19 de dezembro de 2008

Die Hure H wirft den Handschuh, Anke Feuchtenberger e Katrin de Vries (Reprodukt)

Terceiro volume das sortes da personagem “Hure H”, que, segundo o modelo das traduções internacionais, nos permite traduzi-la por “Puta P”, o título em alemão (“atirar a luva”) implica de imediato a ideia de um conflito, de dar início a um desafio ou duelo. A expressão em alemão deveria contemplar a palavra Fehdehandschu, em português “manopla”, e aponta para, mesmo historicamente, um duelo pessoal entre cavaleiros. Só se poderá especular a razão pela “dessacralização” ou “desmilitarização” da palavra, que tanto se poderá relacionar com uma assunção de um sentido mais feminino, mas não menos poderoso por isso, e não se trata aqui de um exercício fácil de associar duas autoras a esse papel mas sim uma leitura próxima do trabalho de ambas, como se abrirá possibilidade de outras interpretações mais obscuras e psicologizantes... Lembremos, por exemplo, essa “novela em imagens” de Max Klinger, Ein Handschuh, de 1881 (por isso, anterior aos escritos mais marcantes de Freud).
Este livro apresenta três histórias ou três episódios separados, cada qual com o seu título – Licht Turm (“Torreão de luz”), Kohlen Hof (“Pátio de carvão”), Ball Saal (“Salão de baile”). São narrativas particulares, enclausuradas sobre si mesmas e relativas a um relativamente exíguo espaço no qual se desenvolverão os acontecimentos, mas que não deixam, naturalmente, de deixar abertos caminhos que nos permitem mapeá-los entre si, tal qual mapeamos os livros uns com os outros. Cada episódio institui o seu espaço, o seu tempo, assim como antagonistas particulares à Puta P, mas acima de tudo, proporciona uma diferente presença da protagonista: ela surge mesmo com figurações diferentes, avatares, personalidades ou facetas da sua personalidade, graus de força diferenciados. No primeiro “conto”, a Puta P surge enfaixada como uma múmia, no segundo é uma mulher expedita, de cabelo à Madalena Iglesias, e no terceiro surge como uma espécie de viúva, de negro, para dar lugar a uma virginal noiva. Tudo isto é descrição mesclada de interpretação. É impossível fazer uma descrição que não opte desde logo por um qualquer papel da Puta P.
Em Licht Turm, a Puta P aproxima-se de um imenso farol, no qual se encontra o “Grande Homem Moderno”, que parece uma mistura de oficial militar e médico. A linguagem que a voz narradora emprega, repetida ipsis verbis pelas personagens, como num conto tradicional ou, noutra perspectiva, como se se tratasse de um ritual esotérico, colocam-nos numa espécie de núpcias na qual o sexo é indicado, mas nunca revelado. O controle do farol revela apenas as sombras adensadas no alto mar, mas, parece, nada mais. O homem expõe a Puta P ao vento, e eis que as suas formas começam a mudar, ganhando pesados seios, e barriga. Uma gravidez à la Danae, por Zeus.
A cena do parto é a mais terrificante e dilacerante de todo o livro, se bem que as suas consequências se mantenham depois no resto do livro. A Puta P retira-se da companhia do homem, recusa-a mesmo, para poder dar à luz. Estando perto do mar, sob a sombra da torre, é recebida pelas águas para trazer ao mundo a criança que terá a dar. A associação entre a maternidade e a água é por demais óbvia para a explicitar através de princípios, uma vez que não são princípios, mas uma analogia antiquíssima, inevitável, poderosa. O que se torna extraordinário neste episódio são as suas notáveis variações: uma das mamas como que murchada e mergulhada na água, como se estivesse já seca, como se nada prometesse, ou como se quisesse ela mesmo absorver a matéria da água…; uma vinheta mostrando dois pedaços do que pareceria um só corpo rasgando-se, enquanto metáfora da separação de dois seres, da sua violência, ou então representação directa de uma ruptura que começa nesse momento (“tu não és eu”); a observação e presença das cabeças de animais, um bico de ganso, um focinho de peixe ou talvez o rosto do bebé emergindo do útero, relembrando a teoria de Haeckel de que a ontogenia recapitula a filogenia, ou talvez apontando para a ainda possível fraternidade entre os animais, os sentientes, a comunidade dos vivos, da biosfera (à vossa escolha), expressa no instinto, na proverbial ferocidade maternal, comprovada nos episódios seguintes…
Seria tentador procurar estabelecer uma ligação directa entre este evento na vida da personagem e na gravidez real da artista ou da escritora, mas além dessa informação pessoal não nos dizer respeito, o que mais importa é que se trata de uma experiência nova e real da Puta P, essa sim, claramente visível e significativa.
