29 de dezembro de 2008

As Ilhas Desertas. Mattia Denisse (Graça Brandão.Porto)

[texto corrigido ]Entre os dias 8 de Novembro e 31 de Dezembro de 2008 foram expostos na galeria Graça Brandão, a do Porto, uma série de desenhos do artista francês Mattia Denisse, exposição intitulada As Ilhas Desertas.
A razão pela qual desejo falar neste espaço destes desenhos prender-se-á menos à perspectiva do desenho enquanto disciplina autónoma das artes visuais, sobre a qual se exerceriam diferentes instrumentos de análise e discussão, do que à promessa narrativa que contêm e que nos permitem resgatá-los, ou pelo menos, aproximá-los, do nosso território, mácula dendrítica que cresce sem cessar.
Os desenhos têm títulos individuais, mas estes não estão expostos junto aos mesmos, e a uma primeira abordagem não parecem ser agrupados de forma especial ou diferenciada, com a única excepção de, sendo vários, serem distribuídos nas várias paredes da galeria. Não há informações textuais expostas, mas há um texto de apresentação de Maria do Mar Fazenda. Todavia, se os observarmos atentamente, e se nos permitirmos a um ricochete dos elementos internos a cada desenho sobre os dos restantes, fazendo com que caminhemos de trás para a frente e façamos uma leitura completa e variadamente cruzada, aos poucos identificamos esses elementos e poderemos chegar a uma ideia dessa “promessa narrativa” anunciada.
Denisse tem trabalhado entre França, Portugal e Cabo Verde nos últimos anos, sobretudo no campo da instalação, que, no seu caso, são verdadeiramente ambientes que assaltam todos os sentidos, e que empregam toda a sorte de materiais, ditos nobres ou não, perenes ou efémeros, mas jamais tombando num breve barroco, antes procurando a instauração de um espaço vincadamente marcado e divergente daquele que nos pauta os dias. Nos últimos tempos, para além de uma colaboração estreita com o duo João Maria Gusmão e Pedro Paiva (que menos tem a ver com co-autoria e mais com cumplicidades e afinidades), dedica-se à indisciplina do desenho, inscrevendo figuras e ideias e impressões sobre papel, com lápis ou grafite, carvão negro ou cores, pesadas estruturas ou ténues fantasmas. Os desenhos que compõem As Ilhas Desertas parecem manter-se num registo idêntico, sobre papéis pardos, usando grafite leve, aqui com uma trama maior para sombrear as figuras, ali deixando apenas os contornos delineados, numa ou outra ocasião inscrevendo uma frase, que pode ser mais ou menos apagada, e que tanto valerá de título, como de comentário enviesado, como de enigma.
Não há propriamente nenhuma ordem para observar ou ler estas imagens. Não se tratam de sequências. Todavia, observamos repetições de desenho para desenho: uma personagem é visível em todas elas, um homem, que se poderá depreender ser o próprio artista. Auto-retratos, ou melhor, a colocação de uma representação do seu próprio corpo enquanto personagem, actor ou função narrativa no interior de uma cena.
As repetições são da ordem do espaço: interiores e exteriores, estes agregando-se ora em densas e húmidas florestas ora em palcos secos e vulcânicos. Numa primeira instância, são esses mesmos espaços, com referentes reais, que se agregam as séries diferenciadas que se apresentam, ou melhor, na terminologia do próprio autor, “ciclos”, não só por se tratarem de corpos imbuídos dessa promessa narrativa na qual insistiremos mas por poderem vir a receber, no futuro, mesmo que apenas potencialmente, novos desenhos, novas peças nos seus conjuntos, portanto a considerar abertos. Esses ciclos são o das “conferências”, o das “ilhas desertas” propriamente ditas, e o dos “engramas”. O que empresta o título a toda a exposição associa-se à experiência que Denisse teve nas ilhas de Cabo Verde, durante um período em que desenvolveu trabalho local, colaborações com artistas locais e internacionais e uma relação específica com o espaço, não só do ponto de vista geográfico, como também geológico, mítico e memorial. Essa relação mnemónica com um espaço torna-se ainda mais clara no terceiro ciclo, os engramas, nos quais se constroem referências directas e figurais aos bosques que rodeavam o local da infância do artista. Se bem que engrama seja um termo complexo, o qual pode ser visto enquanto “traço físico da memória”, isto é, uma marca deixada no cérebro por uma qualquer memória, retornando-nos a imagens mecanicistas que nascem em Platão (a tabuinha de cera) e desenvolver-se-ão ao longo dos tempos com Descartes (o pano furado por agulhas), Freud (o bloco mágico) e Warburg (os engramas propriamente ditos), poderemos entender em Mattia Denisse uma sua aplicação, não menos complexa, mas expressa por um dispositivo simples. Em 1863, o inventor Étienne-Jules Marey melhorou o esfigmógrafo, transformando-o num aparelho portátil e aplicando-lhe um dispositivo que “traduzia” as pulsações em traços gráficos no papel. A invenção foi importante e seria uma chave nas disciplinas médicas, mas na verdade, no que diz respeito às artísticas, há muito tempo que existia um instrumento capaz de transformar as mais subterrâneas e profundas das pulsações e pulsões humanas em marcas gráficas. Esse instrumento, essa máquina chama-se desenho.
Ora a revisitação da infância nos “engramas”, no qual o artista se representa como que cumprindo pequenas brincadeiras infantis que talvez tenha feito na realidade, há muito – brincadeiras que têm sobretudo a ver com a fundição, o desaparecer, do corpo humano com o que o rodeia, imitando os animais ou as plantas -, encontra no desenho uma sua perfeita expressão. A escolha de margens bem delineadas em torno de cada desenho, ou a ausência de profundidade dos espaços, como que isolando a cena central e a personagem num bloco fechado de espaço, torna cada um desses desenhos numa máquina singular, num elemento acabado, numa marca consistente e controlada: numa palavra, num nítido engrama. As acções podem ainda ser vistas de outro modo, sobretudo aquelas associadas às “ilhas desertas” ou às “conferências”: tratam-se de estudos para instalações ou performances, mesmo que jamais venham a ser concretizadas enquanto tal, uma vez que o são já, suficientemente, ali, no papel, naquela cena representada (se fossem de facto "estudos", recaíriam numa categoria bem diferente, na qual se poderiam encontrar os estudos de Rebecca Horn, por exemplo). Se numa instalação o espectador é convidado a penetrar e a construir as suas próprias narrativas (e as de Denisse criam de facto um ambiente circundante e invansivo), ou numa performance a uma espécie de diálogo cara-a-cara com o artista, nas “conferências” o artista surge enquanto marioneta de si mesmo, como que dirigindo-se a um público que está do outro lado da cena, da folha de papel. As conferências têm todas nome, tema, objecto de estudo, mas é como se fosse alegoricamente que esses nomes são dados para, depois, associando-se os objectos e as acções visíveis (apagar uma sexta vela ao lado de uma caveira humana poderá levar-nos a uma revisitação da vanitas?), criarmos o guião e o núcleo de significados por nós mesmos. Pouco importa se estas acções (instalações, performances, conferências, lições) “falham” ou se “vingam”. Há sempre uma grande margem para um divertido erro, uma interrupção, ou um abortar: o mais importante é que a ideia de o fazer já tinha sido iniciada, e é nesse movimento que importa encontrar a força dos desenhos (e desejos) de Mattia Denisse.
Como afirmámos atrás, o artista trabalha numa espécie de afinidade criativa e intelectual com o duo dinâmico J. M. Gusmão e O. Paiva. Não se trata de influência unidireccional, ou de precedência de um (uns) sobre o outro(s). Trata-se de um caminho paralelo, feito de leituras e descobertas e discussões comuns, que passam por Pascal e Montaigne, V. Hugo e R. Daumal, entre outros literatos e pensadores. Gusmão e Paiva são como que uma espécie de Bouvard e Pécuchet das artes contemporâneas, no sentido em que procuram ir aplicando toda uma sorte de disciplinas e saberes sobre a criação artística (que não tem limites em termos de matéria ou modo de expressão, passando pela fotografia, instalação, escultura, filme, desenho, plano de performance, reconstrução do espaço de inscrição, etc.) à medida que os exploram. O aspecto caricato e de falhanço permanente das personagens de Flaubert está presente no sentido em que muitas das ideias apresentadas revestem-se de um cómico burlesco, espatafúrdio, absurdo ou mesmo tresloucado: homens que tentam abrir uma rocha com a força dos punhos, um hipnotizador de cordas, a mudança do eixo terrestre através do princípio da alavanca, a suspensão de uma torre de troncos... Não obstante, a promessa, o conceito, a ideia de que poderão vingar esse projecto está logo lá, e o maravilhoso e o fantástico têm ambos um lugar predominante nas narrativas que apresentam. Denisse participa de um mesmo ambiente e princípio estruturador. Não nos aperceberemos jamais o que cozinha aquela personagem dos desenhos, o que espera capturar na floresta, o que esculpe, o que monta, o que observa... Todavia, a promessa do cozinhado, do capturado, do esculpido, do montado, do observado está perenemente presente nos desenhos.
O título em si (o geral) poderá remeter a um dos mais importantes filósofos do século XX, Gilles Deleuze. A maior lição da leitura de Deleuze deveria ser a da total liberdade, criativa, filosófica, de apreciação, de acção e de crítica. Infelizmente, muitos dos seus compulsadores atentam à sua memória transformando-o numa espécie de sebenta de conceitos, a aplicar, policialmente, sobre esta ou aquela realidade (mormente artística, o que aumenta a gravidade do acto policial). A “ilha deserta” em Deleuze é a semente que lhe permitiria pensar sobre a diferença e a repetição (exposto e desenvolvido no livro com esse título). “Repetition”, em francês, reveste-se do sentido teatral de “ensaio”, e aí se notará logo à partida onde se prevê a diferença na mesmidade. “Causes et raisons des îles désertes” é o belíssimo texto que se encontra em L'île déserte et autres textes, etc. (Minuit), na qual o filósofo nos mostra como uma ilha é sempre deserta, mesmo quando habitada. Mattia Denisse, populando cada um dos seus desenhos (cada uma das “ilhas”?) com um corpo que é o seu, quererá não torná-las habitadas mas acentuar o quão elas desertas são, em contraste com aquela figura actuando nelas. Os elementos que vemos repetidos, os actos que parecem ser variações de um mesmo jogo, brincadeira, acto criativo, exacerbam essa posição. Apesar da identificação de três “ciclos” distintos, as coisas entrosam-se entre si – uma conferência num espaço externo, a construção de uma instalação no espaço da infância rememorada, a ideia de uma lição na ilha. Os ciclos circulam entre si, desenham espirais cujos braços se podem cruzar várias vezes e a distâncias variadas.
Uma anedota curiosa, respeitante à exposição, ou melhor, à sua montagem, deve-se ao facto dos desenhos, nas suas molduras, terem sido expostos “à francesa”, isto é, a uma altura média que ultrapassa a da linha de visão mediana dos portugueses. Resultado: as imagens encontram-se demasiado altas para a maioria dos espectadores. Mas o problema, se é que o é, não se cinge somente a uma questão física, a uma limitação de visibilidade e proximidade; é que essa altura modifica a relação de proximidade ontológica entre o espectador e o desenho. Walter Benjamin escreve em Pintura e Desenho. Sobre a Pintura ou Sinal e Mancha que um desenho muitas vezes exige ser visto horizontalmente, “sobre uma mesa”, revelando-se assim “o corte transversal de certos desenhos”, corte o qual é “simbólico, contém os sinais”... O sinal existe por oposição à mancha, e devemos entendê-lo como algo de externo, que é impresso sobre uma superfície, que pode ser tudo. A linha do desenho “designa a superfície” e, a um só tempo, “chama a si, como seu fundo, a superfície”. Daí que haja como que uma exigência de ver alguns desenhos, categoria ampla na qual recaem os de Denisse, de os ver de muito perto, horizontalmente, em um objecto manuseável. Usualmente chamar-se-á a esse objecto livro. Se a montagem desta exposição tivesse exigido aos corpos uma espécie de leve torção e abaixamento, que por sua vez levasse a uma proximidade, menos se estabeleceria uma contemplação que uma leitura. Nem todos os desenhos exigem a mesma proximidade: sensivelmente ao mesmo tempo, uma outra exposição (biface, poderemos dizer) de Francisco Tropa apresentava-se na galeria Quadrado Azul (Assembleia de Euclides (final)). Terá a ver com a matéria (carvão sobre papel, frottage, papel “esculpido”)? Terá a ver com a articulação de mais de um projecto expositivo (toda a Assembleia, longo projecto)? Terá a ver com uma obrigatoriedade de ver a arte deste ou daquele modo? O passeio a que a Assembleia convida é diferente do folheamento que se pressupõe nas Ilhas de Denisse. Acentuando esta exigência de proximidade, o artista sente a necessidade em editar um livro com estes e outros desenhos, reescrevendo-os nesse objecto, nessa nova exposição (não no sentido banal da palavra, galerístico ou museológico), mas enquanto instauração da nova aura, ainda segundo Benjamin. E estuda presentemente uma forma de o vir a cumprir. Lá então, cumprir-se-ão melhor as leituras d’As Ilhas?
Nota: agradecimentos a Mattia Denisse, pelos esclarecimentos e as imagens. Este texto tinha alguns erros factuais, fruto de distracções e pressas, corrigidos entretanto.

