30 de dezembro de 2007

The League of Extraordinary Gentlemen, Black Dossier. Alan Moore e Kevin O’Neill (America's Best Comics)

Black Dossier, no seguimento de toda a série da The League of Extraordinary Gentlemen (dois volumes editados, um mais no futuro próximo), é uma extremamente complexa e apertada rede de citações, aparições, sugestões, cameos, aproveitamentos, e reinscrições de personagens e referências retiradas de um enorme manancial de fontes culturais, sobretudo inglesas e sobretudo literárias, mas também bebendo de outros lados, desde a televisão, ao cinema, à rádio, à banda desenhada... Conseguir identificar todas estas referências implica um profundo conhecimento dessa mesma cultura e se algumas dessas referências são partilháveis por leitores como nós (haverá algum acesso a Shakespeare, Swift, Fleming, Orwell, Doyle, Wells, etc.) da parte dos portugueses modernos), outras são bem mais obscuras (retiradas de anúncios britânicos, séries de aventuras baratas e passageiras, “clássicos” de uma educação cultural local). Mapas são necessários para poder navegar em todas essas díspares águas, mapas que são providenciados por a quem de direito, como o bibliotecário Jess Nevins, autor de vários “guias” para esta série e do seu inestimável site [existindo outros, mais de fãs, mas interessantes, como este, de onde retirei algumas imagens aqui postadas]. Este jogo de intricada intertexualidade é já um apanágio de Moore, seja como for, iniciado talvez na série Miracleman e Watchmen, pela reintrodução de temas fantasiosos num ambiente mais real, e ganhando asas de cada vez maior envergadura em Supreme, depois Promethea, e mormente em The League of Extraordinary Gentlemen. Top Ten também tem essa dimensão, ainda que apenas na ordem do visual (já havia aqui falado de uma “onde está o wallyzação”).
Depois das duas primeiras grandes aventuras (a do feudo entre o Professor Moriarty e Fu Manchu e a da “invasão marciana”), apercebemo-nos de que a Liga se havia desfeito, desligado dos seus superiores, e que as personagens principais, Mina Harker e Allan Quartermain, estão agora (uma Inglaterra paralela, ficcional, da década de 1950) de volta para reaverem o titular “Dossier Negro”, onde constam documentos que recontam todas as informações referentes à Liga, ou melhor, às Ligas, as quais, também descobrimos, afinal existia há já séculos antes da que julgávamos a “primeira”, sendo a primeira fundada por Prospero (de Shakespeare). Este volume, portanto, serve com uma espécie de reescrever da história anteriormente conhecida, mergulhando ainda mais na ficção (dita) universal, para tornar a malha referida ainda mais diminuta e coesa. Mais, existem “contra-ligas”, duas versões, francesa [procurem os dois volumes Shadowmen, de Jean-Marc e Randy Lofficier, para ainda mais uma peça...] e alemã, de arqui-inimigos, que ainda tornam esta dança de torsões, reinvenções e jogos especulares ainda mais entretidos e interessantes. Estou em crer que o próprio território da banda desenhada, mormente da variedade dos super-heróis, é intrinsecamente de desconstrução contínua, e Moore não mais fez do que aumentar exponencialmente a velocidade do que já acontecia. Fica aqui anotado, pour prendre date, mas para desenvolver mais tarde... E, já agora, como mote a um desafio [vem em baixo].

