 135, de Julho-Agosto 2007. Coloco aqui um texto ligeiramente alterado. Coisas destas acontecem. Entreguei este artigo dois meses atrás à redacção da revista Vértice, mas indicando tratar-se de numa versão de trabalho. Por minha culpa, fiz a revisão de algumas gralhas, incompletudes, períodos menos claros, mas não os acrescentos que se vinham a desenvolver em diálogo com outras pessoas. Foi publicada uma versão legível, e que ainda subscrevo, mas a que aqui apresento possui um ou outro detalhe, uma maior correcção e um grau maior de clareza em relação ao que pretendia dizer. Mas não está esgotada a discussão e há ainda muito a dizer e a explicitar, a debater. Havia sido mais discreto ou comedido no artigo publicado na Vértice. É uma polémica-em-construção, e estou seguro, digo-o outra vez, de que não esgotámos ainda os pontos a discutir. Esperemos que suscite respostas, da parte dos interessados, da própria autora, e iremos tornando a questão cada vez mais clara.
Não seguiu também o título do artigo, pelo que saiu com o título do livro discutido. As minhas desculpas por este lapso, totalmente da minha responsabilidade. E espero que a publicação deste artigo aqui não impeça os interessados de obter uma cópia da revista Vértice.
Artigo:
O livro que se traz aqui à discussão é da autoria de Ana Bravo, investigadora com um currículo académico e profissional consolidado, mas que lhe acrescenta aqui uma incursão pelo domínio da banda desenhada através de uma Tese de Mestrado que conflui os discursos de desconstrução que emergiram graças ao feminismo, aos Gender e Women Studies, sobre a obra mais famosa de Hergé. A invisibilidade do género feminino em Tintin. A conspiração do silêncio quer colocar sob essa lupa de análise política o famoso “clássico” da banda desenhada. Enquanto o gesto em si é não só louvável como desejado na contínua construção de um discurso crítico no interior da banda desenhada, esta obra apresenta toda uma série de problemas que desejo aqui debater.
A primeira parte, sobretudo aquela que versa de uma forma mais global a história da banda desenhada e as suas várias “linhas de fuga”, já especializando sobre a representação do género feminino na banda desenhada em termos gerais, sofre de algumas generalidades redutoras, erros factuais, quando não abusos crassos, afirmações insustentadas, tipologias inexplicadas (quando não inexplicáveis), e até mesmo indícios de plágio (entre as páginas 40 e 41 tecem-se considerações sobre a figuração dos “bons” e dos “maus” e suas associações étnicas, que segue quase ipsis verbis as mesmas considerações de Domingos Isabelinho no Nemo no. 21, de 1996; o exemplo é o mesmo: Ming), trocas de nomes e filiações, curvas demasiado apertadas do que se está a discutir, dificultando uma leitura suave. Pequenos tropeções que colocam em cheque a acuidade desejada por uma aproximação académica deste complexo e imenso (como outros quaisquer) objecto cultural. Isto é, problemas tipificados de autores, mesmo intelectuais de peso nas suas áreas correspondentes, que mostram uma aproximação superficial ao “corpus de saber” existente sobre a banda desenhada. Um só ponto que mostra esta problemática de modo claro em relação à obra de Bravo: poucos são os momentos onde se mostra uma leitura de autores que tenham desenvolvido algum trabalho alargado e sustentado sobre esta temática precisa, a representação e figuração da mulher na banda desenhada; Trina Robbins, por exemplo, não se encontra na bibliografia ou nas notas de rodapé. Certo, não é esta uma informação suficiente para denegrir a investigação, já que a bibliografia é forte no que diz respeito aos Feminist Studies propriamente ditos. Apontam-se os problemas citados apenas como pista de desconfiança da minha parte pessoal em relação à relação da autora com a banda desenhada, jamais em relação ao valor académico do trabalho em geral. Isto é, não existe uma verdadeira relação sustentada e muito menos académica com a banda desenhada logo à partida, o que faz ressentir o próprio trabalho, a sua natureza académica, de uma série de fragilidades que não se deveriam verificar para a sustentabilidade da tese central.
Hélas!, parece que assim continuamos no território de ser um objecto “não-identificado”, passível deste vol d’oiseau, verificado em quase todas as frentes (vide o programa da RTP2 Câmara Clara dedicado a esta arte, que não passou de um certo nível nostálgico-familiar, não obstante a qualidade dos seus intervenientes) que não aquelas que se dediquem a tempo inteiro...
Seja como for, o objectivo deste livro/tese não é o de reapresentar a banda desenhada como um todo (como se tal fosse possível), nem sequer repensar uma atitude global e equilibrada sobre quer as suas potencialidades (virtuais, eventuais, futuras) quer sobre o seu imenso corpus diversificado (actual, verificado, histórico), mas sim discutir o que o título promete. Nesse objectivo, a obra de Ana Bravo é directa no que diz respeito ao que quereria combater: “o sexismo cultural impera no acesso das mulheres à criação, impondo leis economicamente e simbolicamente desvalorizadoras para as mulheres, porque o território é ainda masculino, por natureza, por herança cultural e histórica” (pag. 57). A existência dessa opressão é real, existente na banda desenhada (também), existente na obra de Hergé na forma de uma “assimetria simbólica” (173), e é isso o que importa desmontar, desconstruir, derrubar. A conclusão deste trabalho é claríssima, contundente, produtiva para futuras análises, quer da obra do próprio Hergé quer para outras produções artísticas deste campo.