Pois é isso o que mais interessa, a vida da Puta P. a expressão inglesa “the plot thickens” serviria eventualmente de signo a este livro, mas o que se adensa não é tanto a trama narrativa (plot), como se estivéssemos perante uma novela ou romance que procurasse a complexidade psicológica das suas personagens através da complexidade da sua estruturas narratológica. Todos os caminhos, afinal, vão dar a Roma. O carácter de staccato lacónico (todas as pranchas apresentam invariavelmente duas vinhetas idênticas), em que as narrações recitativas e as falas e réplicas são deixadas ao mínimo (e com os ciclos de repetição e variação já mencionados), como se se tratasse de uma moderna forma de Märchen, o afunilamento das cenas e seus componentes numa composição quase beckettiana, é algo que se mantém desde o primeiro volume. Mas se na primeira “aventura” (a palavra não é descabida, ainda que a anos-luz do seu habitual uso na banda desenhada) a Puta P surgia como uma criatura cândida, algo perdida no mundo em que as suas demiurgas a haviam colocado, e em busca de um homem, de uma espécie de validação e protecção, há algo mudado aqui. Algo se adensa, sem dúvida.
Em primeiro lugar, a matéria visual: os desenhos surgem como que enegrecidos, a presença e difusão do carvão no papel aumenta, as figuras ganham mais pormenor, definição, volume, sombras, e, por essa razão, ganham uma configuração mais plástica, moldável, quente, vivaça, arredondada. Essa plasticidade e adensamento, entrelaçados (recordemos a indissociabilidade entre forma e conteúdo, apenas destrinçáveis em termos abstractos e analíticos), verifica-se de modo claro nos avatares que a Puta P percorre no interior deste livro (e, em retrospectiva, em todos eles), mas acima de tudo, na cena do parto, em que a plasticidade transita por todos os seus estados, desde a mais líquida das substanciações à mais seca das quebras.
Apesar de vermos o parto, não é revelada qualquer criança nesse primeiro episódio, terminando este com a Puta P vogando, como um barco de vela à banda (a mama murcha, ou sugando a água) em direcção a uma cidade. No conto seguinte, a Puta P surge com um bebé ao colo, vestida de negro, de cabelos compridos, e em busca de um homem, num pátio: parece que este lhe fizera uma promessa, e é tempo de a cobrar. O conflito é directo, físico, mistura da última foda de raiva entre dois desapaixonados e fustigação higiénica. Quando a protagonista atravessa a cidade, passa ao lado de várias mulheres, atarefadas a limpar escombros e entulho das ruas, recordando as Trümmerfrauen que reconstruíram Berlim depois dos bombardeamentos da 2ª Grande Guerra. Será esta uma cedência à história recente da Alemanha? Será a busca de uma sororeidade possível, a redistribuição de um papel de poder entre essas mulheres e esta (Merkel estará na equação?)? Será “cedência” a palavra certa? O desafio da Puta P em relação aos homens encontrara o seu epítome no parto. Enquanto momento de violência solitária, mas por isso vitória solitária. Enquanto cissiparidade do eu, mas por isso multiplicação da força (não sabemos o sexo da criança). Enquanto forno da matéria, origem indizível do ser humano, emergência do caos, da morte (do antes/nada), do oceano sem fundo. Transição e metamorfose. No pátio, a Puta P observa as larvas num vaso, prestes a se transformarem em borboletas, nas larvas que ocuparão parte do corpo da criança. Novo elemento de metáfora, não-metáfora, ligação directa? Os animais surgindo do negro céu, do negro oceano, depois do negro do olho (terceiro episódio), do negro do carvão, serão eles metáforas, ecos ou reflexos desses nascimentos (o da criança, o da nova Puta P)? Porque não vimos a relação sexual, o momento da fecundação? Porque imaginamos nós um vento fecundador, como os das éguas da Ibéria? Zeus é uma boa imagem? O homem moderno, com aspecto de doutor militar, será um demiurgo que não suja as mãos? Porque não vemos o recém-nascido no episódio que ao parto diz respeito? Está sob as águas, submarino? Este acumular de perguntas, este cruzar de momentos do livro, não se acumulará ao ponto de subitamente desenhar uma chave, mas continuará a multiplicar-se até à dissipação, à indeterminação, à máxima potência do sentido: uma potência da potencialidade, espelhada nas águas negras do oceano, no carvão do pátio, no olho do salão.