De um modo idêntico àquele que Moore havia explorado em Watchmen e nos anteriores volumes de League, para além da aventura central apresentada em banda desenhada, de um modo mais ou menos clássico e regular (para melhor distinção com a parte final, muito devedora a McKay), o próprio dossier ganha corpo e presença no livro, e acedemos aos documentos do mesmo através da sua aparição sob a forma de uma edição original de uma peça (perdida) de Shakespeare, artigos escritos por Aleister Crowley, uma nova versão de Fanny Hill (contada pela própria e aqui apresentada num papel mais grosso que o restante), caricaturas à la Cruikshank, uma “Tijuana Bible” do regime do Grande Irmão orwelliano, um excerto de uma novela beat (escrita pelo narrador do famosíssimo livro de Kerouac), e postais de muitos lugares-que-nunca-foram. Apenas lendo, e com atenção, essas outras narrativas, é que atingimos um ponto (e, como vimos, nem sempre suficientes para tecer a malha na sua completude) onde desvendamos toda a trama. Há mesmo informações que não são desvendadas na “banda desenhada”, mas nesses outros canais de informação: por exemplo, como é que Harker e Quartermain parecem tão jovens apesar de deverem parecer muito mais velhos, senão mesmo mortos.
Alan Moore tem uma capacidade olímpica de tecer estas tapeçarias monumentais a partir de borbotos catados um pouco por todo o lado. Existem muitos outros autores a fazerem exercícios similares, de revisitação, reemprego e revitalização de personagens de um imaginário perdido, uns com grande felicidade autoral e criativa, como Warren Ellis [também *] e a série Planetary (com John Cassiday), outras a atingirem estranhos limiares (penso em Wisdom, de Paul Cornell e Trevor Hairsine), outros ainda para apenas elaborarem clichés cansados de erro e redenção (penso sobretudo em Agents of Atlas, de Jeff Parker et al.). Moore acaba por elaborar as suas ficções de um modo tão coeso e tão elaborado que uma sua primeira leitura acaba por se revelar quase como seca, maçuda, enfim, verdadeiramente indigesta: é demais. Por isso, uma sua leitura pausada, ritmada com pesquisas externas, confronto com as fontes originais, acaba por se revelar como a melhor forma de degustar esta obra. Georges Steiner disse que os clássicos se devem ler com um lápis na mão. É cedo demais para nos apercebemos se Black Dossier constará dessa elite de obras, mas não podemos escapar à imediata sensação de que ela nos obriga a nos munirmos com um lápis para a poder desbravar e, com essa acção, reconstruí-la com esse poder, como disse, monumental.
Mas que desejará Moore monumentalizar?
O livro termina com um discurso de despedida de Prospero, muito similar ao da mesma personagem na peça A Tempestade. Curiosamente, há aqui um fortíssimo paralelo quer com a peça de Shakespeare, uma vez que esse epílogo quase serve de fecho igualmente à própria escrita do bardo inglês (seria a última peça, o último texto), quer com a conclusão da série The Sandman, de Gaiman, que também termina com esse epílogo. No entanto, se na peça o texto é uma despedida das artes arcanas da parte do mago, e em The Sandman é o próprio Shakespeare a despedir-se do seu pacto com o senhor dos Sonhos, em Black Dossier o tom é bem mais positivo, uma espécie de elegia à imaginação. É bem possível que as palavras de Prospero (aqui) sejam as de Moore ele-mesmo.
Emprestando algumas das palavras que Jan Švankmajer, o mestre checo da animação, empregou para explicar o seu próprio trabalho, e que consciente e directamente se incluía na escola do Surrealismo – entendendo esta como um movimento alargado que segue alguns princípios comuns e não como um mero e vago descritivo, usado hoje a torto e a direito, as mais das vezes sem acuidade nem pertinência – existem actividades humanas que ultrapassam a actividade conhecida como arte (já de si e em si múltipla). O que interessava a Švankmajer era a imaginação e não a arte, o que depreende uma importante distinção, devolvendo a imaginação à esfera de todos os seres humanos e todas as suas acções, e não apenas àquela capacidade que socialmente se aceita como sendo superior de algum ponto de vista (material, espiritual, económico, referencial, estético, etc.). Imaginação aqui tem de ser entendido da forma mais profunda e séria possível, e não somente nos contentarmos com o seu uso banal de todos os dias. Quando se diz que alguém tem uma “imaginação prodigiosa” ou “fantástica”, são raras as vezes que também essa palavra esteja a ser utilizada na sua propriedade; o que querem com isso dizer é somente uma capacidade, normalmente transmitida através de uma qualquer expressão artística, de fantasiar. Mas a imaginação é uma faculdade humana cuja etimologia explica quase cabalmente: imaginare, em latim, significa a capacidade de representar, de forma uma imagem, uma faculdade mental de formar, engendrar, combinar, desenvolver imagens. Esta faculdade é partilhada por todos os seres humanos, sem excepção, e a diferenciação apenas começa nas formas socializadas em como ela é utilizada, canalizada, até permitida e, finalmente, expressa. Os sonhos já foram mais “levados a sério”, como contendo significados reais no mundo tangível; hoje são apenas relegados, se tanto, à esfera do Inconsciente, dos “significados ocultos”, etc., mas não é aceite à luz do dia, da razão, da lógica social, que eles sejam uma forma de engendrar formas e imagens que tenham direito à cidadania do sentido como têm as obras de arte (aceites como tal). Existem outras esferas, mas deixemo-los por agora. A questão é entender que a imaginação é um território vastíssimo que apenas ganha corpo no mundo numa fracção menor, negociada conforme a sociedade – e a sua mentalidade – em que se encontra. Moore revela, continuamente, estar também interessado em todo esse continente, e não apenas nas pequenas docas a que nos permitimos aportar.
Ainda seguindo as pistas de pensamento de Švankmajer, chegamos a um modo de trabalhar as imagens a que se poderá propor a palavra (já utilizada por outros) de arcimboldiano (do famoso pintor italiano do século XVI, Giuseppe Arcimboldo), que consiste em acumular objectos ou díspares entre ou unidos por um qualquer princípio numa mancha que, na sua súmula, assume uma forma concreta (as mais das vezes, humana). Não será esse também o princípio de construção de Moore? Afinal, ele não apenas desconstrói mas, reutilizando elementos e partes de toda uma série de criações anteriores (talvez aquelas partes de que nos lembramos, os restos que ficam redivivos na mente, já que jamais nos recordamos das obras na sua totalidade coesa), forma uma nova criação, uma nova criatura. Teríamos que praticamente citar todos os seus títulos para ilustrar esta ideia. Todavia, sobretudo aquelas onde confluem estas ideias numa noção concreta, que ganha o carácter de um espaço narrativo. Por exemplo, o conceito de “Supremacy” na série Supreme (de resto, precisamente o tipo de limbo editorial que existe com os paradoxais acatamentos e cortes em relação à “continuidade” de cada universo narrativo-comercial – o da DC, o da Marvel, etc. – e para onde são atirados todos os “restos”, a aproveitar mais tarde ou não), da “Immateria” da Promethea, a Neopolis e a sua “Transworld Station” de Top Ten, a estranha quarta dimensão (baseada nos escritos de Charles Howard Hinton, citado textualmente) em From Hell, e que ajuda William Gull a viajar ao futuro e para além da esfera da Londres terrena. Esse espaço da imaginação seria como que uma dimensão ou um plano maior, superior à nossa, na qual existirão todas essas formas imaginárias (no sentido agora de “imaterial”). De quando em vez, graças aos poderes inerentes aos criadores ou à vontade dos seres dessa dimensão, ocorre um trânsito, provocando a inscrição de imagens no nosso mundo. Todavia, uma vez que essa é uma dimensão maior, essas mesmas existências apenas podem penetrar o nosso espaço euclidiano de uma forma fragmentária, ainda que nós não entendamos ser fragmentária: vemo-las, a essas formas, como completas, como formas da imaginação. Alan Moore tenta demonstrar como essas formas são, portanto, fragmentos de um tecido (i.e., texto-textura, de textere) mais amplo, desdobrando-o em toda a sua glória. (essa ideia de território-depositório/reservatório é também seguida por Morrison – recordemo-nos do “Comic Book Limbo” em Animal Man – e Neil Gaiman – todo reino de Morfeus parte deste pressuposto).
Os leitores de Moore (e de Grant Morrison, ou de outros muitos autores) conhecerão decerto as referências meio-veladas e invertidas à novela filosófico-matemática Flatland, de Edwin Abbott Abbott, e se conhecerem o terceiro livro da série de Moore e tal. 1963, com a história do Hypernaut a cruzar-se com uma criatura da 4ª Dimensão, saberão identificar de uma forma simples em como essa associação não é de todo casual. E que melhor maneira de fazer representar, como indicaram alguns dos leitores de Black Dossier, a entrada de criaturas da terceira dimensão na quarta do que introduzir a terceira dimensão num meio de representação, a banda desenhada, que emprega duas? A técnica da 3D (do artista Ray Zone, que já havia participado em outros projectos idênticos) e todo o ritual e estranhamento que implica (os óculos que vêm com o livro têm um “terceiro olho”) pretende ser assim uma representação, fragmentária, claro, do que será o acesso a essa outra divisão superior da existência. Adenda: de todo o modo, já Baudelaire havia dito o mesmo, por outras palavras, mais atentas: "A imaginação não é a fantasia... A Imaginação é uma faculdade quasi-divina que se apercebe...da relações íntimas e secretas das coisas, das correspondência e das analogias".
Contudo, esta Imaginação não ganha forma apenas através das imagens, mas igualmente através das palavras. A entrada visual no Blazing World (outra referência literário-filosófica) faz-se através de um voo de balão numa página dupla, pejada de referências (que mais uma vez o site de Jess Nevins ajuda a desvendar, e a que eu acrescento a chegada de Nemo e os seus companheiros a Nova Iorque após a aventura em Marte), sendo a mais importante os vários arcos que servem de fundo, e os quais parecem mimar o entendimento e representação cabalísticos de um Robert Fludd, apenas uma das muitas formas de sublinhar, uma vez mais, a ideia de um universo constituído por diversas camadas, empilhadas e sucessivamente mais complexas.
Já a penetração da linguagem estranhada faz-se de modos mais ou menos subtis. A personagem que responde pelo nome de Flashing Monsignor (baseada numa personagem de livros infantis da passagem do século XIX para o XX chamada Golliwog, e muito marcada pelos preconceitos rácicos que existiam patentes então) fala de uma maneira surpreendente que me recorda três linhas de associação: duas ao universo da banda desenhada, através dos sons guturais e indefinidos do Imp (outra caricatura que seria hoje considerada racista) do Little Nemo, e dos palrares temperados dos habitantes do Coconino County de Krazy Kat; a outra pela literatura, sobretudo os vórtices linguísticos de Finnegans Wake de James Joyce. Algumas das palavras são identificáveis, como “Tharblo” que servirá para “Thar she blows” (o famoso grito aquando se avista uma baleia, mas que curiosamente não existe no Moby Dick de Melville), outras remetem para um imagem, lá está, imediatamente entendível mas difícil de explicitar, como “panculiar” ou “selfsum” como neologismos por composição que representarão uma situação mais complexa que a das duas palavras separadas... Esta liberdade da linguagem parece servir de contra-ponto ideal para a sua restrição anterior, como era prevista na “Newspeak” empregue no início do livro e nalguns dos documentos apresentados, e de que a Inglaterra ficcional de que se tinha emergido (esta é a linguagem não só simplificada como mortificada do regime do Grande Irmão em 1984, de Orwell). As referências neste Blazing World sucedem-se, quer no combate entre Engelbrecht (personagem de Maurice Richardson, e cujo nome traduzido literalmente significaria “Quebrador de Anjos”, recordando um papel invertido de Jacob/Israel?) e a Poesia, a presença de Gulliver (cujas aventuras o levaram à academia de Lagado, em Balnibarbi – capítulo 5 da parte 3 - , onde se discutem maneiras de “simplificar” a linguagem), e a de Ariel e Calibão, acólitos distintos de Prospero, e que assumem cada um um modo também distinto de entender a linguagem (a grande frase de Calibão é “You taught me language, and my profit on it is I know how to curse”). E ainda algumas personagens se referem ao modo de se falar “para trás” (Mary Poppins fá-lo na breve cena em que participa) daqueles que vêm dessas dimensões superiores. A ideia com que se fica, portanto, é de que esses vários estranhamentos internos da linguagem, mas positivos, “crescendos”, são uma forma de permitir que os “sonhos” e “fantasias”, que Prospero indica, desses outros planos se introduzam para o nosso mundo.
Será mais que óbvio que o cruzamento destas duas linguagens que se coligam entre si nas suas potências supradimensionais e onde ambas drenam essa imensa fonte se coaduna na perfeição com a natureza da banda desenhada. Moore explora continuamente esta possibilidade, talvez em Promethea do mais acabado modo, e com The Birth Caul e Snakes and Ladders (performance musical/spoken word/banda desenhada) explorado em direcções mais flutuantes. Mais, em várias entrevistas Alan Moore mostra o seu desagrado em como o seu trabalho de desconstrução dos superheróis e de outros clichés da banda desenhada (Watchmen, Miracleman, V for Vendetta) acabariam por desencadear um rol de cada vez mais negras criações (de que Rob Liefeld, Todd McFarlane, Jim Lee e até mesmo Frank Miller seriam altos mas, nada paradoxalmente, paupérrimos exemplos) e como pretendeu resolver e inverter essa mesma situação através da criação de obras “positivas”, nas quais se inscrevem Supreme, Top Ten, Promethea e, até um certo ponto, The League... Moore (e Morrison, ainda que o autor escocês de uma outra perspectiva) acreditam na potencialidade da banda desenhada como um efectivo instrumento de pensamento e do seu descerrar (dos limites) e abertura (para o imenso continente).
Um outro aspecto destas associações, dos blocos fragmentários retirados de outros domínios ficcionais para uma só soberania, eleva-os a todos a um fundo comum (um intertexto para criar um contexto), que é, finalmente, aquilo que penso Moore quer monumentalizar. São vários os nomes que se poderiam dar a esse fundo. Literatura Ocidental (mormente inglesa, claro está) é eventualmente um deles. Diz-se que uma vez perguntaram a Ghandi o que é que achava da Civilização Ocidental. Ele respondeu que seria uma ideia maravilhosa (parece que não é apócrifa esta anedota). Moore segue essa resposta e age como se existisse esse contínuo, maravilhoso.
Desafio: propunha a que fossem apresentadas, mesclando meros prazeres juvenis de criatividade vã e algum grau de conhecimento literário e histórico nacional, Ligas de Cavalheiros (e Donas) Extraordinários portugueses... Eventualmente, as boas e pertinentes listas serão presenteadas pela sua transposição a desenhos (por artistas a convidar). Proponho, desde já, e para dar uma ajuda, a que uma Liga medieval não perdesse a presença da Besta Ladradora, e que uma que se espraiasse nos anos 20 empregasse o pobre Doutor Antena, antes da sua morte...