A sociedade em que vivemos (portuguesa, europeia, ocidental, liberal-capitalista, etc.) apresenta uma imagem de si mesma como uma homogeneidade no que diz respeito à distribuição dos papéis sociais e de poder de acordo com uma linha divisória pelo sexo. Os meninos de azul e as meninas de rosa. Esse é tão-somente o primeiro passo para criar a ideia de que existem distribuições (seja do que for) “apropriadas a cada um”. Os direitos estão consignados nas leis, nas constituições, nas cartilhas e nos manuais, mas o desequilíbrio é tangível e verificável em praticamente todas as esferas. Para além dessa falta de balanço real, a própria dicotomização dos sexos leva a que se entenda ser apenas esse o eixo de relação possível, apagando da equação a possibilidade de terceiros sexos, de expressividades sexuais diferentes da “norma”, da ultrapassagem da família como suposta unidade estruturante da sociedade livre (o contrário, dizem os tradicionalistas, é o caos), etc. É a existência destes discursos, mesmo que aparentemente invisíveis, que deve ser combatida por uma determinada resistência cultural, intelectual e política. A aplicação dos seus instrumentos na banda desenhada é bem-vinda e necessária. O aspecto que indiquei ao princípio, em relação à introdução geral do estudo de Ana Bravo, é que me parece menos produtivo e imparcial: a banda desenhada não é, por si só, ou em si mesma, ou como um todo, sustentadora desse discurso. Se o é aparentemente ou se a esmagadora maioria da sua produção mais visível o é, essa situação é tal e qual como qualquer outra expressão cultural contemporânea, desde o cinema à literatura. No entanto, penso que não se faria um juízo de valor global sobre todo o cinema a partir de produções de comédias românticas de Hollywood nem toda a literatura a partir de um nicho de produção presente nos escaparates contemporâneos; bem pelo contrário, afunilar-se-ia o escopo do trabalho, explicitando tratar-se de uma amostra (mais ou menos representativa), mas jamais julgando a arte inteira... Analisar o Tintin desta perspectiva é producente (e aplicável em muitos, muitos outros títulos), mas cunhar TODA a banda desenhada deste modo (ou doutro modo qualquer generalizador) é um abuso, que não toma em atenção – por desconhecer? – precisamente aquelas produções que apresentam ou pelo menos apontam para uma discursividade dos géneros outra. Apelar para autoridades, como Umberto Eco, não abona a favor de uma leitura informada do campo expressivo existente da banda desenhada, quer histórica quer contemporaneamente. A banda desenhada não é necessariamente um campo que se situa sempre “entre o mito e o romance” (citação de Eco na pág. 174), nem espaço privilegiado de “estereótipos sociais”, como se fosse intrínseco à sua existência enquanto linguagem específica o compactar-se com esse estatuto. Isso depende da obra, do autor, da circunstância exacta e concreta. Exemplos de excepções? Herriman com Krazy Kat ou o papel da Luluzinha na obra de M. H. Buell e John Stanley nos “clássicos”, Y: The Last Man de Brian Vaughan e Pia Guerra contemporaneamente, e no círculo do mainstream. E se atentarmos a todo um rol de autoras politicamente engajadas, de Roberta Gregory a Isabel Carvalho, ou outras que não se associando com discursos mais directos, exercem o seu poder criativo para uma visão mais equilibrada do outro (Chantal Montellier, Marjane Satrapi, Jill Thompson), teremos uma visão mais ampla ainda. Por isso, e apesar de encontrar na Conclusão deste livro um texto esclarecedor (em relação aos propósitos, mesmo que incumpridos) e elementar (num sentido de “ponto de partida”, mas também em termos de ausência da complexidade do cruzamento das informações e várias linhas de investigação), discordo em absoluto de frases como “a relação entre a temática da BD e a inevitabilidade de um quadro referencial feminino que privilegia a imagem estereotipada das mulheres” (175). Esta estratégia é também uma de deixar na invisibilidade ou “debaixo do radar crítico” (para utilizar mais uma vez a famosa frase de Spiegelman) toda uma criação da banda desenhada que importa discutir e tornar presente na sua abordagem cada vez mais pública.
O estilo de escrita levanta alguns dissabores de leitura. Em termos sintácticos, o abuso de vírgulas que quebram a ligação entre o sujeito e o predicado é uma característica demasiado notável, o que não ajuda à fluidez da leitura. Em termos de lógica e organização do discurso, apresentam-se indicações um pouco vagas, pouco elaboradas, para logo passar à seguinte, cita-se um autor e logo depois outro, sem qualquer nexo de causalidade entre os dois empréstimos exteriores, havendo mesmo pedaços de texto que mais parecem ser uma colecção de factos e sound-bites para tornar a prestação mais enriquecida. Exemplo: “A ligação de Hergé às personagens é tão forte que era ele mesmo quem desenhava sempre as figuras, deixando os cenários e os adereços para os seus colaboradores. Para marcar o estilo, Hergé introduziu os balões em Les Aventures de Tintin, pondo as personagens a falar” (104). Se esta última parte deve ser lida num contexto maior, em que se conta (breve, esquemática e incompletamente) a história do “balão de fala” e a sua transmutação por Hergé, a primeira leva-nos a lê-la várias vezes para entender a pertinência. Hergé desenharia as personagens apenas porque tinha uma ligação “tão forte” com elas? Não se poderia pensar que as desenharia... por ser o seu autor? E soa sempre uma surpresa inédita um autor ter ligações fortes com as suas personagens? E se, em algumas partes, há um fio condutor que nos ajuda a perceber o contexto, ultrapassando a necessidade de ler as mesmas fontes para poder entender o raciocínio, outras há em que se apresenta um dado completamente descontextualizado ou “fora do sítio”, obrigando a retornar atrás para completar a imagem que se pretendia criar.