No último episódio, a Puta P passeia uma cadeira de rodas na qual está sentado um símio. Passeiam-se por uma cidade moderna. O símio (o sexo é indeterminado) é deixado numa jaula, num estranho zoológico. Num momento que não entendemos em que relação temporal está com esses outros eventos, a Puta P, de véu negro como uma viúva, entra num balneário, onde espreita desenhos delicodoces de bambis de frases herméticas. Por sobre a cidade, uma outra personagem feminina observa toda a cena, numa consola de tecnologia por vir. A ordem é dada, a Puta P entra no grande salão, mistura de pista de desportos radicais, salão de jogos electrónicos, mas descrito como de “baile”. Nada permite ver qual dança estará ali reservada. A Puta P passa a vestir-se de branco – noiva? vestal? virginal de novo? alguma vez o havia deixado de ser? Leva um pano branco. Sobe a um olho gigante e parece ter de limpá-lo. No reflexo da íris surge um rosto, pouco determinado: símio, criatura marina, bebé, reflexo da Puta P. Tudo?
A mulher que havia ordenado a Puta P através da maquinaria pairando sobre a cidade parece confirmar que aquele local lhe pertence, ou que aquela tarefa é o seu papel, ou que finalmente chegou onde deveria chegar? Sobre a superfície de um olho. Talvez imagem reflexo do nosso. O lugar da Puta P, então, em nós mesmos, no salão de baile da leitura.
De acordo com um dos editores, presume-se que este seja o último volume da Puta P, mas tendo em conta o historial da colaboração entre a escritora Katrin de Vries e Feuchtenberger (além desta personagem, trabalharam também em Die Kleine Dame), só a nossa futura atenção confirmará que outras respirações virão. Se é aqui que encontramos a cúspide do trajecto da Puta P, as direcções que dela se despedem são, afortunadamente, múltiplas. Se novos traços virão, será uma outra Puta P quem virá.
Nota pessoal: como sucede em relação a algumas obras de arte, e ficcionais, confundimos bastas vezes a vida das personagens com a existência real de uma pessoa. E a pulsão escópica suscitada pela sua presença contínua na cena sob o nosso escrutínio atencioso permite-nos uma proximidade e intensidade nada natural, completamente alheia ao que se passa no “mundo real”. Todavia, a intensidade é real, ou melhor, é a sua ficcionalidade que lhe dá a sua particular intensidade. No cinema é claro que isto acontece, e o modo como acontece, para mais no interior dos vários star systems, em que os actores e actrizes muitas vezes primam em atributos de beleza considerados padrão, e assim cumprem melhor o papel de objecto de desejo. Na banda desenhada, pode acontecer, acontece, existem personagens, principalmente femininas, desenhas e construídas de modo a suscitar essas pulsões e excitações, as mais das vezes superficiais, é certo. São as pin-ups ou as mulheres de papel sedutoras, como pouca ou nenhuma densidade psicológica (as dos Manara, dos Serpieri, mas também dos Juillard e dos Bourgeon). De quando em vez, porém, surgem personagens que ganham um carácter erótico total por caminhos arrevesados. O próprio erotismo deve ser aqui entendido no seu sentido primal e arcaico grego, de luz e força motora do universo, se bem que parte dessa expressão possa ser encontrada na paixão, no amor carnal, no desejo sexual. A Puta P é uma delas. Aqui declaro a minha paixão, o meu amor, pela Puta P. não se trata de um jogo de imaginação em que se pensa alguma vez seduzir essa pessoa para lhe demonstrar as nossas capacidades de amante, como sucede tantas vezes nas fantasias masculinas (“Se a Scarlett Johansson me conhecesse…”, por exemplo); trata-se antes de uma estranha e incomensurável sensação de não merecer amar a Puta P, do seu indómito ego feminino revelar-se enquanto um poder terrivelmente esmagador e implacável que me faz fantasiar, enquanto homem, desejar alguma vez merecer a sua complacência. Todavia, sei que sempre falharei…
Nota: agradecimentos a Christian Maiwald por alguns esclarecimentos.

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