19 de dezembro de 2008

Die Hure H wirft den Handschuh, Anke Feuchtenberger e Katrin de Vries (Reprodukt)

Terceiro volume das sortes da personagem “Hure H”, que, segundo o modelo das traduções internacionais, nos permite traduzi-la por “Puta P”, o título em alemão (“atirar a luva”) implica de imediato a ideia de um conflito, de dar início a um desafio ou duelo. A expressão em alemão deveria contemplar a palavra Fehdehandschu, em português “manopla”, e aponta para, mesmo historicamente, um duelo pessoal entre cavaleiros. Só se poderá especular a razão pela “dessacralização” ou “desmilitarização” da palavra, que tanto se poderá relacionar com uma assunção de um sentido mais feminino, mas não menos poderoso por isso, e não se trata aqui de um exercício fácil de associar duas autoras a esse papel mas sim uma leitura próxima do trabalho de ambas, como se abrirá possibilidade de outras interpretações mais obscuras e psicologizantes... Lembremos, por exemplo, essa “novela em imagens” de Max Klinger, Ein Handschuh, de 1881 (por isso, anterior aos escritos mais marcantes de Freud).
Este livro apresenta três histórias ou três episódios separados, cada qual com o seu título – Licht Turm (“Torreão de luz”), Kohlen Hof (“Pátio de carvão”), Ball Saal (“Salão de baile”). São narrativas particulares, enclausuradas sobre si mesmas e relativas a um relativamente exíguo espaço no qual se desenvolverão os acontecimentos, mas que não deixam, naturalmente, de deixar abertos caminhos que nos permitem mapeá-los entre si, tal qual mapeamos os livros uns com os outros. Cada episódio institui o seu espaço, o seu tempo, assim como antagonistas particulares à Puta P, mas acima de tudo, proporciona uma diferente presença da protagonista: ela surge mesmo com figurações diferentes, avatares, personalidades ou facetas da sua personalidade, graus de força diferenciados. No primeiro “conto”, a Puta P surge enfaixada como uma múmia, no segundo é uma mulher expedita, de cabelo à Madalena Iglesias, e no terceiro surge como uma espécie de viúva, de negro, para dar lugar a uma virginal noiva. Tudo isto é descrição mesclada de interpretação. É impossível fazer uma descrição que não opte desde logo por um qualquer papel da Puta P.
Em Licht Turm, a Puta P aproxima-se de um imenso farol, no qual se encontra o “Grande Homem Moderno”, que parece uma mistura de oficial militar e médico. A linguagem que a voz narradora emprega, repetida ipsis verbis pelas personagens, como num conto tradicional ou, noutra perspectiva, como se se tratasse de um ritual esotérico, colocam-nos numa espécie de núpcias na qual o sexo é indicado, mas nunca revelado. O controle do farol revela apenas as sombras adensadas no alto mar, mas, parece, nada mais. O homem expõe a Puta P ao vento, e eis que as suas formas começam a mudar, ganhando pesados seios, e barriga. Uma gravidez à la Danae, por Zeus.
A cena do parto é a mais terrificante e dilacerante de todo o livro, se bem que as suas consequências se mantenham depois no resto do livro. A Puta P retira-se da companhia do homem, recusa-a mesmo, para poder dar à luz. Estando perto do mar, sob a sombra da torre, é recebida pelas águas para trazer ao mundo a criança que terá a dar. A associação entre a maternidade e a água é por demais óbvia para a explicitar através de princípios, uma vez que não são princípios, mas uma analogia antiquíssima, inevitável, poderosa. O que se torna extraordinário neste episódio são as suas notáveis variações: uma das mamas como que murchada e mergulhada na água, como se estivesse já seca, como se nada prometesse, ou como se quisesse ela mesmo absorver a matéria da água…; uma vinheta mostrando dois pedaços do que pareceria um só corpo rasgando-se, enquanto metáfora da separação de dois seres, da sua violência, ou então representação directa de uma ruptura que começa nesse momento (“tu não és eu”); a observação e presença das cabeças de animais, um bico de ganso, um focinho de peixe ou talvez o rosto do bebé emergindo do útero, relembrando a teoria de Haeckel de que a ontogenia recapitula a filogenia, ou talvez apontando para a ainda possível fraternidade entre os animais, os sentientes, a comunidade dos vivos, da biosfera (à vossa escolha), expressa no instinto, na proverbial ferocidade maternal, comprovada nos episódios seguintes…
Seria tentador procurar estabelecer uma ligação directa entre este evento na vida da personagem e na gravidez real da artista ou da escritora, mas além dessa informação pessoal não nos dizer respeito, o que mais importa é que se trata de uma experiência nova e real da Puta P, essa sim, claramente visível e significativa.
Pois é isso o que mais interessa, a vida da Puta P. a expressão inglesa “the plot thickens” serviria eventualmente de signo a este livro, mas o que se adensa não é tanto a trama narrativa (plot), como se estivéssemos perante uma novela ou romance que procurasse a complexidade psicológica das suas personagens através da complexidade da sua estruturas narratológica. Todos os caminhos, afinal, vão dar a Roma. O carácter de staccato lacónico (todas as pranchas apresentam invariavelmente duas vinhetas idênticas), em que as narrações recitativas e as falas e réplicas são deixadas ao mínimo (e com os ciclos de repetição e variação já mencionados), como se se tratasse de uma moderna forma de Märchen, o afunilamento das cenas e seus componentes numa composição quase beckettiana, é algo que se mantém desde o primeiro volume. Mas se na primeira “aventura” (a palavra não é descabida, ainda que a anos-luz do seu habitual uso na banda desenhada) a Puta P surgia como uma criatura cândida, algo perdida no mundo em que as suas demiurgas a haviam colocado, e em busca de um homem, de uma espécie de validação e protecção, há algo mudado aqui. Algo se adensa, sem dúvida.
Em primeiro lugar, a matéria visual: os desenhos surgem como que enegrecidos, a presença e difusão do carvão no papel aumenta, as figuras ganham mais pormenor, definição, volume, sombras, e, por essa razão, ganham uma configuração mais plástica, moldável, quente, vivaça, arredondada. Essa plasticidade e adensamento, entrelaçados (recordemos a indissociabilidade entre forma e conteúdo, apenas destrinçáveis em termos abstractos e analíticos), verifica-se de modo claro nos avatares que a Puta P percorre no interior deste livro (e, em retrospectiva, em todos eles), mas acima de tudo, na cena do parto, em que a plasticidade transita por todos os seus estados, desde a mais líquida das substanciações à mais seca das quebras.
Apesar de vermos o parto, não é revelada qualquer criança nesse primeiro episódio, terminando este com a Puta P vogando, como um barco de vela à banda (a mama murcha, ou sugando a água) em direcção a uma cidade. No conto seguinte, a Puta P surge com um bebé ao colo, vestida de negro, de cabelos compridos, e em busca de um homem, num pátio: parece que este lhe fizera uma promessa, e é tempo de a cobrar. O conflito é directo, físico, mistura da última foda de raiva entre dois desapaixonados e fustigação higiénica. Quando a protagonista atravessa a cidade, passa ao lado de várias mulheres, atarefadas a limpar escombros e entulho das ruas, recordando as Trümmerfrauen que reconstruíram Berlim depois dos bombardeamentos da 2ª Grande Guerra. Será esta uma cedência à história recente da Alemanha? Será a busca de uma sororeidade possível, a redistribuição de um papel de poder entre essas mulheres e esta (Merkel estará na equação?)? Será “cedência” a palavra certa? O desafio da Puta P em relação aos homens encontrara o seu epítome no parto. Enquanto momento de violência solitária, mas por isso vitória solitária. Enquanto cissiparidade do eu, mas por isso multiplicação da força (não sabemos o sexo da criança). Enquanto forno da matéria, origem indizível do ser humano, emergência do caos, da morte (do antes/nada), do oceano sem fundo. Transição e metamorfose. No pátio, a Puta P observa as larvas num vaso, prestes a se transformarem em borboletas, nas larvas que ocuparão parte do corpo da criança. Novo elemento de metáfora, não-metáfora, ligação directa? Os animais surgindo do negro céu, do negro oceano, depois do negro do olho (terceiro episódio), do negro do carvão, serão eles metáforas, ecos ou reflexos desses nascimentos (o da criança, o da nova Puta P)? Porque não vimos a relação sexual, o momento da fecundação? Porque imaginamos nós um vento fecundador, como os das éguas da Ibéria? Zeus é uma boa imagem? O homem moderno, com aspecto de doutor militar, será um demiurgo que não suja as mãos? Porque não vemos o recém-nascido no episódio que ao parto diz respeito? Está sob as águas, submarino? Este acumular de perguntas, este cruzar de momentos do livro, não se acumulará ao ponto de subitamente desenhar uma chave, mas continuará a multiplicar-se até à dissipação, à indeterminação, à máxima potência do sentido: uma potência da potencialidade, espelhada nas águas negras do oceano, no carvão do pátio, no olho do salão.
No último episódio, a Puta P passeia uma cadeira de rodas na qual está sentado um símio. Passeiam-se por uma cidade moderna. O símio (o sexo é indeterminado) é deixado numa jaula, num estranho zoológico. Num momento que não entendemos em que relação temporal está com esses outros eventos, a Puta P, de véu negro como uma viúva, entra num balneário, onde espreita desenhos delicodoces de bambis de frases herméticas. Por sobre a cidade, uma outra personagem feminina observa toda a cena, numa consola de tecnologia por vir. A ordem é dada, a Puta P entra no grande salão, mistura de pista de desportos radicais, salão de jogos electrónicos, mas descrito como de “baile”. Nada permite ver qual dança estará ali reservada. A Puta P passa a vestir-se de branco – noiva? vestal? virginal de novo? alguma vez o havia deixado de ser? Leva um pano branco. Sobe a um olho gigante e parece ter de limpá-lo. No reflexo da íris surge um rosto, pouco determinado: símio, criatura marina, bebé, reflexo da Puta P. Tudo?
A mulher que havia ordenado a Puta P através da maquinaria pairando sobre a cidade parece confirmar que aquele local lhe pertence, ou que aquela tarefa é o seu papel, ou que finalmente chegou onde deveria chegar? Sobre a superfície de um olho. Talvez imagem reflexo do nosso. O lugar da Puta P, então, em nós mesmos, no salão de baile da leitura.
De acordo com um dos editores, presume-se que este seja o último volume da Puta P, mas tendo em conta o historial da colaboração entre a escritora Katrin de Vries e Feuchtenberger (além desta personagem, trabalharam também em Die Kleine Dame), só a nossa futura atenção confirmará que outras respirações virão. Se é aqui que encontramos a cúspide do trajecto da Puta P, as direcções que dela se despedem são, afortunadamente, múltiplas. Se novos traços virão, será uma outra Puta P quem virá.
Nota pessoal: como sucede em relação a algumas obras de arte, e ficcionais, confundimos bastas vezes a vida das personagens com a existência real de uma pessoa. E a pulsão escópica suscitada pela sua presença contínua na cena sob o nosso escrutínio atencioso permite-nos uma proximidade e intensidade nada natural, completamente alheia ao que se passa no “mundo real”. Todavia, a intensidade é real, ou melhor, é a sua ficcionalidade que lhe dá a sua particular intensidade. No cinema é claro que isto acontece, e o modo como acontece, para mais no interior dos vários star systems, em que os actores e actrizes muitas vezes primam em atributos de beleza considerados padrão, e assim cumprem melhor o papel de objecto de desejo. Na banda desenhada, pode acontecer, acontece, existem personagens, principalmente femininas, desenhas e construídas de modo a suscitar essas pulsões e excitações, as mais das vezes superficiais, é certo. São as pin-ups ou as mulheres de papel sedutoras, como pouca ou nenhuma densidade psicológica (as dos Manara, dos Serpieri, mas também dos Juillard e dos Bourgeon). De quando em vez, porém, surgem personagens que ganham um carácter erótico total por caminhos arrevesados. O próprio erotismo deve ser aqui entendido no seu sentido primal e arcaico grego, de luz e força motora do universo, se bem que parte dessa expressão possa ser encontrada na paixão, no amor carnal, no desejo sexual. A Puta P é uma delas. Aqui declaro a minha paixão, o meu amor, pela Puta P. não se trata de um jogo de imaginação em que se pensa alguma vez seduzir essa pessoa para lhe demonstrar as nossas capacidades de amante, como sucede tantas vezes nas fantasias masculinas (“Se a Scarlett Johansson me conhecesse…”, por exemplo); trata-se antes de uma estranha e incomensurável sensação de não merecer amar a Puta P, do seu indómito ego feminino revelar-se enquanto um poder terrivelmente esmagador e implacável que me faz fantasiar, enquanto homem, desejar alguma vez merecer a sua complacência. Todavia, sei que sempre falharei…
Nota: agradecimentos a Christian Maiwald por alguns esclarecimentos.

16 de dezembro de 2008

Embroidered Muscles. André Lemos (Opuntia)