Mas, voltemos ao que importa, uma tese apresenta ideias. E são elas que devem ser sustentadas. Estas apenas surgem directamente na parte III, a partir da página 117, isto é, o busílis da questão: a representação das mulheres no universo ficcional de Tintin.
Algumas das ideias apresentadas são-no da forma de silogismos, derivados de premissas que não buscam nem sustentar-se nem desconstruir-se por sua vez. Duas, pelo menos, são constantes. A primeira prende-se com o insistente apelo, repetido até à exaustão sem qualquer análise da parte dos seus utilizadores, ao facto de Hergé ter sido cultor da chamada “linha clara”, sendo o rosto de Tintin a sua máxima expressão, “simplicidade” a qual permite “abrindo-se a todas as interpretações” um “suporte ideal para a identificação do leitor” (102)... Em primeiro lugar, poderíamos ver. Mesmo colocando de lado as pequenas mudanças a que a figuração da personagem Tintin foi sujeita ao longo da sua vida livresca, com sucessivas refigurações e reapresentações, é verdade que o rosto de Tintin continua a ser apresentado de um modo esquemático, senão mesmo infográfico (o que leva à possibilidade de entendê-lo como “assexuado”, mas precisar-se-ia aqui de um maior grau de análise). Mas bastar-nos-á folhear as páginas de um dos álbuns com atenção às flutuações faciais do capitão Haddock, do professor Tournesol, do vilão Rastapopoulos, entre outros, para depreendermos que essa estratégia visual não é uma constante em todas as personagens. A “linha clara” não é permeável em toda a produção de Hergé (e colaboradores e estúdio). Em segundo lugar, mesmo que exista essa simplicidade, a aceitação sem mais da teoria da projecção do leitor é problemática. Sabemos que Scott McCloud também a subscreve. Mas de onde vem essa teoria? E não é preciso deixar explícito que é uma teoria? Isto é, não faz parte de dados objectivamente (seja isso o que for) observáveis, mensuráveis. Somos obrigados a acreditar nessa teoria só porque se a repete até à exaustão? Não subscrevo essa ideia, mas este não é o espaço nem tempo de a desmontar. É apenas uma questão que não é colocada de modo mais claro e sustentado por Ana Bravo.
A outra ideia apresentada sem questionamento, e que serve de sustento à argumentação subsequente, é ainda mais melindrosa. Trata-se de uma crença demasiado central no biografismo, ou melhor, numa criptologia psicanalítica. Uma análise de uma obra de arte não tem necessariamente de ser estética num sentido restrito, isto é, enquanto juízo e com uma dimensão valorativa. Mas esse posicionamento, em termos gerais, implica que haja uma distinção muito séria e estruturante das três intenções (nem tudo o que é Eco é luz, mas algumas das suas lições ainda nos ajudam): a do autor, a da obra, a do leitor. A do leitor diz respeito à Teoria da Recepção e à sociologia. A da obra é a única que leva a uma constante busca e discussão entre as várias interpretações, e a uma leitura estética, é a única possível de interrogar. A do autor é passível de dialogar com o jornalismo, o biografismo propriamente dito, uma história, etc. É Serge Tisseron, freudiano da velha guarda, o fundador de todo um rol de associações que atravessam a fronteira da vida real, histórica e biografável de Georges Remi e a dos périplos aventureiros da sua personagem Tintin. Tintin chez le psychanalyste (1985), Psychanalyse de la bande dessinée (1987), Hergé (1987), Tintin et les secrets de la famille : secrets de famille, troubles mentaux et création (1990), La Bande dessinée au pied du mot (1990), Tintin et le Secret d’Hergé (1993) são os títulos que marcam a etapa do seu edifício. Este “detective do divã”, “em roda livre” (para utilizar duas expressões de Harry Morgan sobre Tisseron), explora os possíveis traumas de Hergé e as formas psicologizantes da banda desenhada ela-mesma, e depois factos palpáveis da sua vida – como a descoberta da bastardia do pai -, para depois os redescobrir, sob a forma de sintomas (termo técnico da psicologia, entenda-se), na obra de Hergé. Os Dupont/d são os gémeos pai-tio de Hergé, a necessidade de aventura e viagens é uma “fuga ao poder maternal”, as cavernas gélidas da lua são um útero aonde se retorna, a Castafiore é uma imagem-espelho... Percebemos onde nos poderá levar uma livre interpretação e interpenetração dos dados biográficos e da obra de um autor. Não é que a psicanálise se apresente como um “mau” caminho, muito menos como “proibido”. Simplesmente é “um” caminho, e como tal deverá ser também ele passível de alguma crítica, prudência, contestação. A aceitação quase cega das suas conclusões, sobretudo as de Tisseron, são insustentadas teoricamente... Apresentar paralelos entre a Margarida do Fausto de Gounod (de 1859) e a avó paterna de Hergé (124) é “bene trovato”, mas quebradiço academismo.