O Incêndio de 1940. Bruno Diogo (auto-edição)


Pequena publicação, no sentido mais restrito e caseiro dos fanzines, e cujas aspirações não se podem igualar a de outros projectos mais musculados, como os Opuntia books, de André Lemos, ou a Imprensa Canalha de José Feitor et al., mas que mesmo na sua singeleza atinge um ponto de felicidade na exactidão da sua forma externa.
O título, O Incêndio de 1940, e o pequeno texto que ocupa três meros parágrafos na primeira prancha parecem não estabelecer qualquer ligação plausível e funcional com a história que é explorada visualmente nas restantes 15 páginas, uma peculiar fábula de um marinheiro/faroleiro abandonado numa ilha, lançando garrafas ao mar, pescando, e ora afugentando ora alimentando gaivotas. Dentro das garrafas seguem mensagens, s.o.s., talvez os parágrafos que acabáramos de ler. Uma história ficcionada pelo próprio personagem? Uma nota histórica que nos ajuda a localizar este marinheiro como o último obstáculo ao exército Nazi que tenta atravessar a Mancha?
Seguem-se depois metamorfoses, mais adivinhadas que efectivas, lentas ou repentinas (lentas na velocidade, repentinas por se darem “fora” do espaço de representação), o marinheiro em gaivota, a gaivota em peixe, o peixe pescado pelo pescador... E este, que vomita a garrafa (ou as garrafas) que havia antes lançado ao mar. E no mar nocturno, um barco fantasmado por uma trupe de marinheiros olhando a gaivota-marinheiro como um augúrio a abater.
Apesar do fanzine poder ser guardado tal qual, só, nas prateleiras dos restantes, a sua “capa” é uma garrafa de vidro, de cerveja. Outros zines intentaram estratégias semelhantes, algumas até bem mais arriscadas que esta, sendo as mais famosas as inúmeras criações de João Bragança ou ainda alguns dos números da espanhola La Más Bella. Mas Bruno Diogo não está aqui a tentar análises ou invenções formais, mas uma resposta minuciosa e que respeite os dois lados da sua ficção (daí que tenha falado de uma “forma externa” para uma outra, claro, “interna”). Será a mensagem enviada pelo marinheiro esta mesma história, esta mesma banda desenhada que aqui junto a nós vem fundear? É possível que este pequeno conto de metamorfoses, breve apontamento de uma vigília suspensa provoque em nós uma vontade de o desvendar, mas será tão ilusório esse resultado quanto as formas das criaturas que encerra ficarem quedas.
Nota: se desejarem adquirir uma cópia deste zine, que fez parte de uma exposição que Bruno teve no Porto, no Projecto Apêndice, procurem obter através do blog do autor.

25 de dezembro de 2007

Powr Mastrs. C.F. (Picturebox Inc.)


Uma das formas como poderemos ver o movimento das artes – se se quiser delimitar e coarctar o seu poder poder-se-á falar da sua “evolução” ou “avanço” – é a de ela provocar um efeito de metamorfose interno à sua digestão, englobando uma coisa que teria sido conhecida até uma data precisa por um nome e, assim, como e com uma determinada qualidade, natureza, escopo, alterando-lhe não os seus elementos constitutivos, mas o modo como se vê essa qualidade, natureza e escopo. Isto é, “o mesmo” é-nos dado a ver “como sempre” mas como se este “mesmo” fosse “novo” (Goethe: “Não existe passado, para o qual tenhamos de olhar para trás, só existe em eterno novo, que se conforma a partir dos elementos, em expansão, do passado...”). É por isso que os discursos em torno da originalidade são um pouco cansados em si mesmos, pois apenas desvelam um interesse, muito rudimentar, pouco desenvolto (por outras palavras, que ainda não deu voltas suficientes sobre si mesmo, como o pensamento o deve fazer para se deslindar e se reflectir), sobre os domínios mais espectaculares, superficiais, técnicos que as artes podem produzir. O que Walter Benjamin chamou de “teor material”, por antinomia e correspondência dialéctica ao “teor da verdade”, e que já havia aqui empregue. Assim, aqueles que desfolharem rápida e distraidamente Powr Mastrs, de C.F., dirão eventualmente estarmos perante uma obra “pouco original”, até “má”, por entre a vazão de obras bem mais espectaculares e publicitadas naqueles meios de comunicação e divulgação que mais nos presenteiam com novidades-que-são-mesmidades que qualquer outra coisa.
O “mesmo” a que me refiro, que se torna “novo” na obra de Christopher Forgues (aprendemos a desdobrar o nome de C.F. - assim surge em muitas das publicações estado-unidenses, sobretudo a Kramer’s Ergot - na Glomp) são os elementos que se encontram naquilo que se chama, por vezes com mais propriedade que outras, de “art brut” ou “outsider art” (não necessariamente sinónimos). Uma figuração elementar, uma certa linearidade narrativa em termos de causalidade e objectivos, mas graus diferenciados de complexidade em termos de referências ao mundo real, à organização lógica dos elementos, às linhas de fuga e de direcção dos temas internos, um preenchimento quase obsessivo pela pictorialidade das superfícies de inscrição, são alguns desses elementos ou traços comuns. Todas essas características – apenas formais – surgem baralhadas e reapresentadas e refiguradas na obra de C.F. (e de outros dos seus companheiros), ainda que num contexto de bem mais forte socialização, em que os artistas envolvidos têm consciência do diálogo que estabelecem com essa tradição “lateral” do discurso das arte, e com os variadíssimos agentes das esferas das artes, mais ou menos alargadas (da escola aos amigos até às galerias e editoras).
Por alguns elementos presentes em Powr Mastrs, arriscaria a aproximar C.F. directamente a Henry Darger, e à famosa opus magnum deste (The Story of the Vivian Girls, in What is known as the Realms of the Unreal, of the Glandeco-Angelinnian War Storm, Caused by the Child Slave Rebellion), ainda hoje inédita na sua completude, mas cujos trechos já surgiram em várias publicações, inclusive a Raw de Art Spiegelman (2ª série). Para aumentar essa convicção, por outra área, repare-se num dos títulos do projecto (individual) musical (tal como outros artistas de Fort Thunder, também C.F. se vê envolvido sobretudo da onda do noise), deste artista, Kites: Royal Paint with the Metallic Gardner from the United States Helped into an Open Field by Women and Children.


Uma das características dessas artes, tomadas como um todo, é a noção estética de horror vacui, o “horror ao vazio”, que leva os artistas “brut” a preencher ao máximo a superfície de inscrição com elementos o mais mínimos possíveis, não havendo qualquer espaço em que não haja espaço de símbolo ou de ícone. Mas como já havia indicado neste espaço, essa noção pode ser entendida de um modo positivo, com Gombrich, alterando-lhe o nome para amor infiniti, e lendo-a como uma complicação ou aproximação plasmática entre a superfície e a inscrição, que se vai multiplicando e reproduzindo num movimento em direcção ao infinito (veja-se The Sense of Order). Curiosamente, o seu oposto será o minimalismo de um Donald Judd, que se quer quase como asséptico, como sem qualquer centímetro onde possa brotar o orgânico (e imprevisível) que pertence à vida. Curioso, digo, porque neste livro de C.F. há espaços – diegéticos – que são contíguos mas contrários na sua natureza. Por exemplo, e é daí que retiro o exemplo da imagem, o cientista Mosfet Warlock vive e trabalha num espaço interior que se apresenta em meia dúzia de linhas, rectilíneas, paralelas e perpendiculares, sem sombras, desprovidas de ornamentos, e onde as acções e os objectos dessas acções surgem esquematicamente, estruturando pranchas que recordam o trabalho de design que discutimos em torno de Yuichi Yokoyama. Todavia, de quando em vez apetece-lhe “espairecer” (na história, fala-se de um limite: "Sempre que Mosfet ia o mais longe que podia no laboratório, saía e ia pensar") no exterior, um jardim profusamente floreado, cheio, preenchido, quase mágico com a presença variegada de plantas fantásticas, cada uma com o seu oculto uso. Essa pequena dicotomia é aplicada ou desenvolvida na própria diegese, na qual este cientista-mago é capaz de aprisionar a sua sombra/espírito para criar uma maquinaria ainda sem nome ou a de desenvolver pequenas sementes maquínicas que, depois de plantadas, desenvolverão uma espécie de vida autónoma. Ou seja, as diferenças intransponíveis – pois não existem graus entre elas, mas naturezas diversas em absoluto – entre a vida e o maquinal, entre o que se desenvolve num interior e o que nasce para um exterior, entre um mínimo e um exponencial, encontram-se aqui unidas por uma porta, um túnel, uma caverna, uma passagem. E há muitas passagens a unir espaços em Powr Mastrs.
Se bem que narrativamente não haja elos de ligação quaisquer entre esta obra e outras, já de um ponto de vista artístico, no que diz respeito ao seu pulsar mais profundo, mas ainda também nas suas vertentes de família próxima, de produção, de vivência, poder-se-á unir Powr Mastrs aos livros de Brinkman (Teratoid Heights) e de Chippendale (Ninja, Maggots), assim como à produção gráfica e de banda desenhada de todo o colectivo Fort Thunder (pelos quais já passámos, para além dos artistas citados, com Brian Jones e outros). Brinkman, Chippendale, Jones e Forgues são todos cultores de uma aproximação quase caseira ou artesanal em relação ao trabalho da banda desenhada, onde inserem toda uma série de características das fontes artísticas em que se inscrevem ou citam (incorporação de erros, apropriação de imagens, referências à “outsider art”, como vimos, uma aposta numa aparentemente simples e até simplista construção de nós narrativos de causa-efeito) mas ao mesmo tempo com uma patente simpatia para com uma tradição de banda desenhada mais mainstream do que alternativa: com as ideias de personagens fantásticas e criaturas maravilhosas, a presença de toda a espécie de milagres e fantasias, referências a um imaginário ou intertextualidades de relativamente fácil identificação, a ideia de aventura, a criação de verdadeiros “mundos” de escapismo à realidade que nos circunda...
E é ainda na antologia citada, a Glomp, que surge um dos episódios incluídos em Powr Mastrs (“Inplexe-Knowecrypt” na Glomp, nomeado “The Sinking” no livro), o que leva a acreditar, pela inclusão do número 1 na capa e a incompletude das promessas narrativas no interior do livro, de se tratar de uma saga maior. Algumas das personagens já haviam aparecido noutras publicações (a Kramer’s Ergot 6 tem o Tarkey, por exemplo), o que reforça todas estas ideias de saga maior, de um grau elevado de complexidade e intercruzamento que se poderá vir a expressar em várias formas, de um projecto a longo prazo que iremos acompanhando.
Nada de novo, por assim dizer, mas quão novo por dentro...

