28 de dezembro de 2013

Lisboa. David Pintor (Kalandraka)

Através do Google Earth conseguimos hoje ver, de rabo assente e à frente do computador, grande parte das ruas de Lisboa, até mesmo atravessá-las usando os comandos possíveis (Alfama continua inavegável, como soe). Os tours virtuais de muitos museus, ou outras instâncias, vem alargar de forma positiva a acessibilidade àqueles que não a possuem, mas será sempre uma experiência diminuída. E os guias turísticos, livros de fotografias, vídeos, etc., serão sempre uma ferramenta útil, de apoio, informação, preparação. Tudo isto é muito “útil”, sem dúvida, tudo isto concorre para uma maior “informação”, é certo, mas não é esse sempre o propósito dos livros, nem é isso o que os artistas perseguem nem o que os leitores desejam.

A palavra “visita” parte do verbo videre, isto é, “ver” ou “observar”, por isso tem menos a ver com uma presença física do que uma acção complexa que ela implica. E se num momento o emprego de imagens associadas à viagem e ao seu testemunho procurava devolver um peso de verdade verificável, de concretudes objectivas, de Matthew Paris e Duarte de Armas a Melton Prior, a chegada dos “cadernos de viagem” viriam impor outras inflexões, olhares que moldariam as formas pela imaginação. De Delacroix a Salavisa, cadernos que testemunhariam um desenho que começa a responder a outras pulsões (informados por todos os desenvolvimentos das artes visuais e da filosofia das artes). Constantin Guys seria um curioso caso de transição, talvez, e que nos remete para as considerações de Baudelaire no seu famoso ensaio, “O pintor da vida moderna”, no qual debate a forma como um artista pode encontrar os sinais de uma beleza eterna precisamente onde inscreve os sinais, exteriores, da beleza passageira, do dia.  

O diário de viagem, ou caderno de esboços, ou diário gráfico, é um espaço onde os artistas podem moldar precisamente as impressões que cada momento de observação lhes permite, para captarem o que há de passageiro, de distinto e exclusivo desse preciso momento, de maneira a que, quando devolvidas, essas formas permitam aos espectadores-leitores vislumbrarem algo que atinge uma maior profundidade. Tal como profunda pode ser a água escondida pela superfície de um passeio coberto de calçada portuguesa.

Os actos de transformação espacial e imaginativa que David Pintor exerce sobre Lisboa recordam algumas das paisagens maravilhosas propostas por Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves nos livros de Filipe Seems. Uma Lisboa transformada em Veneza feérica, mas mais mágica que Lisboa e Veneza juntas: uma cidade onde há uma pequena enseada em frente às escadas da Assembleia, onde as “ferraduras” das portas da estação do Rossio são transformadas em vitrinas de um Oceanário, na qual botes conseguem navegar pela calçada ou pelo macadame, e a ventania sacode a pala de Álvaro Siza. Uma cidade cheia de roupa multicolorida a secar às janelas, atravessada incessantemente por cardumes-bandos de sardinhas aladas com cores de cerâmica, e cujos eléctricos parecem criaturas animadas de Miyazaki, espreitando por um beco de Alfama ou por detrás de um arbusto dos jardins da Gulbenkian.

Baudelaire, naquele mesmo texto, dizia que Guys “desenha de memória, e não de um modelo”, e talvez pudéssemos dizer o mesmo de Pintor, na medida em que o artista galego não exerce somente os seus dotes de observador no momento em que desenha nos diários, mas vaza neles impressões que nascem noutro local e momento, faz atravessá-los desde logo por um filtro. O seu traço é muito estilizado, uma intersecção entre um desenho de assinatura muito vincada, feita de elementos preexistentes e repetidos, e uma abordagem mais gestual, expressiva, que responde à moldagem do que é visto aqui e agora. Um encontro entre Loustal e Mariscal. As cores são sólidas e planas, mas procuram responder aos desafios de alguma da luz que se exibe por Lisboa, nos reflexos entre o Tejo e as fachadas brancas dos prédios nas colinas, os telhados laranjas e inclinados e os cobos no chão.