A utilização dos escritos de Pol Vandromme também são tomados ao pé da letra, sem qualquer desconto para com as afirmações bombásticas e criticáveis desse escritor. Se Vandromme fez uma afirmação sobre Hergé ou a sua obra, deverá ser entendido como um seu argumento, ideia, suposição, e não como uma basilar verdade que deve ser tomada como ponto de chegada. Mais uma vez, as fontes são apresentadas acriticamente, o que não abona em favor do desenvolvimento de uma ideia equilibrada e justa para com Hergé e a sua obra, de um ponto de vista académico, cuja neutralidade cabal é impossível mas nada impedindo de se a tentar alcançar.
Há outras vias abertas e não perseguidas. No tratamento da comunidade cigana em Tintin, por exemplo, perde-se mais tempo em questões genéricas, originárias e da sociabilização contemporânea da etnia em si do que o seu efectivo papel em As Jóias de Castafiore. Quando se analisa o papel das mulheres negras (147 e ss.), a autora comete o deslize de empregar a palavra “negrito” para se referir à criança da etnia local representada. Duvido que se empregasse “branquito” no caso de uma criança branca...
Compreendam. O que me leva a estas considerações não é a desconstrução central deste livro, comendatória, laudável, e desejável noutros discursos da banda desenhada. Para além das produções onde a misoginia ou sub-representação da mulher é real e clara – da banda desenhada tradicional de super-heróis à do género high-fantasy – é necessário aplicá-la noutros discursos, desde as supostas obras feministas da Losfeld (Pravda, Barbarella, etc., criadas por homens) à banda desenhada independente/underground mundial (pasto para tantos outros preconceitos), passando mesmo por autores onde se desconfiaria o contrário. Um exemplo: Baudoin, de quem falo repetidamente, não obstante a sua atenção para com um quotidiano e uma poeticidade do real, não escapa da gravidade de um certo baba cool de 68, onde qualquer mulher representa o “Eterno Feminino” e amar uma significa amar todas... é uma outra maneira de negar a construção da personalidade.
O título desta obra é uma pequena provocação que nos obriga a reler a obra de Hergé em busca desta imagem. Não se poderá falar propriamente de uma invisibilidade a pleno direito, uma vez que a presença das mulheres é real, mas que atravessa vários planos da sub-representação, que terão a ver com índices de participação, dos papéis assumidos, dos valores negativos que ocupa, etc. A tese de Ana Bravo cria um campo de referências e de leitura analítica (até determinado ponto) que constrói um espaço primeiro de respostas. Mas é no campo da interpretação que surgem desvios que trago aqui à consideração. Até mesmo a questão de reduzir a única presença feminina constante ao papel de Milou me parece uma interpretação constrangida, para provar a todo o preço a força da tese. Recorrer às informações exteriores à obra (biografismo, considerações gerais sobre antroponímicos franceses), ou a traduções estrangeiras que tenham optado indiscutivelmente pelo género feminino poderiam ser contrabalançadas por outras escolhas contrárias, do género masculino, verificado nas traduções das línguas germânicas, por exemplo... Mais, para além do genericamente neutro nome de Milou (por mais ginástica que se queira fazer, a análise dever-se-ia centrar na personagem em si), Milou não é necessariamente uma cadela nem cão, mas sim de género indefinido (tal como, de certa forma, Tintin o é, como se apontou atrás). Se por um lado o companheirismo ficaria mais coeso entre a esfera dos machos, também esta natureza indistinta ficaria bem (paralelo interessante ao sexo de Krazy Kat?). Ou será que o eventual paralelismo entre Milou e o terceiro sexo seria uma “emenda pior que o soneto”?
Depois surge a questão de Castafiore, absolutamente central para a deste edifício analítico. Que a representação de Castafiore seja caricatural, não há dúvidas. Que essa representação, tomada como paradigma de representação do género feminino na obra de Hergé, aponte para um certo grau de misoginia, também não suscitará questões de maior. Mas observar essa representação sem uma contextualização num quadro maior de representações já não é inocente. Afinal, o narcisismo a que Castafiore se reporta não é, de longe diferente, daquele que assola Haddock e o seu alcoolismo mal resolvido, o professor Tournesol e as suas “engenhocas”, os detectives Dupont/d e a sua obsessão do momento e a incompetência de sempre... E os tratamentos caricaturais de figuração também não diferem. Ou será que a representação caricatural da mulher é mais ofensiva e visível que a do homem? Não poderei responder cabalmente a esta questão, mas tendo em conta a equação da opressão falocêntrica e os discursos normativos, é natural que o tratamento de ridicularização das personagens-opressores passe mais despercebida (é simplesmente “humor”) que as das oprimidas (é “estereótipo” e “sub-representação”). O que julgo importante é a necessidade de um estudo cabal da figuração e representação em Hergé, e então, sim, estudar a différance (derridiana, claro, citado no livro). “Ainda que não se tivesse analisado o universo de representações masculinas, por exclusão de partes, concluímos por índices quase simbólicos de participação das mulheres em Les Aventures de Tintin” (164). Não encontro aqui um fundamento poderoso. Formas de vestuário, tipologias de intervenção discursiva, presença no plano da imagem, figurações, papéis tradicionais... são todos estes aspectos os parâmetros estudados para o desvelamento desse discurso normativo (logo, misógino) da obra de Hergé. Criar-se-ia assim um potente instrumento estatístico, não fossem alguns problemas de exactidão; e sem exactidão a estatística derroca sobre si mesma. Mas para além disso, um instrumento deverá valer pelo e no seu uso, e não na sua mera existência. E a análise estatística, dissociada de uma efectiva análise das relações actanciais e diegéticas, uma “close reading” das unidades narrativas em que se inscrevem esses papéis, ou por outras palavras, flutuando essas informações sem o seu contrapeso, não se ancora numa visão sustentada. Aliás, este é um dos problemas de base: não respeitar a divisão clássica entre o narrador (a função e agência que focaliza as informações e o discurso político no interior da obra) e o autor (a pessoa histórica, real, cuja vida poderá informar o sistema de produção mas se separa da intentio operis). É óbvio que nada proíbe que se façam leituras sobre os dois territórios e se os aproximem, mas seria necessário justificar qual a pertinência dessa aproximação. Enfim, em vez de uma estrita e clara separação entre as esferas narratológica, estética e sociológica, faz-se aqui uma mescla complicada de entender, injustificada.