El Suicidio del Amor. Daisuke Ichiba (Los Papeles Pintados)


No final deste pequeno volume existem algumas informações circunstanciais que nos ajudam a entendê-lo como um objecto desses que surgem fulgurante e momentaneamente, para depois desaparecerem e talvez serem votados ao esquecimento. Esta editora espanhola, Los Papeles Pintados, parece ter apenas editado este mesmo volume, e este volume foi criado de propósito para esta edição. Pelo que se pode entender, Daisuke Ichiba deu início à sua tarefa artística no espaço das duas últimas décadas, auto-editando pequenas publicações e amealhando uma reputação mais internacional através de exposições pela Europa (sobretudo França e Espanha). Chegou, porém, a participar em projectos da Dernier Cri e na antologia Bête Noire. El Suicidio del Amor é uma colecção de desenhos, mais ou menos organizados de acordo com temáticas ou especificidades representacionais que o torna uno, apresentado sob a forma de livro, mas que poderia servir como volume companheiro, senão mesmo catálogo, de uma sua exposição (de certo modo, idêntico a experiências de Amanda Vähämäki ou Marco Mendes).
De acordo com os princípios da organização dos géneros na mangá, é muito fácil de identificar o nicho no qual Ichiba trabalha, aquele conhecido pelo nome de ero-guro, fazendo convergir o grotesco, o horrendo, o obsceno, com o erotismo, para não dizer a pornografia, mas na qual a sexualidade acaba por ganhar uma dimensão muito mais atroz que sensual, não dessa violência inédita e impermanente que suscita mais dúvidas de entendimento e decisão como acontece na pintura de Francis Bacon, nem do asco que nos averta o olhar como a obra de Fredox, mas um furor do encontro brutal entre a morte e o sexo que abre espaço a uma repugnância quase imediata pela clareza com que as imagens são apresentadas, a clareza que é própria da maioria da criação imagética da mangá. Nesse género, talvez se possa indicar o nome de Suehiro Maruo como sendo o mais famoso, todavia aquele que é também pautado por uma maior estruturação linear em termos de narrativa, i.e., de significados limitados numa estória, em um sentido (propriamente dito), uma interpretação balizada. Um pouco mais além, ainda se poderiam citar os nomes de Hiroshi Nakamura ou de Toshio Saeki, enquanto cultores de um estilo que os leva a publicar colecções de desenhos que se unem por princípios plásticos, os quais, ainda que possam criar a ideia fantasmática de uma história, ou de um tema, são sempre laterais a essa entrega normativa. Retornam ao princípio organizativo de livros que nos parece ter sido fundado, no Japão, pelos artistas das ukiyo-e, mormente Hokusai. Aprofundam-se num limiar, não num centro.
As imagens de Ichiba rondam um território mais ou menos expectável deste género, a saber, a erotização de estudantes de colégio (menores), a presença de homens que podem ou não estar no lugar do autor (projecção, reflexo, receio?), desvios e transformações dos corpos que oscilam muito perto dos yokai (que mencionei sobretudo aquando de um livro de Shigeru Mizuki)... Aliás, quase se obriga aqui a uma incessante busca por sentidos psicologizantes, mas torna-se óbvio, ou deveria tornar-se óbvio, que essa busca não pode jamais ter um fim. É como se o movimento inicial da primeira associação levasse a um ímpeto contra o qual não pudesse existir qualquer obstáculo ou inércia que o diminuísse.
Apenas a título de exemplo, tentemos alguns, até banais, recorrentes e evidentes. Uma das imagens que aqui se repetem é as das raparigas, ou uma mesma rapariga (o que aumenta o grau de coesão narrativa que é possível), com um dos olhos tapados como se tivesse passado há pouco tempo por uma cirurgia qualquer (coisa bastante regular no Japão, que se vê repetidas vezes pelas ruas das cidades). É a partir dessa ideia em torno de cirurgia sobre os olhos que podemos encontrar algumas direcções, desde as de cirurgia estética (abrir os olhos ao modo dos ocidentais, deixar entrar mais luz, transformação do corpo conforme as normas instituídas pelas fantasias veiculadas em meios como a banda desenhada) às de perigosidade para o artista (cegueira, invasão ao corpo, interrupção da tarefa), passando ainda por outras mais exactas, como a excisão, anda que momentânea, da visão de profundidade: tudo termina por se plasmar nas duas dimensões dos desenhos no papel através dos quais ganhamos acesso a esta imaginação (não no seu sentido banal, diga-se, mas sim enquanto “criação de imagens”).


Outras imagens são as substituições, visíveis, aglomeradas num mesmo plano, de olhos, vaginas, bocas. A ideia da vagina dentata é patente, com todos os medos ou obsessões que ela suporta. Todas as ideias de transmissibilidade e comutação tornam-se assim possíveis: a visão é uma outra natureza de sexo, o sexo é uma forma de nutrição ou consumpção, todas essas tipologias de relacionamento (sexual, visual, alimentar) impedem um outro, mais socializado. Existem também animais escondidos e sexos expostos, num outro jogo especular relativamente fácil de detectar (a imagem que aqui mostro concatena todas estas linhas interpretativas, de uma forma muito clara e visível), mas com variações, igualmente, onde a emergência do lugar do sexo ou dos animais de dentro para fora dos corpos (humanos) de algumas das personagens ocupa lugar central. É como se aquilo que socialmente mais ocultássemos fosse súbita e brutalmente revelado à luz do dia, perante o olhar de todos, mas de tanto se revelar – uma atitude moralizante diria que vivemos hoje em tempos licenciosos, revelantes [não, não é gralha] demais – se tornasse inócuo, inoperativo. Num sentido etimológico, incivil, isto é, “sem lar”, pois para existir um lar é preciso estabelecer fronteiras mínimas, físicas, morais, existenciais. No mundo da animalidade, do regresso ao corpo-apenas, um corpo, mais que desorganizado, não-organizado, não pode existir qualquer cidade.
Para reforçar esta leitura, recordemos uma frase de Tertuliano: “eiusdem libidinis est videri et videre”, cuja tradução literal e selvagem poderá ser “é tão libidinoso ser visto quanto ver”. A aliança entre o olhar e o contacto, sexual, era directa no entendimento cristão iconoclasta (a anti-imagética da religião mais imagética), mas a interpretação é genuína: o olhar é já toque (o que nos remete, uma vez mais, à ideia de Lucrécio que havíamos empregue aquando da discussão do último livro de Tilmann, em cujo livro as personagens “fornicadoras” têm direito a órgãos genitais mas não a olhos nem olhares).
Entregarmo-nos à mortandade dessa dimensão do ser humano é apenas uma outra forma de enunciar o que o título, de uma forma mais poética, desviante mas também mais elíptica, indica como o suicídio do amor.
Nota: agradecimentos a Richard Câmara por ter, mais uma vez, servido de correio. É sempre uma ajuda preciosa que me permite ir conhecendo mais e mais.

21 de dezembro de 2007

Le petit train du côte bleue & Travesti. Edmond Baudoin (6 Pieds Sous Terre/L'Association)


Há qualquer coisa no espírito de Baudoin que lhe é obsidiante, um carácter propenso a estar emaranhado nas intricadas redes da sua memória, estranha, já que não é suficientemente (ou apenas?) nostálgica para o impedir de se reunir ao tempo presente e à continuada acção da sua vida, nem o liberta numa autonomia alheada desse total experienciado (vécu). Vive nele, a memória, como sua parte constituinte. Essa mistura entre a vida e a arte que aqui indicio não se observa por um qualquer recurso extratextual, a entrevistas, por exemplo, e muito menos a qualquer tipo de intimidade com o autor. Trata-se de uma dimensão por demais visível e estrutural de cada novo episódio da sua obra (como anteriormente o já havíamos assinalado, em que um novo livro é parte de um processo contínuo e unificado). É como se cada livro fosse uma pedra nova num muro em construção, imagem de todo o modo querida a Baudoin, único tipo de muro (ou parede, já que se trata do francês mur) que ele preza, excepção aos demais, por ser dos que o avô havia construído – e que nos remete, aos leitores de Baudoin, imediatamente a Couma Acò, onde testemunhamos o corpo dessa mesma rememoração.
Seja na forma de um diário gráfico – Le petit train du côte bleue (6 Pieds Sous Terre) – seja através de uma adaptação de um romance – Travesti (L'Association) – esse carácter não se altera, apesar de ganhar direitos de cidadania mais claramente noutro tipo de projectos, digamos, directos, onde se assume na totalidade a responsabilidade dessa construção contínua. Quase não haverá nada de novo a dizer, a não ser as circunstâncias e elementos mais externos. Todavia, o não haver nada “de novo” não se consome como uma fraqueza, mas antes se constitui como uma direcção de uma confirmação poética dessa mesma direcção. Quantos autores fazem imbricar os mesmos vocábulos, temas, figuras, traços, quantos enveredam pelos mesmos caprichos e fantasias, quantos repetem e variam num mesmo espectro e a cada uma dessas voltas, retornos, revisitações, ritornellos, se tornam mais fortes? E cada um desses “mesmos”, cada uma dessas variações apenas vêm consolidar essa mesma personalidade, esse engenho, essa força. Baudoin, quanto a mim, a esse número pertence.