Uma primeira abordagem do trabalho de André Lemos poderá levar à ideia de que se trata de uma obra “obscura”, no sentido banal da palavra, isto é, em que o seu suposto sentido unívoco não é de fácil interpretação e recuperação por estar soterrado numa pilha de escombros que dele desviam. (Uma segunda atitude é dizer que “não tem sentido nenhum”, mas o próprio esforço a seguir para provar isso demonstraria um sentido). Todavia, bastará que o leitor, ou espectador, ou folheador destas publicações (ou todos os papéis a um só tempo) se entregue a uma disponibilidade sensorial e sensitiva para perceber que se está perante algo que se revela afinal simples, directo, e interpretável de um modo seguro e fácil se se seguirem as instruções dadas. Embroidered Muscles apresenta as suas instruções de modo claro. “Look closer/You’ll find it” é a primeira frase encontrada nesta série de imagens, uma por página. Olhemos de perto, então, na ideia de virmos a encontrá-lo, ao sentido.
Numa mais clássica publicação de banda desenhada, de séries de caricaturas ou de ilustrações organizadas segundo algum princípio lógico-semântico, o acto de a folhear, de virar cada uma das páginas, coincide com o da construção, nítida e cumulativa, da narrativa apresentada. O acto em si torna-se subsumido ao da leitura, logo, dissipa-se, torna-se invisível. As publicações de André Lemos, tal como a de muitos outros artistas que fazem assim desta liberdade metastásica a sua liberdade, tornam o acto do folhear visível, destacado, forte de maneira a que assume toda a importância. Os livros de Lemos tem menos uma estrutura do que uma textura (aproveito-me aqui de uma ideia de Henri Van Lier), e esse folhear apenas sublinha essa mesma natureza textural. A ordem das imagens e dos seus elementos constituintes não é, por isso, importante, uma vez que este livro obriga sempre a uma sua releitura (é quase como se a sua leitura não fosse possível, e apenas uma segunda experiência passasse a dar-lhe acesso), e o mais livre possível, de trás para a frente, saltando páginas, sem qualquer respeito para com as sequências circunstanciais da montagem do livro-objecto.
A primeira imagem mostra-nos uma mulher com as mãos colocadas numa posição muito particular, equilibrando em dois dedos dois pauzinhos na ponta dos quais se sustenta um pequeno cubo. Menos do que a anedota que parece apontar (analisável?, interpretável?, desvendável?), parece-nos que o mais importante se encontra nas relações frágeis estabelecidas entre o corpo humano e os objectos com que interage, ou sobre os quais age, ou aos quais reage: essa é uma situação que se repete em muitas das imagens em Embroidered Muscles. Mais, desenhos nos quais existem linhas mais ou menos rectilíneas que ligam a personagem a objectos são vários, o que faz pensar na exploração de um qualquer sentido esotérico, num ritual secreto perpetrado por estas criaturas. O lado obscuro surge assim claramente.
A presença de criaturas não-humanas ou de estruturas semi-vivas em companhia de seres humanos, ou de homens e mulheres que parecem ter permitido uma invasão parcial dos seus corpos por essas outras instâncias do vivo e do não-vivo corroboram essa ideia de uma centralidade temática trabalhada no interior desta publicação. “There are some quite disturbing funguses on my kitchen walls” é a segunda frase que surge na publicação, e é ela mesma a ilustração frásica do modo como o crescimento dos temas, das imagens, dos sentidos, é permitido por Lemos: menos por estruturação, do que por texturização de crescimento e exponenciação livre. As criaturas que vivem nestas páginas, deste a larva gigante de “Menstrual” ao “Walimoide” (cada desenho é intitulado), mas também os lábios afectados de “Lady Leech”, são uma continuação, uma textura extrema, desses primeiros e textuais fungos.
O próprio título, fruto dos contínuos jogos paradoxais e burroughianos de Lemos, constroem um encontro pouco provável entre tecidos contrácteis e o desenho possível da agulha. Se a imagem de dor, ou lesão, ou perigo surgem de imediato, não é surpresa, já que muitos dos sentidos, texturais, dos livros de Lemos apontam muitas vezes mais para os perigos inerentes do desenho livre (que Lemos, ao instituir, ultrapassa) do que para sentidos claros e seguros da ilustração mais banal.
Nota: agradecimentos a André Lemos, pela oferta do livro.

11 de dezembro de 2008

Desenhar para o Boneco: Projecto Informal (publicação)

Tal como prometido anteriormente, serve o presente post para informar que o a publicação do Projecto Informal será lançado este próximo Sábado, dia 11 de Dezembro, pelo Laboratório das Artes, contendo projectos de todos os artistas convidados.
Além disso, tem uma interferência minha textual, "Desenhar para o boneco", em torno de uma ideia que poderemos eventualmente fazer do experimentalismo na banda desenhada, apresentando-se sucintamente de seis exemplos, dois deles "históricos" (The Cage, de Martin Vaughn-James, Here, de Richard McGuire), um deles já discutido (How to be everywhere, de Warren Craghead III), e três deles muito recentes e a discutir brevemente (Spuk, de Niklaus Rüegg, Hic sunt leones, de Frédéric Coché, e Frag, de Ilan Manouach)... Três destes artistas estiveram presentes na Divide et Impera.
Não se trata de um estudo, mas de um texto de valor propedêutico, se me arrogo a tanto. Mas também para abrir o apetite e a discussão em torno de mais.
Agradecimentos à malta do Laboratório das Artes, pelo convite, e a paciência deles e do público da conversa...
Para mais informações, ver aqui.

Orang no. 7. AAVV (Reprodukt)