O autor revela igualmente um vivo interesse em inscrever em muitos dos seus desenhos um pequeno avatar auto-representativo: o próprio artista, sempre de chapéu, no próprio acto de desenhar. Não como perspectiva conduzida do que nós também vemos, mas como personagem numa acção, seja ela a do desenho, a do descanso que o prepara ou o segue, ou as aventuras de deslocação, de fiel bicicleta ao lado, que unem os pontos visitados. Cada duas páginas apresentam-nos uma imensa paisagem, uma série de panoramas diversificados, que ora nos revelam um cantinho, um pormenor, ora uma alargadíssima vista sobre as margens do rio.

Nalguns momentos, incorremos na ideia de que talvez esta Lisboa seja mítica e feérica demais. Coberta ou composta por ideias desde logo fabricadas antes de as visitar. Ou sensibilizada para mostrar aquilo que se desejava encontrar à partida. Feita de esplanadas em sítios inusitados, cafés em todas as esquinas, cobos da calçada prístinos e prontos a serem colhidos, e ruas limpas e solarengas, sem nenhuma outra figura humana que não o próprio desenhador. Tememos estar perante uma fantasia que esvazia Lisboa de algumas das suas características próprias. Talvez menos felizes, que desejaríamos corrigir, quem sabe, mas próprias, dela e irrepetíveis. Ou seja, há um ligeiro perigo de Lisboa surgir como uma colecção de “postais” [Mais: quatro impressões são oferecidas no interior do livro, com esse propósito separável]. Mas se as olharmos, às ilustrações, como retratos individuais onde se encontram uma visita-observação e um acto de moldar a imaginação do artista, que vão muito para além da “utilidade” dos postais, talvez o possamos percorrer como um pequeno guia de descobertas.

Nota final: agradecimentos à editora pela oferta do livro.

27 de dezembro de 2013

Mar, Sombras e Bestial. AAVV (Pato Lógico).

A Pato Lógico já tem os seus livros a circular entre nós há algum tempo, e trata-se de uma plataforma que, em conjunto com outras (Planeta Tangerina, Bags of Books, Oqo, Bruáá, Kalandraka, Mini Orfeu, Tcharan, entre poucos outros) procura um rigor não apenas na criação dos seus objectos como na sua produção física, e mais, como algumas das citadas, está intimamente associada a princípios de auto-edição (no caso presente, associado ao veterano ilustrador André Letria), como forma de procurar um trabalho sustentado e correctamente respeitando os seus autores, numa significativa diferença de editoras mais convencionais, as quais, independentemente da quantidade ou “experiência”, têm procurado conformar-se mais a uma ideia generalizada de “mercados” e “estudos de marketing” do que se dedicarem genuinamente à criação de material original. Além do mais, também se parece aproximar de toda uma quantidade de elementos dispersos, estilísticos e narrativos, que têm pautado tendências contemporâneas, verificadas em porta-estandartes como a Nobrow ou a Anorak. A atenção para com aspectos de design, de escolha de materiais, de fabricação do livro, o entrosamento entre texto e imagens, mas também da beleza inerente das imagens que se coaduna a toda uma série de outras realidades da cultura visual (e não fórmulas “infantis”), e até os programas éticos do que é proposto, tornam estes livros em gestos cuidados, inteligentes e que aumentam a “massa crítica” e de qualidade do território.