Le petit train du côte bleue é um companheiro de La mort du peintre, vivendo da proximidade, mesmo que momentânea, do autor com uma pequena zona a sul de Marselha. Registo de desenhos e esboços retirados da vivência imediata do espaço, pequenos troços de acontecimentos que o rodeavam mas a que era alheio, curtas dissertações em torno das questões sociais, económicas e políticas desses locais (relevando preocupações relativamente banais, com as quais concordaremos sem esforço, mas por isso mesmo resvalando por vezes num certo facilitismo desse mesmo discurso). Temas recorrentes, são muitos, desde o (esse cansado) chavão de que uma mulher o é por todas as demais, e que amarmos todas as mulheres é como que um respeitar maior da mulher enquanto força dinâmica da natureza... na verdade, atropelando a possibilidade de entender que encerrada numa mulher poderá estar uma personalidade que deve ser conquistada na sua exactidão, e que nessa conquista não há lugar para vacilar por outras margens, Baudoin acaba por ser derrotado na sua condição de “sedutor” (aliás, em Travesti, o autor faz representar todas as cidades do mundo por mulheres, e esse “Eterno Feminino” pode-se tornar algo sem temperança, incomodamente chão, uma mera mania, mas acima de tudo uma cegueira). Técnicas recorrentes, são muitas, inclusive a da integração de desenhos feitos “ao vivo” ou referências fotográficas alteradas pelo desenho dos breves contornos nas páginas apresentadas como finais, não o sendo jamais, mas em contínuo.
Travesti é uma adaptação livre de um romance do escritor romeno Mircea Cartarescu, cujo título da tradução francesa é Lulu, mas Baudoin faz reverter ao original. O romance, sub-entende-se, é como que uma espécie de Bildungsroman, que segue um avatar de Mircea na sua juventude e abertura ao mundo. Para ser mais preciso, recontam-se os dias passados numa colónia de férias (em Budila), o que implica uma anti-socialização com os demais rapazes, uma breve enfatuação com uma rapariga, a descoberta da(s) sexualidade(s) (um conflito e descoberta mais interior que em relação ao outro, não obstante os “encontros”), um mergulhar nas dobras do corpo aberto, uma via ígnea para os pesadelos, a emergência das imagens do trauma, as memórias mais perigosas... E se disse tratar-se de um avatar de Mircea Cartarescu, é para precisar não ser uma autobiografia, mesmo que episódica: este jovem Mircea, de nome Victor, sonha em tornar-se um escritor famoso, tornado famoso após a sua morte, projecta no futuro a sua própria morte pela escrita, e é nesse momento final que se recorda da juventude, numa assunção de uma analepse proléptica tão poderosa que se desregula da linearidade mais esperada dos romances.
Todavia, estas equações tornam-se ainda mais intricadas, graças ao grau de liberdade que Baudoin exerce nesta adaptação. Não se trata de uma ordenada transposição dos elementos encontrados no romance, reduzidos a objectos utilizáveis e remisturáveis e reapresentáveis, mas de uma abertura do espaço do romance, através da entrada do próprio Baudoin como personagem interna em busca da estruturação dessa mesma adaptação. Como se poderia já esperar – uma confirmação que nada tem a ver com a desilusão de um “já sabia” mas como se se tratasse de um reencontrar de um amigo de longa data e o prazer de dizer “estás na mesma” – ocorre uma convergência das várias linhas que Baudoin foi criando nas suas obras. Mais, é expresso pela boca de uma das personagens “reais”, revelando o programa... Que se seja explícito: Baudoin representa-se a ele mesmo na rota de (en train de) visitar Bucareste e Budila para obter informações e referências que o ajudem à adaptação, encontra-se com outras pessoas, inclusive o próprio Mircea Cartarescu, para melhor entender a obra, discorre sobre a sua relação pessoal com as cidades, as mulheres, a literatura em geral, o seu trabalho, as crises de trabalho (representando-se sentado em frente do estirador a tentar avançar). E esta “realidade” e a “ficção” do romance Travesti entrelaçam-se. Voltemos à personagem; que lhe diz (a Baudoin-enquanto-personagem)? “...é simples. Colocas o Mircea na cena a observar o seu fantasma Victor, um escritor que olha o seu fantasma adolescente, que fita Mircea num espelho. E tu, tu espias todos estes fantasmas, mais os teus”.

Que os fantasmas se entrelaçam não é apenas uma interpretação por sobre a superfície dos eventos narrativos: encontra-se na representação activa: das cenas mais belas e poéticas, como o casal de jovens deitados sobre a erva, de dedos entrelaçados, sob o signo de John Donne (imagem acima), às cenas mais grotescas, como a procissão de máscaras e monstros e travestis que culminam no festival, onde serpentes e olhares se entrelaçam num vórtice perigoso (imagem abaixo). Os ruidosos medos de Victor/Mircea encontram-se com o homem de cabeça aberta de Le Premier Voyage, as suas projecções num passado que jamais existiu cruzam-se através do ícone do menino de dedo na boca de tantos livros de Baudoin, as paisagens que se abrem em brancos por traçar coincidem. Algumas das características dos exercícios mais felizes anteriores de ilustração de Baudoin – dos romances de Ben Jalloun, de Le Clezio – ou de outros encontros literários – com Sauvaigo, Brun-Cosme, mas também Tanguy Dohollau – , ainda transversais, encontram-se aqui numa aproximação directa, entregue, ao seu longo e contínuo projecto, aos seus “fantasmas”.

Ao dar-se a ele mesmo corpo interno à adaptação, e ao fazê-la cruzar com a voz do romancista (o Mircea tangível, dialogante), surgem-nos duas vozes fantasmáticas projectadas no interior do romance original, agora mera ponte de partida [o que foi gralha, corrigiu-se em algo mais acertado do que a língua permitia] e do encontro de ambos os autores. O que surge, enfim, são os ambientes ominosos, estranhos (estrangeiros em todos os sentidos), perigosos. É uma ruptura preferida à construção de espaços de integração, sem dúvida. Mas é como que uma desintegração no seio da qual, sempre, surge vida nova.

12 de dezembro de 2007

The Perry Bible Fellowship. Nicholas Gurewitch (Dark Horse)


Tal como havia proposto num post anterior, também aqui seguirei a mesma estratégia: a de eleger uma palavra que em si mesma encerra a chave (ou uma das) de interpretação e crítica da obra em questão. E a palavra a utilizar em relação ao trabalho de Gurewitch é intertextualidade. Esta palavra provém especificamente da teoria da literatura, tendo passado por vários graus de complexidade, de Bakhtin a Bloom, e podemos reduzir a sua noção aqui para dela relevar apenas o que nos será útil, circunstancialmente. Trata-se de uma ideia, clara na intuição, mas mais complexa de tornar objectiva (isto é, passível de atravessar objectos tangíveis, mesmo que estes tenham o nome de “textos”, “discursos”, “obras”, não o deixam de ser, compostos por elementos atómicos analisáveis), de que nada existe que não esteja em resposta a algo anterior. Isto é, cada novo texto surge necessariamente num contexto determinado o qual, não é redundância, o determina por sua vez, obrigando-o a estabelecer um diálogo com esse contexto, que interaja com os elementos que a circundam e fundamentam, e que pode dar o nome de tradição ou de originalidade, família ou corte, influência ou autonomia. Não existe nunca um grau absoluto de autonomia, de ab ovo, ou incorrer-se-ia num perigo de alienação tal que tornaria esse texto ilegível (algumas obras do que se chama “outsider art” roça essa ilegibilidade, mas se suscita interesse e provoca a emergência de leitores seus é porque essas leituras se lançam àqueles elementos que são resgatáveis a essa inscrição no mundo e não o seu carácter de separação).
Posto isto, há todavia vários graus desse equilíbrio entre autonomia e dívida (a obra de Bloom A Angústia da Influência parece-me um bom ponto de partida para esse estudo). A maioria dos autores deseja – revelando serem mais ou menos iludidos – ser “original”, “diferente”, “único”, mas se bem que exista uma natureza única a cada ser humano, independentemente das suas qualidades ou desvirtudes, somos mais parecidos com muitos outros do que aquilo que desejaríamos ser. Até incorreria no perigo de uma boutade, afirmando que quanto mais esforço consciente um artista faz para se destacar dos outros – as mais das vezes por via de pirotecnias ou exercícios de grande espectacularidade ou domínio técnico mas que são apenas contornos dourados em torno de um pífio e vazio dizer – menos escapa à gravidade do “mesmo”. Mas há outros autores, não necessariamente os “melhores”, os “mais interessantes”, ou outros qualificativos, mas simplesmente autores outros, que preferem mergulhar na mais clara das dívidas, nas mais taxativa das citações, para criarem aí, nesse espaço de diálogo óbvio, o seu próprio cunho. Nicholas Gurewitch é um desses autores. The Perry Bible Fellowship surge agora em livro, mas a sua vida iniciou-se, e ainda decorre, no seu próprio site. Faz parte desta nova tendência de autores solitários, sem editora, a criarem trabalho (que pode ser mais ou menos consistente, mais ou menos inovador, mais ou menos digno de atenção) e a distribuírem-no de graça através de novos sistemas informáticos “à porta” (rss feeds). Mccloud havia falado nesta possibilidade em Reinventing Comics e isto demonstra que tinha uma certa razão, ou que ela se vai formando. É uma colecção de tiras de banda desenhada, de um humor cáustico e até mórbido mas sem jamais cair em obscenidades directas ou pequenos horrores (que não são necessariamente mal-vindos, já que se podem com eles estabelecer qualidades, como nos casos de vários trabalhos da Ferraille Illustré e da Argh!). A leitura destas tiras obriga-nos ao mesmo tempo de revisitar as referências de que partem; mais, sem essas referências de raiz, algumas das estruturas diegéticas não são inteligíveis, muito provavelmente. Sigamos três tiras, esperando assim estabelecer três das estratégias de Gurewitch.