A dupla vida de Amanda Vähämaki, parte 1.
Sob os auspícios da leitura de um muito recente livro do filósofo Noël Carroll, On Criticism, encontro a exposição de um pensamento teórico e programático em torno da actividade crítica estética com a qual não só me identifico como procuro activamente cumprir, apesar das muitas imperfeições e falhas (parte de uma aprendizagem e desenvolvimento sempre em curso). Não me cabe a mim analisar este livro, se bem que seja um autor que conheço bem e que procuro ler assiduamente (conjuntamente com outros autores que prezo), ajudando-me a tentar perceber qual o papel da crítica, e quais as suas funções, possibilidades e intrínseco valor. Mas abordemos alguns dos seus temas, para os poder aproveitar neste espaço. Para Carroll, e tese mais importante deste novo livro – de um nível introdutório, e não tão complexo como outros da sua lavra – é que a função principal da crítica é a avaliação. Isto é, para além da “descrição, classificação [em relação, por exemplo, a uma teoria dos géneros], contextualização, elucidação [i.e., o desvendamento de signos e/ou códigos], interpretação [sob uma miríade de disciplinas possíveis] e análise [explicação das partes e do todo]”, que é cumprida pela esmagadora maioria dos discursos que se fazem passar por críticos – sejam-no ou não, e com maior ou menor proximidade -, aquilo que faz distinguir outro tipo de discursos e um discurso propriamente crítico é o exercício de um juízo de valor. Esta última expressão nada tem a ver com a ideia de pontificado, de sentença, usualmente apresentada sob a forma de um número reduzido de “estrelas” ou “bolinhas”, devendo antes seguir um seu sentido mais profundo, da procura do valor especificamente encontrado na obra de arte a criticar (a valorizar). Como escreve Carroll, “a função primária da crítica é revelar o que é bom num trabalho. Classificá-los não é a preocupação principal do crítico”. Logo, importa menos julgar uma obra de arte pelos princípios de outra, por exemplo um livro de banda desenhada do mainstream norte-americano de super-heróis, como Joker (Azzarello e Bermejo), pela pauta do espaço criado por uma obra como a de Anke Feuchtenberger (e vice-versa), do que procurar no interior de cada qual o modo como cumprem as suas promessas, alteram o espaço anteriormente disponível e que ocupam e transformam, e revelam as suas forças. É claro que é possível, numa perspectiva mais global ou num patamar comparável (o que é difícil, parece-me), colocar uma contra a outra (“Feuchtenberger é uma artista que recria todo o espaço da banda desenhada, Joker adianta pouco à sua estrutura clássica” vs. “Joker apresenta uma curiosa variação e cruzamento de géneros, apreciável por um grande público, Feuchtenberger tem uma linguagem que encurta o leitorado”), mas de pouco adiantará para ler melhor cada uma dessas obras. E ler é o que nos importa.
A dado passo, Carroll apresenta alguns dos argumentos que poderiam ser arrolados contra a sua tese central. Um deles indica que a mera selecção das obras, a opção em falar de uma determinada obra e não de outra, a escolha, é já, em si mesmo, uma tomada de posição valorativa. Se bem que esta questão seja bem mais complexa do que se poderá apresentar aqui (o autor refere-se aos comissariados artísticos, por exemplo, mas também às críticas de jornal), a verdade é que por vezes se podem seleccionar obras sobre as quais, depois, se apresenta um veredicto negativo. No entanto, e é aqui que mais próximo estamos das regras implícitas do lerbd, a minha posição é a seguinte: de todas as obras que me chegam às mãos ou que tenho o interesse suficiente e prazer em ler, nem todas me suscitam a vontade de com elas dialogar para além dessa leitura. Usualmente, e uma vez que me cinjo à apresentação de reflexões em torno de livros novos (leio e descubro textos antigos igualmente, mas não fazem parte dos objectos de análise deste espaço), prefiro dar a ler reflexões positivas, de forças que encontro nos livros lidos, do que massacrar-vos com sentenças negativas (já chega o que têm para rolar o texto no ecrã). Quando lido com um texto qualquer de banda desenhada (ou de outro tipo) que me suscita mais desagrado ou que me dá a ver mais falhanços e fraquezas do que forças, prefiro passá-lo em silêncio, pois poderia ser visto (como infelizmente a crítica é entendida pela maioria das pessoas) ora como pontificanço ora como ofensa. Isso não significa que sinta, por vezes, a necessidade de sublinhar perspectivas demasiadamente presentes, apontando posições contrárias e que tento, sempre, justificar com argumentos racionais (como sucedeu em relação a Wanya).
Posto isto, a razão pela qual me sinto impelido a falar de duas antologias – discutivelmente parte das melhores antologias de banda desenhada no mercado contemporâneo e internacional (assim como a Glömp, a Kutikuti, a Rosetta – lenta, lenta – a Strapazin, a Canicola, entre outras -, a saber, a alemã Orang, da Reprodukt, e a D&Q Showcase, da canadiana Drawn & Quarterly, deve-se mais à presença de trabalhos da finlandesa Amanda Vähämaki que qualquer outra coisa. O que não nos impedirá de falar dos outros artistas presentes.
Amanda Vähämaki tem todas as particularidades que concorrem para a formação de um nome fundamental da banda desenhada contemporânea, a todas as instâncias. É uma artista em permanente formação, tem um cabal domínio dos instrumentos, quer técnicos (o lápis) quer estruturais (as pranchas), da banda desenhada, e procura tanto uma clareza nos propósitos das suas histórias como desvios que a tornam mergulhada numa aura de enigma (apresenta sempre histórias legíveis, narrativas, se bem que com um ambiente e uma delimitação das informações que torna os não-ditos tão significativos quando os elementos objectivamente determinados). Estes não são elementos nem suficientes nem necessários para a construção de um nome fundamental deste território, claro, mas são-no para Vähämaki. Haverá outros territórios, outras formas de o cartografar, de o delinear e de o iluminar. Todavia, esta artista tem o seu espaço próprio formando-se.
Isso não quer dizer que não possamos colocá-la junto a outros nomes. Por exemplo, a estratégia que tem em deixar visíveis o trabalho do lápis, as rasuras, a limpeza (ou melhor, a sua ausência), a repetição de linhas não-representacionais e ilógicas (numa perspectiva de um universo gráfico icónica e logicamente mimando o mundo natural), poderão fazê-la penetrar num grupo no qual se encontrarão os nomes de Thomas Gosselin, Merav Salomon, Sfar (o dos Carnets, sobretudo), Gregor Wiggert, a última Anke Feuchtenberger... Já as suas estratégias narrativas, da criação de um universo de referências limitado num espaço curto, quase familiar, no qual as restantes referências – a inscrição no mundo empírico e histórico que partilhamos – se dissolvem, e no qual um fantástico melancólico (ambas as palavras devem ser entendidas enquanto os seus exactos conceitos aplicáveis às artes literárias) ganha corpo e interfere com o mundo ficcional, poderiam irmaná-la com o seu companheiro de armas na Canicola, Andrea Bruno, mas também Gipi, Anders Nielsen, A I Wan, etc. Poderíamos, portanto, formar várias associações, combinações, famílias (lá está, “críticas”), dependendo da perspectiva do momento ou da circunstância precisa.
A antologia alemã Orang, pela mão do seu editor, Sascha Hommer, apresentou para este número um tema, “O Fim do Mundo”, e, com esse fim, os autores convidados criaram histórias originais. Todas elas exploram um hipotético fim do mundo, mas nenhum deles opta por soluções histriónicas ou que retratem os elementos que levam a esse mesmo fim do mundo. Existem pequenos acidentes que se acumulam, crises familiares crescentes, a contemplação de abismos negros, fantasmas que se revisitam, um aumento da loucura urbana, mesmo que anunciada na televisão, o alívio que vem ao se saber que a pena de morte será finalmente cumprida. Quase todos os autores, salvo aqueles que optaram por soluções mais fantasiosas, com gigantes marchando sobre vilas ou um outro que penetra o mar, mostram o modo como personagens solitárias ou em pequeníssimos grupos, lidam com os negócios e os comportamentos a ter num momento desses. A loja vai fechar, há que deixar as coisas nalguma ordem...
De entre as quinze peças da publicação, Moki apresenta mais uma vez uma história com figuras delicodoces, mas onde paira sempre uma qualquer sombra negra de angústia, de solidão insuportável, de amor não correspondido. O artista de Hong Kong Hok Tak Yeung apresenta uma história sobre um prisioneiro nos últimos dias da prisão, presume-se que para o cumprimento da sua pena de morte. o seu trabalho de pinceladas negras carregadíssimas e “sujas” levam a uma quase dificuldade de leitura, mas ao mesmo tempo permite-se, através dos diálogos, das pequenas coisas em que se concentra, na forma como mostra no mínimo as relações entre os presentes, uma história tocante (que faz lembrar, a um só tempo, The New Sun, de Taro Yashima e Na Prisão, de Kazuichi). Verena Braun apresenta-nos uma fábula, não, uma intromissão futura, em que alguns animais passam a ocupar alguns postos de trabalho misturados com os humanos, e estabelecendo relações pessoais e amorosas tão complicadas como as dos humanos. Christian Maiwald escreve para Martina Lazin uma visita de uma jovem a um local que abandonara há muito e onde lhe é literalmente possível aceder aos fantasmas que abandonara, acentuando a distância que existe entre amigos abandonados e amigos presentes. Tommi Musturi oferta-nos mais um episódio da criatura de um só olho, Samuel, e a sua travessia do que parece ser um mundo hermético mas multímodo, e Ron Regé Jr. um outro pedaço das suas criaturinhas Disneyescas-punk em remontagens e reciclagens sonoras sem nexo aparente, mas de enigmas cristalinos. E Arne Bellstorf, com “A inevitabilidade das coisas”, apresenta-nos uma espécie de thriller à la Hitchcock em que o McGuffin toma conta de toda a narrativa, levando-nos a torná-lo num sumário “alguém foge a alguém, que persegue esse alguém, contratando outro para tratar do serviço”. Mas nada mais é revelado, nada mais é compreendido. Fica o ambiente retro, servido com uma figuração fortemente estilizada, absolutamente regular, onde a única ideia dúbia de cor viva é nos rostos, mortiços, das personagens... Nada escapa.
Mas falemos de Vähämaki. Se em Squirels first o lápis se encontrava utilizado, a um só tempo, densa e diafanamente (por um lado, a inscrição dos traços, das sombras, das manchas, por outro, as rasuras, os “fantasmas de figuração”, ou as mesmas sombras e manchas vistas de um outro ângulo, as suas fronteiras dissipadas), na história do “fim do mundo” incluída na Orang, “Die Aufführung”, “O espectáculo”, o carvão mistura-se de um modo cabal à densidade da noite derradeira que caiu sobre o mundo, criando assim um ominoso ambiente, em que as referências de que falámos atrás, as que ligam ao nosso mundo empírico, mais resolutamente se dissolvem. Em alguns aspectos, está próximo (por afinidade, não por qualquer trânsito directo) do último livro de Feuchtenberger.
A história mostra-nos um punhado de personagens, um trio – um adulto, um velho e um jovem, como se se tratassem da versão masculina das Três Moiras, mas menos activas e menos alegóricas. O adulto retorna à aldeia de onde partira, juntando-se ao velho e, depois, o jovem juntando-se a eles, para verem o “espectáculo”. Atravessando uma noite tinta de negro, vão trocando informações e aprendemos que, do outro lado do pântano, estender-se-á um buraco negro. Tal qual. O velho chegou a perder dois dedos por lhe ter ultrapassado a fímbria. O jovem, entretanto, foi descoberto abraçando um imenso peixe branco no chão, que parece brilhar. Trata-se de um “peixe-estrela”, diz ele, porque tem medo da luz, mesmo das mais fracas. O peixe é abandonado para que ele os acompanhe a uma clareira, num terreno em declive, no centro do qual se ergue um palco. A dado momento, o espectáculo inicia-se, e a prancha passa a ser ocupada por uma imagem única: o espectáculo consiste na passagem de várias personagens, identificáveis apenas em termos gerais – o médico, a morte, a criança. Nenhum sentido é dado, e quando termina as questões que surgem são banalíssimas. Tratar-se-á de uma peça também ela alegórica? De simbolismos fáceis (Tarot, por exemplo)? De hermenêuticas absolutamente secretas? Jamais importará. O fim do mundo já está a suceder e as coisas podem apenas ser fruídas no momento em que nos chegam...
(Continua aqui.)
Nota: agradecimentos a Christian Maiwald pelos esclarecimentos e os três shots de vodka polaco.

D&Q Showcase no. 5. AAVV (Drawn & Quarterly)