As indicações por Ana Bravo dos valores cromáticos em Castafiore sem contraponto das mesmas nas restantes personagens não cria uma imagem completa, como se desejaria. A aplicação dos conceitos/exercícios de interpretação freudianos sobre os objectos, como Tom McCarthy faz em Tintin and The Secret of Literature (esmeralda de Castafiore = clítoris de Castafiore), são saltos interpretativos curiosos e até divertidos, mas saltos. McCarthy apresenta um exercício curioso, de associações livres até certo ponto “alucinadas”, mas que nos remete a uma (re)interpretação tão forte que nos obriga a uma releitura da obra. Além disso, não se pretende inscrever de modo algum num discurso académico absoluto, o qual responde a regras apriorísticas e não tem de demonstrar a sua sustentabilidade a cada passo. Ficamos sem ver o chão que fundamenta os passos. Mas se esses saltos funcionam em McCarthy, tornam-se chaves de descodificação poderosas, os de Ana Bravo recolocam-nos na casa de partida, exigindo mais respostas a questões colocadas de forma mais exacta. A leitura de As Jóias de Castafiore através da repetida fórmula do livro “onde não se passa nada” provoca a expurgação imediata de um dos aspectos positivos desta estória em particular, que está relacionado com a questão da intolerância/tolerância para com os ciganos aparcados nos jardins de Moulinsart. Essa questão (simples?) não redime todo o Hergé dos seus preconceitos rácicos, primeiro colonialistas, mais tarde anti-semitas, sexuais, e políticos, mas aponta a um elemento que deveria estar presente no sopesar da obra.
Castafiore é uma caricatura. Assim sendo, é imputável a um estereótipo conciso, e não geral. Não vejo nessa personagem necessariamente uma caricatura do género feminino como não vejo os irmãos Dupont/d uma caricatura da autoridade em geral ou o Capitão Haddock como de toda a marinha mercante... São estereótipos, combatíveis, sem dúvida, mas não holísticos em relação à humanidade. Mais, quase sempre Castafiore é indicada como uma diva, uma representação de um certo modo da ópera do seu tempo. Callas é o nome mais citado, aqui e noutros livros. Desconhecimento da área? Só porque é soprano? Mas há sopranos “magras” (mesmo que Callas o tenha sido por maus caminhos)! Distracção das fontes, do contexto histórico? Facilitismo de argumentação? Histórica e fisicamente, Castafiore está mais próxima de Elisabet Schumann ou de Birgit Nilsson ou de outra qualquer “cantora gorda” (...until the fat lady sings...), i.e., o estereótipo da cantora de ópera! Vocalmente estará próxima de Natália de Andrade? Isto se acreditarmos que é Castafiore que “canta mal”, mas...no Scala?! Não serão antes as personagens de Hergé que não têm nem cultura nem sensibilidade para apreciar Gounod e muito menos Wagner? E já agora, porque não citar Elisabeth Schwarzkopf, e jogar com a antítese dos nomes, de uma “cabeça preta” a uma “flor casta”? Os jogos de associações são relativamente fáceis; importa é a sua pertinência e produtividade analítica. Nem uma nem outra se verificam neste caso.
Também se tecem algumas considerações sobre a segunda mais marcante personagem feminina em Tintin: Peggy, mulher de Alcazar (Tintin e os Pícaros). Esta é representada como um protótipo da mulher desprovida dos “encantos feminis”, e a subsequente atenção da parte de Tournesol confirma essa condição, pois Tournesol, se interpretado de acordo com os instrumentos certos, será visto como a-personagem-que-entende-tudo-ao-contrário (mesmo que acerte no fim). Ou seja, essa atracção não confirma Peggy como atraente tout court, em si mesma (a atracção de Alcazar por ela será do foro psicológico?). Mais uma presença da representação misógina, sem dúvida. Todavia, ela exerce um poder férreo sobre a figura de Alcazar, por sua vez quem exerce um grande poder sobre tantos homens... Servirá esta situação para ilustrar a proverbial e bacoca frase “por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher”? Será uma excepção caricatural de poder da mulher sobre o homem que confirma precisamente a regra, o “normal”? Ou será uma caricatura, por sua vez, dos papéis libertários que as mulheres assumiam cada vez mais, e visivelmente, na década de 60? Estas perguntas acabam por ser respondidas na obra de Ana Bravo, e apontam mais uma vez para as “intenções” que se mostrariam férteis num trabalho sustentado e levado ao seu consequente desenvolvimento. O meu uso do condicional não é retórico, mas a condição suficiente acaba por não se juntar à argumentação. Essa condição é o fundamento.