Como havíamos dito a propósito do “guia” Children’sPicturebooks, de M. Salisbury e M. Styles, enquanto pais, educadores e até mesmo cidadãos de alguma forma preocupados com a educação das crianças, devemo-nos preocupar com o tipo de leituras, livros, objectos culturais a que elas têm acesso e pelos quais são conduzidas tanto quanto nos preocupamos com a sua alimentação, saúde e outras necessidades básicas. Esta discussão abre dois grandes problemas principais, quase evidentes. Por um lado, a questão de classe social, ou de enquadramento sócio-económico, uma vez que não nos podemos deixar esquecer que ao acesso ao livro é ainda largamente um privilégio de um número reduzido de crianças no mundo, e mesmo com a existência de programas de leitura e bibliotecas (o que nos deve pôr alertas para defender a rede das Bibliotecas Municipais de Lisboa) haverá ainda muito por batalhar. Daí a importância da dita “Declaração de Oxford” da World Literacy Summit. Ora isto complica-se ainda mais quando os preços dos livros de que temos falado são usualmente elevados (para as condições das famílias de classe média portuguesa), mas que são um garante da sustentabilidade do projecto editorial e autoral, tornando a concorrência de livros baratos em supermercados, grandes livrarias ou outros dispensários não apenas desleal como eticamente reprováveis, já que muitas vezes o trabalho estético, literário e dialéctico é, pura e simplesmente, nulo, por vezes sem sequer se atribuir a autoria dos desenhos, etc.

Mas por outro lado, e eis uma questão que menos do que paralela se entrosa na primeira, uma ideia debatida passionalmente, está a discussão sobre até que ponto as leituras (e a cultura em geral) influenciam os seus utilizadores. Sem querer entrar no imo dessa discussão, que implicaria mais conhecimentos do que podemos alguma vez aportar, apenas podemos sentir que a resposta se encontrará num equilíbrio de bom senso. Se toda e qualquer criança tem a sua própria personalidade e configuração cognitiva, e um qualquer grau de independência, inclusive intelectual, ela só pode medrar se tiver todas as condições para isso, desde físicas a culturais. Ora se for exposta sistematicamente a um universo contido de referências heteronormativas, socialmente conservadoras, ambientalmente irresponsáveis e culturalmente estreitas – que é o que ocorre “normalmente”, mesmo nos ambientes escolares (onde distribuir cromos do Noddy ou de futebolistas é visto como um processo de sociabilização normal e “natural”, mas levar uma criança a uma exposição de arte contemporânea num museu ou galeria ou a um concerto ao vivo de jazz é apodado de “presunçoso” e “seca”) -, não poderemos esperar que as crianças possam desabrochar como cidadãos mais bem preparadas para enfrentar o mundo real e diverso. Ver um documentário como Consuming Kids: The Commercialization of Childhood (Barbaro e Earp, 2008) é assustador, mas a compreensão de que durante o século XX existiram muitos projectos que expandiam, pelo contrário, as possibilidades de expressão, criatividade e liberdade das crianças (um projecto como Century of the Child, catálogo de 2012 do MoMA, pode ser um excelente antídoto e guia), é fulcral. Ora, estamos em crer que um projecto como o da Pato Lógico se encontra precisamente do lado desta “correcção” ou contributo.

Os três livros que nos são dados a ler são Mar, uma enciclopédia de entradas escritas por Ricardo Henriques, ilustrada por André Letria, e dois livros sem texto verbal de André da Loba e Marta Monteiro.

O primeiro livro integrar-se-á numa vetusta tradição da história do livro, inclusive passando pelos primórdios do que viria a ser chamado de “literatura infantil”, que são as enciclopédia visuais, e que remonta a 1658, ano em que Johannes Amos Comenius publicou aquele que é considerado o primeiro livro ilustrado para crianças, o Orbis Sensualium Pictus. A organização alfabética de Mar, as suas entradas relativamente curtas, uma paginação que convida à leitura esporádica, de consulta, e à mercê da busca livre, ajuda a essa vinculação. No entanto, a ausência de categorias claras que não a associação ao mar (temos espécies animais, termos náuticos, referências culturais, informações históricas e curiosidades mitológicas, palavras obscuras e pregões) e o tipo de humor empregue (como a possibilidade de um jogador de futebol que jogue ao mesmo tempo no Sporting e no Marítimo ser chamado de “leão-marinho”) vai inscrevê-lo ao mesmo tempo numa categoria mais aberta e fluida de livros infantis “pós-modernos”, isto é, conscientes da sua própria natureza e estrutura tradicionais, mas também das possibilidades de desvio delas.