A dupla vida de Amanda Vähämaki, parte 2.
(Continuado daqui). Quanto ao número 5 da D & Q Showcase, apresenta-nos três histórias. Uma primeira, de Anneli Furmark, artista sueca, sobre a aventura de um casal homossexual à casa dos pais de um deles, experiência na qual se prefere esconder o amor para preparar o terreno à confissão para “mais tarde”. O que se adivinha e sobrevive dessa visita, porém, é que, como reza a canção, será sempre “mais tarde” e “mais tarde é tarde demais”. A segunda é de um autor norte-americano, T. Edward Bak, que explicita estar mais interessado na banda desenhada enquanto “veículo de processos automáticos de narrativa, para além da música caótica da memória”. Este trabalho é muito surpreendente por em primeiro lugar ser reproduzido (ou assim o parece) directamente de um diário gráfico, com todas as suas vicissitudes e acidentes, como se fosse importante, perdão, sendo importante esse suporte físico e suas características para informar (“dar forma”) a história em si, que parece rondar um cenário pós-apocalíptico na América do Norte, mas onde mais importa a vida interna do protagonista, as suas memórias, arrependimentos e emoções que as anedotas que o rodeiam. Em segundo lugar, porque se sacrifica a unidade estilística dos vários passos da história para a submeter a uma multiplicidade de períodos narrativos, tempos visitados, ambientes emocionais, e atitudes para com as memórias. Um misto de relatório e de conto de fadas em termos visuais, é também um trabalho fortemente melancólico, ainda que de uma ligeireza muito subtil.
Finalmente, segue-se a história, sem título, de Amanda Vähämaki. Visualmente, é bem diversa da anterior, pela introdução da cor. E, apetece exultar, que cor! Certo, não estamos perante uma mestria e plasmação da cor como se verifica em Mattotti ou Conefrey, nos quais a cor assume um protagonismo activo e estruturante. É verdade que a cor em Vähämaki está subsumida ao programa figurativo e narrativo, mas mesmo assim mostra uma exuberância “quente”, de patchwork, ou das pesadas camisolas de lã que algumas personagens usam para combater o frio que as envolve. Nalguns pontos, essa cor concentra-se em torno do corpo das personagens, aliadas às linhas do lápis rasuradas, criando como que uma aura ou um fumo que delas se desprende.
O que une o trabalho de escrita da autora, a nosso ver, desde Campo di Babà ao objecto pseudo-narrativo Squirels First e agora estes dois contos, é que se constitui sempre uma narrativa com um universo diegético nítido, em termos dos seus elementos, para depois se exercer sobre ele uma deslocação. Paulatina e linearmente, são apresentadas as personagens, o espaço da acção, e o seu tempo. Nenhum desses elementos se reveste de qualquer problemática em particular (metalepses, por exemplo) e todos apresentam-se sob unidade. Mais, a própria forma narrativa moldada por Vähämaki é relativamente linear e descritível sem desvios de maior, sem, literalmente, extravagâncias. Porém, e eis aqui a discernível característica do trabalho da autora, há sempre uma qualquer interferência nesses mundos, uma evasiva, um elemento disruptivo, que lhe parece natural, que não é de surpresa nem burlesca nem assombrosa para as personagens, mas que se reveste, mesmo assim, esse elemento, dizemos, de uma natureza que poderia ser caracterizada como maravilhosa, fantástica, absurda, ilógica, espantosa, desviante, estranha.
No caso desta história, um casal de adolescentes, amigos, atascados no tédio de uma pequena vila piscatória (finlandesa?), num dia de folga, usam o controlo da televisão do pai do rapaz para viajarem no tempo. Sim, uma máquina do tempo sob a forma de comando de televisão. O momento dessa viagem é mostrada por um punhado de vinhetas, com a paisagem alterando-se ao longo das estações e uma, duas ou três linhas paralelas e em ziguezague, como sucede (sucedia) às fitas de vídeo quando as rebobinamos para trás mas observando-se a imagem. Essa viagem permite-lhes acompanhar uns pastores que vão até uma pequena ilha rochosa, na qual dispõem seixos e pedras numa qualquer forma misteriosa, jamais desvendada. Depois retornam ao seu tempo e sítio, e retomam a vida de todos os dias. Depois percebemos que talvez se trate de uma pequena vingança em relação ao pai (?), um pastor, mas de almas, um religioso taciturno. O pequeno furto ou ocultação do controlo remoto impedirá o padre de voltar no tempo, de procurar uma qualquer redenção de um pecado não indicado. Os jovens adentram-se pelo dia soalheiro e pela floresta, nesta magnífica prancha aqui mostrada. Assim termina a história, aberta sobre uma paisagem apenas vazia de nada, mas cheia do futuro que eles parecem querer construir com tranquilidade.
Nada é claro nem revelado, mas jamais se trata de uma falha, bem pelo contrário, fazendo-se dessa indeterminação narrativa, no seio de uma narrativa de resto clara, um valor artístico particular para estes trabalhos. Estarei errado na identificação destes elementos e querer colocá-los sob uma mesma égide, signo, até mesmo tema que atravesse a obra de Vähämaki como um baixo contínuo? Uma espécie de representação ficcional quer dos nossos desejos permanentes, cultivados desde a infância, sobrevivendo até à idade adulta, em podermos aceder a “outros mundos”, a “fantasias” e “sonhos”, “escapismos” até?, quer um certo mal-estar da sociedade contemporânea em que sentimos a existência de algo “que está mal” mas sem o poder identificar facilmente? Claro que podemos optar por chamar-lhe “crise”, “criminalidade”, “aquecimento global”, mas no fundo é apenas um mal du siècle que nos pertence por direito e herança, e a que a artista toma o pulso e traduz em figuras.

Joker. Brian Azzarello e Lee Bermejo (DC Comics)

Num artigo de jornal que apresentava uma crítica ao último filme relacionado com o Batman, a saber, Dark Knight, de C. Nolan, o seu autor explica, a dado momento, a riqueza, complexidade, cinismo e negrura do filme como não devendo nada à banda desenhada. O que o autor provavelmente queria sublinhar era a distância deste filme recente e o pouco que ele próprio sabe da banda desenhada a que, tentativamente, se refere (muito provavelmente restringindo-se ao material que ia surgindo em Portugal pela Ebal ou a Agência Portuguesa de Revistas, ainda que tenha sido da era Dennis O’Neill e Neal Adams, ou aos mais corriqueiros e comercialóides títulos presentes, no qual cai o péssimo “arco” de Frank Miller e Jim Lee em All Star Batman & Robin), se não mesmo apenas se reportando ao avatar mais famoso de Batman, o da série de televisão dos anos 60 (de que derivam todos os artigos relativos à banda desenhada começados por “Kapow!” e “Bang!”, e os olvidáveis filmes de Joel Schumacher). Pois mesmo no seio da banda desenhada mainstream de super-heróis, sempre existiram experiências revisionistas inteessantes, perspectivas não-canónicas ao grande corpo central das empresas, desvios narrativamente interessantes (alguns dos títulos da Elseworlds), já para não nos referirmos a experiências marcantes, como o incontornável Watchmen (Moore e Gibbons) e, mais próximo desta personagem que nos importa, Arkham Asylum, de Grant Morrison e Dave McKean. Aliás, quase se poderia dizer que é sobre o pilar construído neste último título que se ergue a sombra quer das versões cinematográficas de Nolan (bebendo, claro está, de outras fontes) quer deste mesmo Joker, uma “graphic novel” original – isto é, que não foi publicada antes em formato de comic book, mas imediatamente nesta forma de livro – de Brian Azzarello (conhecido escritor da série 100 Balas) e do desenhista Lee Bermejo.