A mera ausência de figuras femininas é imputável a um preconceito? Sim. Tintin no País dos Sovietes e de Marchando sobre a Lua são “aventuras de temática política e científica onde a mulher nem como figurante tem lugar” (165; no entanto, reportem-se ao estudo de J.P.Boléo, que mostra ser esta uma informação incorrecta). A sua ausência, portanto, é um dado negativo, pois a não-representação é em si mesma uma representação pela negativa, é o mesmo que dizer “menina não entra” (e no clube do Bolinha, a Luluzinha sempre conseguia superar essa proibição falha). É este tipo de preconceitos que persistem na mais comum das linguagens, ou até mesmo em expressões que dizem mais sobre as nossas limitações (nossas enquanto agentes supostamente “inconscientes”, o que é fraca defesa, dessa opressão) do que sobre as dos objectos da nossa leitura. É como quando se emprega a terrivelmente agressiva expressão “frígida” a uma mulher que não responde aos avanços de um homem, que assim depreende ser ele próprio (nós) irresistível. Essa ausência, em Tintin e alhures, espelha uma “estratégia de alheamento à emergência de novos dados históricos” (166). Quando a publicidade da Verbo anuncia a leitura da obra de Hergé como plataforma para que os jovens descubram “o maravilhoso mundo da Banda Desenhada através de aventuras que continuam a resistir à corrosão do tempo e às modas”, e que as aventuras de Tintin “expressam frequentemente os valores da liberdade contra todos os tipos da tirania”, apetece dizer, empregando uma conhecida fórmula: “Todos? Não! Há uma tirania que se mantém irredutível”. E se por “corrosão do tempo” e “modas” se entende a desconstrução feminista, protagonizada presentemente na obra de Ana Bravo, então bem-vinda seja. É verdade que Hergé não o terá feito por ter um propósito anti-feminino, nem sequer seria uma sua preocupação (positiva ou negativamente). Todavia, isso não nos impede de tentarmos a sorte da desconstrução, que poderá ser produtiva em termos de descobrirmos os discursos que subjazem a cultura onde se inscreve uma determinada obra.
Repetindo a modo de conclusão: ao passo que a exposição da estrutura básica, a sua assunção enquanto problemática a debater e combater (a misoginia e questões afins), é aceitável, são as suas generalizações aplicadas para além do território demarcado e sobretudo o método argumentativo que despoletam estas minhas considerações e desconfianças. A desconstrução a que me refiro tem de ser consistente por todos os lados, e algumas das estratégias apresentadas no livro de Bravo são “moles” e caem numa espécie de “mania da perseguição”, isto é, uma construção do discurso pela negativa, em vez de uma construção coesa e cabal da diferenciação, e poderosamente desconstrutiva, como se encontra nos trabalhos de Mieke Bal ou de Kaja Silverman, por exemplo, duas autoras que também fazem convergir uma leitura semiótica com o feminismo aplicado a discursos artísticos.
O “maravilhoso mundo da Banda Desenhada”, independentemente das suas prestações mais visíveis, não apresenta somente uma discursividade monolítica, defensora do status quo, opressiva e preconceituosa. Escuso-me de exemplos concretos, pois o ónus não deveria estar em “provas de defesa”, mas simplesmente num equilibrado conhecimento da multímoda existência deste campo de criação. Existem exemplos actuais de discursos outros no seio deste modo de expressão.
As palavras “justo” e “juízo” estão relacionadas uma com a outra, a primeira procurando a sua maior verdade no equilíbrio do fiel, a segunda na oferta que representa. Um bom trabalho académico ancorar-se-á na amplitude real e actual desses discursos da banda desenhada para prestar um serviço que faça aproximar o mais possível as palavras “juízo” e “justo” uma da outra. A invisibilidade da construção dos fundamentos acaba por ser a perdição de vermos neste trabalho académico essa junção.
Nota: este artigo deve ser lido em diálogo com as breves considerações de José Carlos Fernandes mas sobretudo com as de João Paiva Boléo, em torno desta mesma obra de cunho académico. A leitura da recensão (muito) crítica e contundente e desconstrutivamente analítica deste investigador levou a uma troca de impressões e algumas alterações atempadas a este artigo, que aqui evoco. Muitos dos assuntos a que meramente aponto neste artigo superficial estão explanados claramente no seu artigo. Entretanto, saiu também o artigo de João Ramalho Santos no Jornal de Letras de Agosto/Setembro, sobre esta obra, a leitura do qual aconselho vivamente. E deixo mais outra nota: este ano foi publicado um livro de Pierre Bayard, já traduzido em português e intitulado “Como falar dos livros que não lemos?”. De certa forma, A Invisibilidade... acaba por ser uma espécie de paráfrase dessa questão: “Como fazer um trabalho interpretativo sobre signos não-presentes ou não-apresentados?”
Nota: Agradecimentos a João Paiva Boléo, Sara Figueiredo Costa, Domingos Isabelinho, Maria Filomena Molder e Miriam Sampaio. Muito ajudaram a pensar e a escrever este artigo, quer o tenham sabido quer não.