Se o leitor não estiver familiarizado com as tokusatsu, isto é, as séries de televisão japonesas de acção, especialmente aquelas que envolvem normalmente grupos de heróis (Power Rangers, Super Sentai, Beetle Fighters, etc.) que separadamente controlam robots os quais se poderão agregar num robot-herói ainda maior, esta tira não faz sentido (“não tem piada”). A primeira vinheta, entenderá o leitor familiarizado, é toda uma só equipa, unida, provavelmente no interior da pistola. Depois percebemos que não, afinal o Skorpex estava numa dessas sub-vinhetas. Houve uma disrupção interna nas regras do que era mais expectável no Tokusatsu (e suas versões em mangá).

Se acompanharem desde a primeira à última tira, aperceber-se-ão não só de um desenvolvimento da linha própria de Gurewitch, como da sua crescente capacidade em mimar a linha de outros autores assim como de tornar o seu próprio estilo despojado de certa forma, mas para conseguir atingir maiores efeitos de expressão. Estas crianças, apesar dos elementos formais dos rostos não poderem ser mais simples (correndo-se o risco de não parecerem mais rostos, ainda que talvez se pudesse apagar a boca), são passíveis de um largo espectro de expressividade, graças às pequenas mudanças que o autor opera nesses mesmos poucos elementos. Neste sentido, remete-nos, de novo e como sempre, ao ensaio de Töpffer sobre estas mesmas questões. Muitas das tiras com as crianças do estilo “pessoal” de Gurewitch colocam-nas em situações de torturas indizíveis (e nesta nota, é muito próximo de Max Cannon). Suffer the children. Excelente.

Algumas das tiras de Gurewitch são citações directas de autores e obras famosas da literatura (ou outras artes) infantis. No caso presente, trata-se de uma homenagem sarcástica a Shel Silverstein e o seu livro ilustrado http://lerbd.blogspot.com/2005/12/red-meat-gold-max-cannon-st-martins.html. Toda a moral de abnegação e dádiva que Silverstein estabeleceu nesta (e noutras) obra é aqui derrubado em quatro vinhetas. Mas o diálogo que se estabelece é bem mais profundo, não se esgotando no humor negro. Aliás, é através de muitos destes jogos humorísticos aparentemente superficiais que Gurewitch coloca questões em torno do racismo, das políticas de um capitalismo férreo, da educação estupidificante em curso, da hipocrisia religiosa, e até mesmo da existência, evolução e ontologia humanas. Outros autores visitados são Edward Gorey, Roald Dahl, Hank Ketcham, Robert Crumb, já para não falar de toda uma série de estilos de ilustração infantil, e de um rol de referências a séries de televisão, jogos de computador, obras de literatura de ficção científica, de fantasia ou outra, e até ícones e símbolos da publicidade.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, pela referência.

Argh! AAVV (Pure Basure)


Eis um exemplo de uma revista de banda desenhada que apresenta um projecto simples, perfeitamente delimitado no seu escopo de acção e públicos visados e que, por essas mesmas razões, os cumpre cabalmente, tornando-se assim um projecto coeso. Não adiantará fazer futurologia, pois o mercado espanhol de banda desenhada, sendo naturalmente mais forte que o português, e também mais feliz, e talvez mesmo mais inteligente, não significa porém que seja alheio às várias crises que poderão assolar de qualquer direcção. No entanto, tendo em conta ainda a estratégia comercial que seguem (em consonância com outras experiências anteriores naquele país, e outros), é bem possível que atinjam um grau de pragmatismo mais protector.
O princípio de coesão da espanhola (Valência) Argh! inicia-se na superfície. Até à data apareceram 3 números, cada qual com sua cor, segunda cor de impressão também no interior. É tentador encontrar no uso específico de cada cor um ditame sobre as histórias no interior. O número um é vermelho, e será por essa razão que surgem ilustrações e histórias onde está presente no centro o coração, o sangue, a língua, o assassinato e o suicídio, as operações macabras. Número dois, azul: plasmas de fantasma, água de esgotos escuros, patinagem no gelo, amores não correspondidos, esquimós e bebés mortos de gripe. Número três, amarelo: bílis, urina e outros fluidos e odores corporais, sóis abrasadores, fogos, tigres e ouro. Tudo isto, porém, pode ser uma ilusão, não mais do que uma sugestão que, alterada fosse a cor, me levaria a sublinhar outras valências no interior das mesmas histórias.
A coesão continua um pouco mais por dentro. Apesar de existirem estilos muito diversos, e pequenos contrastes, como por exemplo a que existe entre a linha rotunda e plástica de Félix Diaz e a ligeiramente mais angular e mais devedora da caricatura de Jorge Parras (para apenas falar dos mentores e editores do projecto), há como que uma “linha geral” que os une. Uma linha que se pode encontrar em ilustradores como Roger Hargreaves (Mr. Men) e que se mantém hoje através de Pete Fowler, James Jarvis, Gary Baseman, Tim Biskup, Yoshitomo Nara ou J. Otto Seibold. Não será por acaso que esta fiada de artistas esteja relacionada com uma outra linha de desenvolvimento artístico a partir de algumas das forças comuns à banda desenhada, ilustração e uma certa cultura quer urbana (adulta, mundana, bebendo de várias fontes) quer infantil (um certo tom jovial, a propensão para o coleccionismo, o brincar permanente independentemente da idade, etc.) que se verifica no que já se chama “toy art”. Ou áreas contíguas. Tudo tem a ver com uma certa dose de simplicidade, de rotundidade das formas, de cuteness até. Mas, e ainda de acordo com muitos dos autores citados daquelas áreas, estas figuras aparentemente cândidas e capazes apenas da mais prazenteira das presenças, revelam-se afinal instrumento de uma outra natureza diametralmente oposta, já indicada pela listagem de objectos e temas acima.
As histórias rondam territórios da violência, do sexo, do horror, do obsceno, do fantástico e do fantasioso, de uma grande dose de atitudes adolescentes e piadas “cocó-xixi” para com tudo o que o mundo tem (aproximando-nos do seu título como descritivo), mas em que essa aparente debilidade não se deve à debilidade ela mesma, mas a um posicionamento irónico que mima as debilidades para com ela espelhar tudo o mais (Johnny Ryan e Ivan Brunetti são duas referências neste campo). Digamos que se o amor fosse sentido com o estômago, estaríamos perante aqui um caso de gastroenterite.


Há um punhado de autores regulares e outros colaboradores que se adivinham. Richard Câmara, por exemplo, participou no terceiro com mais uma das muitas versões do Capuchinho... aqui, amarelo. Para além do trabalho de Diaz, que é insuportavelmente apetecível de ser olhado várias vezes mesmo que o que represente nos possa incomodar em termos semânticos (“gelado de rabo”, por exemplo, não soa nada agradável – ver a imagem, dos seus personagens regulares Honky e Smonky), e o de Parras (cujo metralhar de piadas de mau gosto e secas acabam por se tornar a razão da sua graça – ver a imagem de um especial isqueiro), encontramos trabalhos de Luci Gutiérrez, Miguel Porto, Pau Masiques, Luís Demano e Brais Rodriguéz, cada um com a sua prestação estilizada mas segundo pulsões muito próprias, ou trabalhos de Bob Flynn e Martín Lopéz, que são quem melhor desarruma a candura das formas figurais que apresentam, entre outros autores. E apesar de apenas haver uma das suas ilustrações no no. 3, o nome de Moki tem de ser sublinhado.

Conforme todo este espírito moderno, de pragmatismo, comunicabilidade, colaboração internacional, e um trabalho efectivo, o site da Argh! tem toda uma série de dimensões informativas para além da revista, sem deixar de nos centrar a atenção nela como o seu mais forte rosto. Mas a partir daí, poderão descobrir os mundos de cada um dos artistas, e fortalecer mais a linha que os cose a todos na publicação.
Uma curiosidade, mas mais por contraste do que por imanência da Argh!: é o facto de não ter qualquer texto programático, nota de intenções, editoriais ou diatribes contra o “estado das coisas”, de que padecem tantas novas publicações – mormente em Portugal – que querem “trazer novidade” ou “dar uma pedrada no charco” ou “marcar a diferença”. É possível que esta revista o consiga, ou talvez não: mas se o fizer, fa-lo-á fazendo. Alles klar?
Nota: agradecimentos a Félix Diaz e a Jorge Parras pelo envio dos três números da Argh! Gracias, es la hostia!