O Joker de Azzarello é muito devedor à personagem delineada por Heath Ledger, ou pelo menos aos pressupostos que levaram à opção dessa interpretação, associada a uma cada vez maior proximidade das estratégias narrativas e de escrita da banda desenhada mainstream, super-heróis incluídos mas não só, e as séries de televisão, que por sua vez bebem também de experiências contemporâneas da banda desenhada. Bastará arrolar títulos como The Authority, Girls, The Ultimates, por um lado, e Lost, Heroes, Smallville, Alias, Birds of Prey, por outro, e nomes como os de W. Ellis, B. M. Bendis, ou de J. J. Abrams para encontrar esses diálogos. J. M. Straczynski, criador quer de Babylon 5 (televisão) quer do Midnight Nation e de Supreme Power (comics), encontra-se em ambos os territórios. Outros exemplos não faltarão, sobretudo se do cinema, usualmente sob a denominação (que nada mais diz além dessa informação circunstancial) de “adaptações”: por exemplo, o facto de que o realizador de Iron Man, Jon Favreau, escreveu uma mini-série (Iron Man: Viva las Vegas, que por sua vez bebe de Tomb Raider) apenas aumenta esse trânsito. Pouco importa se neste momento se é má televisão, mau cinema e má banda desenhada. a esmagadora dos trabalhos citados atrás são competentes no sentido em que entregam o que prometem, e teríamos de os analisar isoladamente para perceber quais as suas conquistas e quais os seus falhanços. O facto de pertencerem a um círculo muito alargado de produção mainstream, comercial, não significa que sejam desprovidos de qualidades. Bem pelo contrário, muitos deles bebem de um conhecimento profundo da história interna dessas produções populares e tornam-se exercícios extremamente inteligentes de intertextualidade, revisionismo, um misto de nostalgia com iconoclastia, como a soberba série Daredevil, escrita por Bendis e desenhada por Maleev (na sua maior parte).
Há, porém, um pormenor a explicitar. “Protagonista” e “personagem principal” são sinónimos. Quase sempre. Em Joker, uma divisão impõe-se. O primeiro ponto que convém sublinhar é que o protagonista (em termos etimológicos, aquele que transporta a acção) de Joker não é o próprio, mas um dos seus novos esbirros, Johnny Frost. É dele que parte a voz narrativa, é sobre ele que aprendemos a vida anterior (a esta história) e interna (os seus desejos, medos, etc.), é a partir da sua perspectiva que se constrói a história visível, mesmo que haja momentos de desvio ou confusão (inclusive o final, pouco surpreendente, mas não menos justo nesta exploração). Vemos então que Brian Azzarello opta por dar acesso à voz interna das suas personagens, o que não deixa de ser um predicado da literatura noir. Os diálogos aparecem entre as personagens mais para providenciar uma camada de acção nas histórias, mas o que mais importa é a vida interna dessas mesmas personagens. Se em Lex Luthor: Man of Steel (outra obra desta dupla que funciona como par deste livro) há uma reviravolta em relação à distribuição da atenção, e até mesmo um novo desequilíbrio moral, entre o herói (Super-homem) e o vilão (Luthor), em Joker não há nunca a presença do herói, a não ser como nota, sombra e um ponto no final, mas não sendo ele o ponto final. E se nesse livro a própria personagem Luthor ainda permitia que se acedesse à sua perspectiva, apesar de tudo, humana, no caso de Joker essa abertura é bem mais complicada, pertencendo ao mistério e impenetrabilidade da sua loucura a sua distância.
Porque, e voltamos à questão levantada anteriormente, a personagem principal, quer dizer, aquela sobre quem recaem as atenções, o fascínio e que opera no centro da mandala visual e narrativa criada, é sem dúvida, o Joker. E o Joker deste título, para além das suas ligações à versão cinematográfica recente, é um homem de uma monstruosidade sem humor, de quem cujo riso mais nos provoca asco e medo do que simpatia. Grant Morrison havia proposto uma teoria em Arkham Asylum (com Dave McKean), a de que o Joker sofreria de um novo desvio psicológico, aparentado com as personalidades múltiplas, mas que garantia não a loucura mas a supersanidade: uma capacidade de tornar fluida a sua personalidade para resolver os problemas e adaptar-se aos ambientes rapidamente cambiantes nas sociedades pós-modernas. Arno Gruen também discute uma outra espécie de loucura, mais visível mas por isso mesmo abscôndita, soterrada na aparência da “normalidade” – nos comportamentos aceites como parte da sociedade: não falar com os filhos, bezerrar em frente da televisão, limitar as conversas ao domínio do futebol, etc. Ser-se louco ajuda a lidar com a liquidez dos valores contemporâneos. Azzarello, porém, opta por eleger uma só personalidade do Joker nesta história, em que parece de facto emergir da loucura divertida, e apenas se torna alguém “para além do bem e do mal”. A inversão dos valores que apenas o são sob a forma de chavões é aqui desconstruída, tal como havia sido feito em Lex Luthor, e tal qual 100 Balas procura fazer: no negríssimo mundo de Gotham, estar na sombra do Joker é uma forma de vitória, por mais breve que ela seja.
No seio da tradição do policial, esta separação entre a personagem que relata e que focaliza toda a narrativa e o protagonismo assumido por outra, que fascina a primeira, é algo que encontra a sua fonte, claro está, nas histórias de Sherlock Holmes, de Doyle (relatadas pelo doutor Watson). Azzarello é sobretudo conhecido pela sua escrita “policial”, mesmo que trabalhe sobre outros terrenos, como em Hellblazer (terror). E, como muitos dos escritores que têm prazos e contratos para cumprir, como Brubaker, Bendis, Millar, tanto produzem trabalhos mais conseguidos como pastelinhos de cartão, soluções interessantíssimas e promissoras de desenvolvimento e espalhanços de mau gosto. A cena em que, neste livro, o Joker se encontra com Edward Nigma, “The Riddler” (que parece uma mistura de Beck, dot-commer, chulo pula, guna tuning, e modelo masculino), e o segundo passa ao primeiro uma mala cujo interior não é revelado mas brilha como ouro não é uma homenagem ou uma citação a Pulp Fiction, mas um pastiche desastroso, um rodriguinho sem nexo, para justificar os cameos, aparições “interessantes” de personagens secundárias numa ficção, que desencadeiam uma série de associações aos fãs e connoisseurs (de novo, apanágio destas ficções e presentes no cinema, como em Iron Man e o último Hulk). No caso presente, temos o Pinguim, o Duas-Caras, a Harley Quinn, e o Killer Croc, aqui numa versão "Marsselus Wallace" que, colocando todas as personagens no interior de uma possibilidade menos fantasiosa que o normal (à la Dick Tracy, uma das fontes de Finger e Kane), faz amergir toda a usual panóplia do imaginário do crime contemporâneo nos Estados Unidos. Mas se Bendis utilizava esta estratégia e estas promessas de uma forma para criar uma apertada rede de referências que criava uma base consistente sobre a qual criou a sua saga do Demolidor, muitos dos jogos em Joker não vão além do “eye-candy”.
No entanto, o objectivo é menos pensar nos pressupostos sociopolíticos e económicos que são o fundamento destas ficções do que apresentar uma interessante variação desses mesmos elementos numa fórmula legível, aprazível e simpática para os cultores deste género (sexo e violência, drogas e violência, perseguições de carros tiroteios, loucura súbita e violência – a figura de Harley Quinn assume neste título todos os contornos sexuais costumeiros das Bond Girls).
Os momentos mais interessantes são os que retratam os momentos de tédio e de banalidade, beber um copo e descansar no sofá, chorar por uma qualquer razão ou olhar para o vazio, caminha na rua. E, está claro, a troca de frases feitas imensamente "quotable", como é normal neste círculo de referências (a cultura popular). Luthor e o Joker caminham nas suas respectivas cidades a pé, pelas ruas. E tal como os seus congéneres antagonistas, o primeiro à luz do dia com todos os ideais de um homem que procura um mundo cada vez mais livre e melhor, onde todos têm o seu espaço, o segundo nas sombras dos becos e bares nocturnos para beber até às fezes a liberdade que se conquista acotovelando o espaço dos outros.
Nota: as digitalizações não foram feitas por mim, mas mais não digo.