3 de setembro de 2007

Yôrahop. Ang Kô (Sé Manhwa Check)


Uma das características mais permanentes de um certo fazer da autobiografia da banda desenhada é um certo grau de autocomiseração. Como não pode deixar de se esperar, essa qualidade poder-se-á tornar, de acordo com os graus verificados, fonte de irritação de um público menos atreito a tais ensimesmamentos; em alguns casos, o equilíbrio interno dessa qualidade, que se deve reconhecer com um espectro largo, pode levar à criação de textos de banda desenhada merecedores de uma atenção mais pausada.
A autocomiseração leva a dois gestos obrigatórios aquando a sua transformação ou transfiguração em obra de arte (entendido aqui num sentido de factura, não de uma qualidade que se atinge ou falha): a capacidade de se humildar a si mesmo, de aperceber e declarar a sua própria marginalização, pequenez, fragilidade, por um lado e por outro, a fortaleza de encontrar uma via de esperança ou mesmo a conquista da redenção. Há autores que se movem somente num espírito de ironia: apequenam-se a si mesmos com tal violência que qualquer momento contrário a esse movimento ganha contornos de salvação. Em graus diferentes, Crumb, Kominsky, Joe Matt, Brunetti, são autores que perseguem essa via. Outros preferem essa via confessional, quase crística, que os absolve pela distância que colocam entre o passado (aquilo que está representado na obra como um “foi”) e o presente: Chester Brown e Craig Thompson são dois exemplos maiores. Não pretendo aqui esgotar o espectro nem sequer estabelecer uma tipologia desta possível leitura. Apenas estabelecer um espaço de entendimento de diferenças. Há uma outra via, a que me referi na abertura deste texto. Um equilíbrio. Nem apresentando um retrato absolutamente demolidor da própria pessoa, nem estabelecendo distâncias de um passado que se considera “ultrapassado”, nem procurando uma absolvição final fulgurante. Apenas criando um retrato que se pretende genuíno, senão mesmo “honesto” (mas que nos levaria à questão da relação entre a obra de arte e a verdade: em última instância, questão inaveriguável). Mais uma vez, em graus diferentes deste terceiro espectro parcial dessoutro espectro maior indicado, alguns nomes: Liz Prince, Jeffrey Brown, Lewis Trondheim e, de modos mais complexos, mas aqui contíguos, Fabrice Neaud, Edmond Baudoin e David B.
A autora sul-coreana Ang Kô (( pseudónimo de Choi, Kyoung-Jin, e que surge nos diálogos da protagonista com as restantes personagens) inscrever-se-á nesta terceira facção.
Este livro, cujo título significa simplesmente "Dezanove" (dos anos de idade), reúne na totalidade as histórias, todas curtas, que a jovem artista criou para as mais variadas publicações sul-coreanas votadas à banda desenhada ou à cultura mais contemporânea, urbana e alternativa nesse país. Assim sendo, não será surpreendente encontrar, ao longo das páginas, com as histórias dispostas cronologicamente, encontrarmos aqui um pequeno percurso e desenvolvimento estilístico da autora. É sobretudo no aspecto gráfico, de uma progressiva descontracção em relação ao desenho, que se verifica essa “evolução”. Mas desde as primeiras histórias nos apercebemos de que o verdadeiro objecto de contenção e desejo de Ang Kô é a batalha que se dá todos os dias, não contra as contrariedades que se nos apresentam, mas contra a contrariedade que nasce em nós em relação ao que nós entendemos como obstáculos. Por outras palavras, é um antídoto simples em relação à fórmula “o inferno são os outros” (compreendendo-se que esta não é uma mera fórmula e que as suas implicações profundas podem ser exploradas de maneiras multifacetadas) através de um outro adágio, talvez mais verdadeiro: “o inferno, os obstáculos, as contrariedades, as contradições, os constrangimentos, criamo-los nós e a nós apenas nos pertencem”.
Nem todas as histórias são autobiográficas, mas a cada nova entrega e história, a autora aproxima-se de si mesma enquanto objecto de trabalho e exploração. Há como que uma urgência, de resto natural em qualquer acto criativo, de expressão, mas que talvez se revela das formas mais claras nestes territórios da banda desenhada, em o autor se colocar a si mesmo no centro da análise existencial a que se entrega, em que a sua vida se torna o texto a descortinar, o mistério a deslindar, o caminho a tornar mapeável pelo segundo texto que então se ergue, se escreve, se desenha. Talvez esta disposição seja apenas uma tendência, ou um “facilistismo”, como poderiam acusar, depreciativamente, alguns sectores de crítica. Mas talvez se deva igualmente pela banda desenhada colocar no centro do palco uma equação complexa de auto-representação, que passa pelos dois domínios, o actancial (narrativo, verbal, estruturado enquanto continuidade) e o visual (o figurativo, o auto-retrato, a auto-representação do modo mais literal e manifesto possível). Não é uma questão de superioridade (nem inferioridade) em relação à literatura (pela ausência, nesta, da imagem) ou do cinema (pela obrigação da filtragem multi-pessoal, económica, neste): trata-se tão-somente de repartir e de redistribuir de um modo que lhe é particular as dificuldades e potencialidades de cruzamento dessas formas de auto-representação.


Desenha-se o próprio corpo, coloca-se esse corpo numa função actancial, há como que um desprendimento desse seu próprio eu transformado em marioneta que mimará, de novo, os movimentos cumpridos anteriormente.