6 de dezembro de 2007

Electrodomésticos Classificados. Maria João Worm (auto-edição)


Permitam-me uma larga curva antes de chegarmos à obra a discutir. Jorge Luís Borges escreveu algures que até a obra literária mais medíocre ou péssima poderia encerrar em si a mais memorável frase. Mas o contrário é também susceptível. Mesmo na mais portentosa e sublime obra ou autor se poderá descerrar uma frase desastrosa ou uma malíssima metáfora. Não obstante o incomensurável e indiscutível valor da escrita de António Lobo Antunes, jamais me pude esquecer de uma terrível frase encontrada num dos seus romances (Auto dos Danados): “A criada (...) introduziu duas cartas de pão de forma na frincha de uma caixa de correio da torradeira”. Talvez o que falhe aqui seja o facto de que esta é uma metáfora metonímica pífia, na qual apesar de existir contiguidade entre cada par de elementos que compõem cada um dos termos, essa aproximação acaba por não servir a nenhum fim ulterior, perdendo-se apenas na graçola dos gestos e parecenças físicas: o sentido esbarra num beco sem saída.

A antropomorfização dos objectos do quotidiano, a comparação das suas “vidas” à nossa, é algo de relativa facilidade, em primeiro lugar gráfica – basta acrescentar dois “olhos” (por mais simples que sejam, e nisto de Töpffer a McCloud foram muitos os autores que o debateram) – mas também em termos existenciais, já que à medida que as tecnologias avançam também as metáforas para a nossa condição a acompanham (para Platão a alma era uma tabuleta de cera, para Descartes falar-se-ia de um relógio, hoje referimo-nos aos computadores como explicação da máquina humana). E a nossa convivência diária e burguesa e confortável com os electrodomésticos acabam por fornecer a estas pequenas máquinas uma espécie de intimidade familiar que outros objectos não conhecem (“o meu carro nunca me viu de pijama”, diria Clarice fractal). Maria João Worm leva essa intimidade até às últimas consequências, mesclando os dois termos da comparação – os electrodomésticos e esse monstro centicéfalo a que damos o nome de nós – até ao ponto do indistinto: isto é, não sabemos se são as máquinas que se antropomorfizam ou se são as relações humanas que se humanizam. Esse carácter indistinto ganha corpo logo no título, uma vez que ficamos numa espécie de dúvida em saber qual das palavras assume a qualidade de substantivo e qual a de adjectivo, ou se são ambas substantivos ou ambas adjectivos.


O que se encontra no interior desta publicação – um desdobrável com as duas faces impressas – é uma quantidade de anúncios classificados nas quais este ou aquele electrodoméstico oferece(-se), vende(-se), compra(-se), troca(-se) ou procura(-se). Estes anúncios fazem-se acompanhar por vezes por imagens, linogravuras, mas quase sempre os textos têm uma qualidade poética quer do ponto de vista material (as variadíssimas rimas internas) quer do ponto de vista de uma nova realidade aberta ao mundo: “Ventoinha de tecto/cheia de paixão,/confessa que se sente/1 hélice de avião” ou “Máquina de lavar a roupa,/c/velocidade profissional a enxaguar/anseia por 1 soalho que a mantenha no lugar”. Desta feita, parece que Maria João Worm penetra no mundo dos Poetas sem qualidades, título de uma antologia de Manuel de Freitas (pela Averno, 2002) que reúne poetas tais como Vindeirinho, Nuno Moura, Ana Paula Inácio, mas numa veia de humor que a aproxima também de outros poetas, com qualidades “outras”, como e sobretudo Adília Lopes. Como se pelo mais rasteiro “lá de casa” fosse possível aceder ao mais interior das moções humanas – e é. As relações entre as imagens e os textos são a maioria das vezes ilustrativas, nalguns casos adivinhando-se um laivo de um rosto perdido nas linhas sobre a máquina (veja-se o aspirador, o esquentador, o par entre a criada e a enceradora, o reflexo na juke box), e num caso provocando-se um desarranjo tornado surpresa (o “busca-pólos”). Mas é a relação de todos os elementos no próprio objecto, no modo como nos obriga a manuseá-lo, dobrá-lo, virá-lo, lê-lo e contemplá-lo que nos coloca numa certa predisposição de leitura meramente informativa e rápida, predisposição a qual, por sua vez, é divertida em ambos os sentidos, “alegrar” e “desviar”: pois essa é uma acção una, que se consubstancia na descoberta de novos súbitos significados nas relações proporcionadas por estes “textos”.
O peso da mundaneidade destas pequenas máquinas não impede que os sonhos de uma alternativa mais romântica, aquilo a que se dá o nome genérico de “os desejos”, ganhem uma leveza tal que a sua simples enunciação é já uma forma de os realizar: “Ventoinha/de tecto bucólica,/deseja subir ao monte e/transformar-se em eólica”.
Nota: agradecimentos a Maria João Worm, pela oferta da publicação.

Ferraille Illustré (Requins Marteaux)


Há algo no riso que é incómodo. Trata-se de um preço. Ou melhor, de nos apercebemos de um preço.
Rimo-nos às expensas de qualquer coisa, as mais das vezes, de alguém que, naquele preciso momento, se torna inferior.
Podem ser as vítimas “do costume”, gajas velhos pretos estrangeiros paneleiros comunas fachos desportistas mongolóides beatos padrecas balofos carecas etcs. A escolha da nomenclatura jamais poderia ser cândida, pois a própria escolha do vocabulário pretende mediato ser, nada paradoxalmente, imposição de distância para melhor servir de pedra de arremesso. Não pretende ser inócua, essa escolha. Tem de se constituir um divórcio entre a inteligência e a sensibilidade e as percepções que poderão levar ao riso, é obrigatório, é imperativo. Rio-me de uma pessoa que acaba de morrer de uma forma atroz não porque a atrocidade dessa morte seja divertida em si, ou risível de qualquer forma, mas porque a circunstância em que me é mostrada me leva a esse absoluto desligar do que aquilo realmente é e, desprovido da capa humanizante que lhe seria possível, se tornam meros elementos flutuantes que me chegam enquanto anedota. Ferraille Illustré é a publicação regular da editora Requins Marteaux que segue um modo de edição proxíssimo fórmulas ditas clássicas da banda desenhada franco-belga, pré-publicando-se episódios de histórias maiores (“continua...” de número para número), com outros gags de uma ou duas páginas, anúncios fictícios, editoriais humorísticos e criando uma primeira meta-linguagem sobre a própria publicação, secções noticiosas (música e outros livros de banda desenhada) em banda desenhada... Se bem que contenha uma imensa escolha e variadíssima de autores, estilos e propósitos, ela mergulha ainda numa outra tradição do seu espaço geográfico: a de revistas humorísticas e iconoclastas que conheceu um espectro tão grande como da Pilote à Écho des Savanes à Fluide Glacial, mas aumentando o volume da acidez através de um Vuillemin, por exemplo, o que nos leva a chegar a um tipo de humor que coteja todo o tipo de barbarismo social aventado acima – a misoginia, o racismo, a homofobia, o anti-comunismo, o anti-liberalismo, o anti-desportismo, o hooliganismo, o anti-religiosismo, e toda uma sorte de preconceitos para com todos os “outros”.

Há que explicitar, porém, que essas barricadas se erguem sobre o solo da ironia, absolutamente movediço, havendo assim espaço para todos “nós” nos encontremos mais tarde ou mais cedo do lado desses “outros”, ou em que esses actos atrozes se tornam um comentário a uma realidade anterior, iluminando o preconceito “invisível” aí existente, e tornando este (a obra presente) numa espécie de lupa de lente distorcida que endireita a imagem vista. Para que sejamos claros, eis um exemplo. No número 23 desta revista, há uma história de duas páginas de Emile Bravo (e Joann Sfar) intitulada Les Aventures de Swartz et Totenheimer, ainda com a indicação (“d’aprés les personnages d’Adolf Hitler”), que não é mais senão um pastiche (em termos de figuração, balonagem e letragem, composição de prancha, trama de cores a imitar uma quadricromia desusada) d’As Aventuras de Blake e Mortimer (até os nomes são pequenos jogos, Swartz correspondendo a Blake no seu sentido e grafia antigos de “preto” ou “pálido” ou “lívido” – uma clara associação à morte – e Totenheimer a Mortimer a partir da etimologia deste último “mar morto” ou “mar de águas paradas” para um nome em alemão que conjura igualmente a morte) de Jacobs. O desvio é que os heróis são, respectivamente, um oficial das SS e um médico num dos campos de concentração. O médico Totenheimer preocupa-se com a última leva de judeus, pois sendo estes últimos alemães, falam correctamente a sua língua, compreendem a cultura, estão “totalmente assimilados ao nosso meio cultural”. Por seu lado, Swartz procede à desmontagem dessa “ilusão”, chamando três judeus (figuralmente idênticos a Olrik, Septimus e Miloch), conseguindo-o e asseverando ao Doktor Totenheimer que se tratam de degenerados... Como se depreenderá, só tendo acesso ao pré-texto (Jacobs) é que nos aperceberemos do valor irónico e humorístico deste texto (Bravo), um exercício à la Oubapo. Caso contrário, simplesmente parecer-nos-ia um estranho caso de propaganda anti-semita atrasada, de mau-gosto, de uma total ofensa (o que pode não deixar de constituir, obviamente, se pertencermos ao grupo dos “outros” que é aqui visado negativamente). É este sempiterno movimento neste tipo de esferas – textos de facto de mau-gosto que perpetuam preconceitos atrozes mas que no fundo querem é parodiar esses mesmos preconceitos e tristes realidades – que encontro sistematicamente na esmagadora maioria dos trabalhos apresentados na Ferraille Illustré. A capa de Winschluss do número 24, aqui reproduzida, ilustra bem essa discrepância: à primeira vista parece um belo e inócuo idílio, mas um mais atento olhar aos pormenores revelarão a crueldade que mal se disfarça.