10 de dezembro de 2008

NoiteLuz. Marcelo d’Salete (Via Lettera)

Se bem que um dos episódios de NoiteLuz tenha sido anteriormente publicado na Front, o material que compõe este pequeno livro encerrado num pequeno núcleo (familiar?) de personagens encerrados no interior de um bairro encerrado numa cidade – à medida que avançamos na leitura, como quem percorre as ruas da cidade, apercebemo-nos de que escapar de um confinado espaço apenas significa desembocar numa outra clausura, apenas maior – é original. O título remete para um clube nocturno de São Paulo que age como pedra de toque e centro nevrálgico das acções de cada episódio, e de cada grupúsculo menor de personagens, um bar no qual se cruzam as vidas breves destas pessoas, onde se pode beber de um trago algo forte, trocar umas palavras inconsequentes com uma mulher, fechar negócios que quanto mais negros e sujos mais rentáveis e, por vezes, fechar toda uma vida, literalmente. “NoiteLuz” pode ainda ser visto como a clara metáfora que propõe, em que a luz nocturna ilumina as almas e os segredos das personagens: enquanto leitores, e graças à focalização do narrador, e através de estratégias de silêncios estruturados entre o pouco que as personagens resolvem dizer (“confessar”, poder-se-ia precisar) umas às outras, temos acesso, não directo, nítido, mas adivinhado, ao que pauta essas mesmas vidas. Pode ser “luz” (vemos algo a formar-se, apreendemos algo delas), mas mantém-se sempre com um ar de noite (as sombras teimam em ficar em seu torno, não se abdica de todo o sigilo, sobrevivem zonas de indeterminação). [veja-se a excelente história de uma página encontrada no site do autor, que explora precisamente esse ritmo e estrutura de não-ditos, e de promessas narrativas; a publicar num futuro Stripburger]
Por vezes, a estruturação das imagens parece apontar numa direcção, que julgaríamos mais “natural” de suceder no ambiente da noite de crime e morte de São Paulo, para, ao virar a página, descobrirmos uma qualquer alternativa, nem sempre “melhor”, e que pode mesmo se revestir de um sorriso amarelo, mas cujo fito é mostrar-nos que não podemos jamais contar com regras certeiras, que podem sempre aparecer singularidades excepcionais, obstáculos imprevistos, soluções derradeiras.
O trabalho de Marcelo d’Salete opta pela construção de personagens em posições rígidas, hieráticas, colocadas no interior de um ambiente prenhe de linhas e tramas. Vejo aqui menos uma limitação gráfica do que o encontro entre uma angústia, um peso permanente na vida das personagens. Quem não vive em São Paulo, apenas pode imaginar – ainda que tenha a ajuda da literatura, do cinema e da banda desenhada – o tipo de tensão permanente nas suas ruas, e na sua noite, interrompida apenas (breve, súbita calma, embrulhada em pânico e adrenalina) por um tiro, uma saraivada deles, a sirene de um carro-patrulha, a notícia dada por um amigo da morte de outro.
Na continuidade de muitas experiências narrativas modernas [como havia exposto a propósito de um livro de Seth], NoiteLuz é apresentado como uma série de seis curtas histórias que partilham esquinas em comum, as quais podem ser encaixadas como num puzzle: as personagens, os espaços, os acontecimentos têm pontes entre si, que poderão fazer emergir no fim uma imagem unida e coesa, um sentido unificado. Porém, d’Salete não procura aqui uma forma relativamente complicada para depois nos ofertar uma história simples, como pistas disseminadas ao longo de um tempo, num sentido suspenso, até atingirmos um súbito eureka! final. Bem pelo contrário, cada uma das narrativas é simples e autónoma, quase sem surpresas e dramatismos histriónicos, para compor uma imagem global quebrada, problemática, angustiosa. O humor de NoiteLuz é difícil de aferrolhar num só sentido. Há um “final feliz” e outro “infeliz”; há também “finais felizes-infelizes” e “infelizes-felizes”. Mas a soma deles não apresenta um resultado nítido, líquido, substancial: ou melhor, se substância há no fim, é móvel, fugidia. De novo, a angústia torna-se o signo mais perene, mas como se fosse possível haver umas abertas de felicidade e “vida normal” sob a densa nuvem que sempre paira sobre as personagens. Entre a noite que sobrevive sob qualquer luz, ou a luz que consegue irromper no seio de todas as noites, ergue-se este espaço intervalar. E é lá que Marcelo d’Salete encontrou estas personagens.
Nota: agradecimentos ao autor e à editora o envio do livro. Ao primeiro ainda, o diálogo a continuar. Para o adquirir, além do site da editora, ou lojas online brasileiras, passo a publicidade, indicando a Casa da BD [na Feira da Ladra, Lisboa].