Ang Kô mostra-se quase sempre em contraste com outras personagens, à primeira vista superiores a ela (em termos de sucesso social, confiança perante os outros, estádio de felicidade aparente) ou, num caso, inferior (uma louca). Em todos os casos, o propósito é, apenas através dos factos mais banais, e jamais através de uma catástrofe – no seu sentido literal, de reverter as expectativas – ou de uma consideração fora e acima da narrativa – como quando através de uma voz narradora exterior à diegese que se desenrola -, mostrar como essas hierarquias são falhas. Como os pratos da balança são sempre diversos e as perspectivas se podem inverter por um simples desviar do fiel. Noutras histórias, a autora centra-se antes na sua relação com as suas pulsões e incapacidades de trabalho, e com as soluções facilitistas que estabelece para garantir o cumprimento das primeiras e ultrapassar as segundas: jamais funcionam da maneira esperada, mas sempre lhe revelam modos de satisfação existencial. Outras ainda, finalmente, e as mais tocantes delas, são pequenos retratos do seu relacionamento com as criaturas que lhe são mais próximas: a avó e os cães presos no exterior do que parece ser um ferro-velho. São criaturas frágeis e não se percebe, pois o que se deseja confundir é essa mesma relação, se a proximidade da personagem Ang Kô destas criaturas se deve à fragilidade comum entre eles, ou se é a fragilidade que é suscitada pela proximidade. Isto é, as relações de causalidade passam a ser indiscerníveis e, assim, indissociáveis de ambos os termos. Um implica e identifica-se com o outro.
A Coreia do Sul, como outras sociedades ditas avançadas, prezam de um modo cego e ávido esse fantasma chamado “juventude” em detrimento de qualquer outra etapa da existência, as mais das vezes em detrimento dessas outras etapas. Os velhos, ao contrário do que nos querem fazer crer as mistificações do “Oriente”, não têm lugar na acelerada sociedade. Os cães não vivem na mesma relação de companheirismo, usual e pelo menos superficialmente, que se cultiva entre os europeus. Ang Kô coloca-se assim do lado dos “fracos”, dos que acabam por comer sozinhos, dos que dormem no frio, dos que ficam “lá fora”. É com eles que as defesas dela caem, é com eles que pode mais sorrir, chorar, ficar chateada com coisas tão estúpidas como a avó abrir a porta enquanto ela está na casa de banho porque o “telemóvel está a mexer”. Aborrece-se com isso, é certo, mas com todas as outras pessoas nem essa paixão fina do aborrecimento emerge. Apenas uma indiferença mútua que expressa o profundo desinteresse pela humanidade autêntica.
Uma das razões que leva a muitos “leitores de banda desenhada” não apreciarem este tipo de ficções, auto-ficções e auto-retratos prende-se com o facto de fazerem prostrar o espírito humano no seu mais humilde traço, e não se render de modo algum a aspectos que remetam às possíveis fantasias que alienam dessa natureza verdadeira. Estas narrativas ou retratos não “excitam”, não “prendem a leitura”, não “abrem novos mundos”. Reflectem, tão simplesmente, a nossa mais banal das respirações. O que esses leitores parecem não captar é que conseguir uma reflexão dessa natureza é já em si um gesto quase hercúleo, pois é necessária uma equidistância do que melhor sabemos e somos e do que mais desejamos projectar. Equilíbrio sempre difícil. Curiosamente, jamais se acusam autores do cinema ou da literatura, que tenham mergulhado no que erroneamente se chama de “realismo” (porque inatingível no seu absoluto ou essencial, ou porque mesmo inexistente), de falharem em construir discursos da magnificência do maravilhoso ou do fantástico. Talvez ainda se exerça sobre a banda desenhada uma exigência limitativa, uma proibição mosaica de algum tipo em não poder representar o ser humano à imagem... do ser humano. Quiçá esses leitores e sectários das leis mosaicas da banda desenhada “tradicional” falhem igualmente em encontrar, considerar e degustar essas outras obras de cinema e literatura que cumprem esse campo, e logo exigem da banda desenhada tal comportamento, exponenciando nesta aquilo que já propõem como desejável nas outras esferas expressivas.
A redenção estética pode nutrir-se de vários componentes e expressar-se de vários modos. Ainda que a mais famosa catarse se vislumbre somente pelas mais altas comoções e paixões humanas, séculos e milénios da exploração literária e artística e dezenas de anos de banda desenhada mostraram, e permitem, que se procurem outros caminhos que a tornem tangível. Podemos reconsiderar a história da banda desenhada de vários modos, mas uma perspectiva consensual o suficiente aponta para que o género autobiográfico da banda desenhada se tenha formado sobretudo após os anos 60, e em especial nos Estados Unidos e depois em França. Temos portanto cerca de quarenta anos de uma busca permanente e reinvenção de vários parâmetros para, não criar, mas ir criando obras semi ou autobiográficas em banda desenhada com uma presença sólida. E tem-se conseguido. Não direi que o livro de Ang Kô seja uma pedra de fecho, nem sequer um ponto de viragem. Mas é seguramente mais uma pedra no meio do caminho que integra esse mesmo caminho.
Nota: existe uma edição recente em língua francesa desta autora sul-coreana, nas Éditions Phillippe Picquier. Trata-se de Jindol et moi. O nome da autora está grafado como “Ancco”. De acordo com as notas dessa edição, e tendo em conta que “Dezanove” reúne a totalidade das suas obras, presumo que seja o mesmo material em ambas as edições.
Nota 2ª: agradecimentos a Yunseon Yang, pela tradução. E tudo o mais.