Em todo o caso, a tamanha diversidade que a revista apresenta proporciona toda uma sorte de prazeres culpados que encontrarão certamente os seus mais certeiros recipientes nos variados leitores, a que ela estejam dispostos a se entregar. Encontrar-se-á igualmente diversos estilos gráficos, desde os mais legíveis e visualmente benévolos de um Mathieu Sapin, F©, Winshluss, Druilhe, Micol, Morgan Navarro, Lucie Durbiano, Christophe Blain ou Blutch, às mais estilizadas presenças de Blex Bolex, Andréas Kündig e Pieter De Poortere, ou as linguagens aparentemente mais simples mas mais mordentes de artistas como Franky Ravi, Imius, Ludovic Debeurme ou a dupla Ruppert-Mulot. Mas há muitos mais artistas e esta construção de famílias visuais em nada explica o seu interior, desfazendo-se mais uma vez a falsa ideia de formas e conteúdos, preocupação constante para mim.
Para além desta breve e anódina lista, é curioso notar as prestações quase não-identificadas das bandas desenhadas de Morvandiu (quer a sua contínua Les Intérmaires de la Distribution quer os anúncios a que me referia acima, ambas formas de contornar o capitalismo pelo mais profundo mergulho na sua mentalidade nevrótica e espectacular), a secção de Vandermeuleun, com ou sem participações externas (uma delas de Frédéric Coché), que revisita toda a espécie de memórias das revistas desta natureza, a de Olivier Josso dedicado a uma comemoração musical variadíssima, os editoriais de Frankie Baloney (v. imagem), o qual se assume como a “personagem fantasma” de todo o gesto editorial e fonte de grande parte do humor que atravessa a revista... ou seja, que acaba por servir como o depositário e nascente de todos os preconceitos que ganham corpo nas histórias da revista.
A Requins Marteaux publica uma grande variedade de títulos, alguns dos quais nada tendo a ver com esta natureza de humor cáustico, algumas sendo bem pelo contrário obras de uma profunda seriedade – penso sobretudo nos livros de Philippe Squarzoni. Mas tal qual o ser-se sério não significa ser-se taciturno, também o facto de ser cáustico não significa ser-se-vazio: pode ser que magoe a este ou aquele leitor (se fizer parte dos tais “outros” criados pelo riso que distancia e difere), mas o seu fito é precisamente alertar para a possibilidade e perigo inerente a essa distanciação. Daí que o gesto da Ferraille Illustré envolva um preço forte, mas por isso mesmo que não nos importará pagar.

29 de novembro de 2007

O Relógio Insano. Eloar Guazzelli (Grafitti)

O mais das vezes, as criações (cinematográficas, literárias, banda desenhísticas) que versam a ficção científica, a futurologia, as distopias, ou temas quejandos, apostam sempre num dado passo, mais tarde ou mais cedo no interior da estória, a que se poderia dar o nome de “a explicação, finalmente”. Por mais distendida e (aparentemente) descentralizada que a trama pareça ser, há sempre um momento de esclarecimento e hierarquização das informações, dos elementos. Eloar Guazzelli, em O Relógio Insano, dispensa-o. Os leitores são ofertados com fragmentos de informação suficientes para perceberem quais os limites do muro da utopia/distopia pela qual se movem as personagens que vão surgindo, assim como os laços que as unem diferentemente (uma família, uma traição, um retorno...). Há perguntas retrospectivas que não se colocam e não são por isso respondidas, outras respostas surgem apontando a outras perguntas laterais, que por sua vez levarão a outras respostas... É como se nos obrigasse a fazer um pequeno trajecto no perímetro do pensamento que esta história provoca sem que fechássemos a linha, mas adivinhássemos esse contorno geral. 

Evereste. Ricardo Cabral (Asa)


Evereste é um daqueles livros que vive numa imediata relação com algo que se encontra no seu exterior, a saber, os “factos reais” em que se baseará para a sua construção; e para mais, são “factos” sobejamente conhecidos, porque publicitados sobremaneira nos media aquando do seu evento: a morte do alpinista belga Pascal Debrouwer, companheiro de uma das escaladas de João Garcia, o famoso alpinista português. Ricardo Cabral aproveita uma mera circunstância de familiaridade com João Garcia (serem ambos dos Olivais), talvez alguma admiração pelo atleta, e as circunstâncias desse trágico acontecimento para construir um livro singelo, isto é, despretensioso e que cumpre cabalmente aquilo que promete: uma história envolvendo o desejo de um homem, que se vê cumprido, mas com um pesado revés. Porém, enquanto livro autónomo, pouco importa para uma sua leitura desapaixonada (que não é de menosprezar, simplesmente não cultivada aqui) essa sua relação com os “factos”; tal é antes matéria de um comentário de natureza jornalística ou biográfica. A relação que uma obra estabelece com a realidade deixa de fazer peso no momento em que ela existe como obra. Não se apresentando como testemunho tout court, i.e., documento, e instando-nos à sua interpretação através da inclusão de estratégias de apresentação e representação – a obra dá-nos de novo o que nos quer dar – abre-se para fora. Evereste é assim um acto independente de Ricardo Cabral.
Por ocasião do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, foi-nos possível ver a chamada arte original deste álbum (arte que se anula no momento em que se transforma no texto a ser revelado enquanto banda desenhada): desenhos a preto e branco, onde as figuras humanas devem algo da estilização de uma influência pela tradição mais visível da mangá mas em que os cenários ganham um direito de cidadania francamente significativos, o que faz todo o sentido, já que é próprio dos textos em torno dos Himalaias dar conta do esmagamento sublime (em todo o sentido desta palavra) a que obriga. O seu posterior tratamento gráfico a cor acaba por esbater algum desse trabalho, apagando os pormenores que seriam visíveis nesses primeiros traços, mas compreende-se que tal aconteça, tendo em conta os jogos de luz que o autor pretende dar em relação às flutuações provocadas por noites sem nuvens e onde a luz difusa das estrelas se esboroa por todos os cumes, a multiplicação dos reflexos da luz diurna nos mantos de neve, as súbitas sombras brancas provocadas pelo vento, o negro onde se cai pelas portas do pesadelo.


Onde O Relógio Insano é centrífugo, Evereste é centrípeto. O intervalo do tempo diegético e o espaço em que a acção se desenvolve é diminuto, se se exceptuarem as pranchas introdutórias, as quais poderão ser entendidas como uma analepse da personagem principal. A acção é concentradíssima, em metros e em horas, o que nos provoca a sensação da lentidão esmagadora que serão esses últimos metros, essas últimas sensações... Mas é precisamente nessa “mais alta solidão” (para citar o título de um livro de João Garcia) que as memórias do que esse desejo de conquista de um cume representa, do que a intimidade com o sublime “tecto do mundo” permite. O autor prefere concentrar-se numa mostra das acções, e não tanto entregar-se a desvios dessa atenção, mas o uso constante e espaçado das legendas da voz interior do protagonista (quiçá baseados em textos reais de João Garcia?) – com algumas excepções em que serve para transmitir os diálogos via rádio – leva-nos a pensar que haveria uma vontade de nos abrir caminho a essa mesma interioridade. No entanto, ela cinge-se sobretudo à acção, com a excepção do início retrospectivo e o final funéreo.
Evereste não me parece querer recriar a linguagem da banda desenhada, e nem tem de o fazer. Basta-lhe (à obra, entenda-se) que cumpra aquilo a que se promete, e como se afirmou, esse objectivo, que é simples e de uma subtil calma, é atingido. Apesar do grande dramatismo a que os eventos poderiam dar azo em termos narrativos (mais ou menos ficcionais, mais ou menos fantasiados), Ricardo Cabral (com João Garcia?) opta por abraçar-se a um possível realismo, sem comoções, respeitando as velocidades e a gravidade que as altitudes frias do Evereste permitem, e isso por sua vez inflecte outro tipo de gravidade às acções representadas no livro. É como se fosse uma espécie de ilustração ao paradoxo de Zenão – ainda que com uma consciência momentânea e depois do facto - de que por mais passos à frente que possamos dar, por mais providenciados que possamos estar, a Morte chegará sempre mais célere do que se esperava.

27 de novembro de 2007

Le Maître & Marguerite. M. Zaslavsky e A. Akishine (Actes Sud) - reprise


Havendo trocado correspondência com o escritor desta adaptação, Misha Zaslavsky, serve o presente post para simplesmente indicar o acrescento de alguns comentários do mesmo ao texto e outras informações adicionais.
Agradecimentos a Misha, pela sua simpatia. Spasiba!