Gambuzine #1. AAVV (ed. Gambuzine)

Depois da longa vida do Gambuzine “creme”, eis que chega a segunda série (e longa vida, espera-se), com uma nova dieta (é praticamente três vezes mais do que a anterior). Teresa Câmara Pestana continuará o seu papel de editora de contactos internacionais e nacionais, procurando reunir gentes e trabalhos que se possam inscrever numa forma de ver e moldar o mundo. A reunião é de facto heteróclita, mas há como que um humor ou atitude relativamente homogénea em todos os trabalhos, que revela uma posição política bem vincada, de confronto com os confortos burgueses, e transformando a banda desenhada numa plataforma, senão mesmo uma arma de arremesso, de expressão de políticas alternativas para com o mundo. Se algumas delas privam dos universos dos punks, okupas, ou tribus quejandas, sem se terem de arrastar pelas mais chãs das ideias feitas – quer as da sociedade em geral sobre esses grupos quer as que esses mesmos grupos pretendem manter – outras contribuem para a derrocada dos mesmos inimigos, ainda que com estratégias diferentes. Encontraremos bandas desenhadas com uma linguagem gráfica mais amena e outras mais adstringentes, por assim dizer, umas que optam pela criação de fantasias que espelhem distraidamente a causa das coisas e outras que, se fantasia têm, é de uma violência negra e amarga.
O objectivo destas bandas desenhadas, e da atitude do Gambuzine, não é simplesmente (ou não o é de todo) “contar histórias”, “mostrar trabalho”, “fazer uma bd fixe”, mas sim abrir os olhos, riscar do mapa injustiças, alertar para merdas, rir da estupidez, enfrentar demónios, doa a quem doer. Não se procura um caminho consensual, pausado e ponderado (leia-se “bem comportado”) como, por exemplo, o de Squarzoni (que pretende argumentar e não um “efeito de choque”), mas sim a boa velha maneira do grito e do soco. Se forem gráficos, mais eficientes serão? Essa é uma questão do foro da sociologia, cuja resposta será provavelmente negativa, mas que em nada diminui a força e pertinência desses mesmos gestos. Panfletário? Sim, sem dúvida. Vazio proselitismo? Nunca.
Na caça aos gambuzinos, são as circunstâncias que ditam o tipo de caça. Das peças encontradas neste número, vejamos algumas.
João Sequeira, de quem faláramos a propósito de Metamorfina, apresenta aqui uma história curta, sem falas, retratando um episódio na vida de um homem, um acontecimento que tem tanto de cómico, como de absurdo como ainda de estranhos sentidos psicológicos (“um papagaio atrelado a um rádio portátil” é substituído por um cão com ar tumultuoso, como quem vê a substituição de meios de possível comunicação, mesmo que de apenas uma direcção, por carracundas opções de companhia).
A presença de Teresa Câmara Pestana é central, naturalmente, com peças soltas, uma história maior, em torno de experiências (biográficas? ficcionadas? importará?) na Alemanha, outras menores, com o seu estilo gráfico habitual, um belo encontro entre a caligrafia rápida do apontamento e uma acabada estilização muito clara e legível. Raul Gardunha tem uma história desenhada de um modo solto, como que de apontamento, como se as figuras tivessem a mesma consistência ou valor moral que o fumo dos rescaldos dos muitos incêndios em Portugal: a história voga em torno dos negócios e redes que, possivelmente (quer dizer, digo eu, pois Gardunha apresenta esta realidade como certa e não a neguemos), levam dos incêndios à especulação imobiliária e à indústria de papel, com que os jornais se sustentam. E, já agora, mesmo os mais alternativos fanzines. Gardunha recorda um certo tipo de humor e verve que me faz irmaná-lo com Artur Varela, das Aventuras do Dr. Manel. Poder-se-ia dizer que são herdeiros de uma atitude da caricatura política, da pirraça social, do retrato morboso de um Portugal barato (“de plástico”, como diria O’Neill), mas com uma inteligência maior aliada a uma mais mordaz presença gráfica do que, por exemplo, outras vilhenices mais usuais.
Forte como um tanque de lagartas em fogo é a primeira história da publicação, “The batallion of the Virgin Mary”, de Ulli Lust, que nos apresenta uma história de terror, aliás, do mais puro terror, porque associado à realidade mais aterradora e presente, a das crianças usadas como soldados numa mão-cheia de conflitos espalhados no mundo. Se os noticiários nos deixam indiferentes, por vezes é pela ficção ou os contos de fada assaltados deste modo que mais rapidamente nos apercebemos de crimes continuamente mantidos no mundo.
Mais positivas (em termos de humor, de óptica) estão as histórias de Axel Blotvogel, que apresenta uma história que recordará a veia do fantástico espanhol dos anos 80, mas que num contexto diferente, parece ser a possibilidade de emergir de um longo sono letárgico as possibilidades positivas das bandas desenhadas punk aqui agregadas, e a parábola fantasiosa, quase “de fadas”, de Claire Lenkova, que recordará uma versão menos tumultuosa de Anke Feuchtenberger, mas a nada mais deve esta comparação (Lenkova é uma das madres da revista Spring, de que falámos aqui já).
E há outros trabalhos, menores em vários sentidos, mas que não menos contribuem para a homogeneidade da atitude do agrupamento heterogéneo: um paradoxo que, penso, o Gambuzine mostrará ser espaço consolidado para explorar.
Nota: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana, pelo envio da publicação. A capa é de um azul claro acinzentado, mas o meu scanner fez-me o favor de a tornar branca... Para adquirir uma cópia, inquirir aqui.

Ollaan Nätisti. Anna Sailamaa (Huuda Huuda)

Já nos havíamos cruzado com Anna Sailamaa nas páginas da Glömp no. 9, precisamente com uma das histórias reunidas nesta pequena publicação. Ollaan nätisti é traduzível por “portem-se bem” (esta publicação é em finlandês mas tem uma tradução inglesa no pé da página) e é um dos recados que o pai dá aos seus três filhos, um menino e duas meninas, uma das quais, presume-se, é a própria Anna, a menos que estejamos aqui perante um exercício de auto-ficção ou de uma inscrição dissimulada da autora real no corpo das suas personagens.
As guardas do livrinho [imagem a seguir] mostra uma espécie de constelação, de manchas de pontinhos que, acumulados, parecem fazer uma estrela brilhante, as quais despedem raios fazendo todas as ligações possíveis. É como se se tratasse de uma imagem metafórica que quer representar a ideia de família, e é exactamente à família que estas histórias são dedicadas. Em primeiro lugar, cada uma das 5 histórias que compõem Ollaan nätisti é intitulada com um dos membros da família: “Avó”, “Irmã”, “Mãe”, “Irmão” e “Pai”. Mesmo que uns surjam nas outras histórias, é aquela que se encontra destacada no título que assume o protagonismo do retrato, ainda que a focalização esteja sempre perto de uma das filhas, presumimos nós que Anna. Em segundo lugar, porque apesar da idade dessa personagem-filha se alterar de história para história, não apenas surge como condensadora dessa constelação familiar como orientadora das restantes relações. Ao longo desses episódios descobrimos a típica flutuação de humores entre os membros de uma família, da rivalidade à parvoíce fraternal a discussões mais sérias, até ás marcas profundas que os pais deixam de um modo quase negativo mesmo que eles não o tenham feito com essa intenção. O problema é que as intenções usualmente dão frutos de sinal contrário ao previsto, e isso é particularmente verdadeiro no seio de uma família.
Não se pense estar perante um livro que explora essas maleitas e crises de um modo directo ou dolorido. Com a excepção da última história, não há acesso ao pensamento interno das personagens, ou a uma voz narradora que, pela sua própria existência, tem necessariamente de se afastar do nível da diegese. É somente pelas relações estabelecidas em cada curto relato, e o seu acumular e passagem de um capítulo ao outro, e pelas suas vozes dialogantes, que construímos uma ideia flutuante dessas mesmas relações... flutua tal qual uma constelação, já que o desenho unindo as estrelas não existem objectivamente mas são modos dos seus observadores (nós) as mapearmos para nosso maior conforto e controlo do universo.
Uma vez que os episódios foram sendo criados para várias outras publicações, conforme as suas circunstâncias específicas e condições de produção, notar-se-á no trabalho de Sailamaa alguma diferenciação de traço de história para história: aqui parecem ser as figuras criadas por pinceladas de tinta-da-china, ali traços descomprometidos a caneta, onde a perspectiva e a volumetria é preterida em nome de uma óptica mais dinâmica e que talvez deseje traduzir o olhar infantil (de então, do momento representado).
A composição das páginas é muito simples, quase sempre de um modo regular e rectilíneo, mas isso apenas evidencia a liberdade da figuração e a dinâmica líquida das sensações. Tal como uma família, cujas ligações podem ser descritas de modo linear e nuclear (papá-mamã-filhotes), mas nada dizem dos modos como as paixões se instalam no seu interior.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, por ter actuado como dealer. Entre nós, à venda na Chili com Carne.