Em que medida as ilustrações de Letria “aumentam” o que está previsto nos textos de Henriques? Na verdade, não será essa a relação estabelecida entre umas e outros. As primeiras surgem numa configuração e espacialização na página que recorda precisamente as “spot illustrations” de enciclopédias e dicionários. Além disso, há toda uma variedade de abordagens. Nem todas as entradas têm imagens, e se há um número substancial de imagens iconográficas, representando todo o objecto (animais, tipos de barco), Letria apresenta uma abordagem heteróclita. Existem imagens sequenciais, sobretudo para ilustrar uma qualquer experiência a tentar pelos leitores. Existem outras apresentadas em série para dar conta de uma diversidade de uma categoria, seja a sinalética de bandeiras ou o tipo de barbas de marinheiro. Algumas são apresentadas em acção, outras atingem mesmo níveis de grande espectacularidade (o Kraken), e outras ainda munidas de sinais infográficos que ajudam à navegação pelos pormenores informacionais. Algumas encontram-se bem centradas, num qualquer lugar ortogonal, outras parecem invadir a página ou dela se eclipsam. Uma vez que os textos também vogam por nomes próprios, nomes comuns, termos náuticos ou práticas e objectos (um poema, um prato, uma canção, uma terra, uma expressão), as relações das imagens vão assumir uma grande diversidade: instrutiva, explicativa, exemplar, irónica, anedótica. Letria emprega aqui duas cores, preto e azul, de uma forma muito equilibrada e mínima, parecendo usar técnicas de pochoir ou riscos de pastel grosso, mas possivelmente alteradas no tratamento digital posterior (ou que as cria, desde logo), que trazem uma qualidade muito gestual e texturada para imagens que se concentram na sua económica qualidade icónica de “dicionário”.

Se a enciclopédia recordará, até por razões etimológicas, uma noção cíclica, recorrente, a verdade é que ela é igualmente uma forma de progresso, do tal avanço cognitivo e cultural a que aventámos no início, para o qual os movimentos de Mar são uma potente energia. O seu formato imenso também implica um manuseamento especial, monumental, informativo, com a canga simbólica de algo que vai trazendo vários saberes.

Quer Bestial quer Sombras, respectivamente de André da Loba e de Marta Monteiro, parecem pertencer a uma mesma série, pelo idêntico formato. Eventualmente tratar-se-á de uma colecção aberta à colaboração com artistas diversos que possam apresentar um projecto monográfico congruente com o projecto geral da Pato Lógico. O livro de da Loba recorda duas coisas: os chamados imagiers, ou livros que coleccionam formas e objectos sem grandes comentários e servem para introduzir uma espécie de biblioteca de imagens básica para as crianças, e toda uma linha de desenvolvimentos de metáforas visuais, que atravessam a história da publicidade, da propaganda da primeira metade do século XX, até experiências mais concretas, dos posters cinematográficos polacos das décadas de 1960 e 1970 à obra de Brian Cronin. O que se apresenta aqui é um bestiário – o que por si só o liga a outra linha ainda - com dezanove animais, a esmagadora maioria deles apresentados em spreads, e apresentando um animal compósito com um objecto (um camelo com bossas em forma de montanhas nevadas, um dachshund-rio, um sapo com pernas de compasso), desenhados quase sempre em silhueta com pequenas intervenções pontuais (olhos, nariz, guelras, as manchas) ou o objecto cruzado em cores contrastivas. Desta forma, criam-se vívidas imagens impossíveis, que não buscam qualquer tipo de ilusão, mas bem pelo contrário encontros (quase) fortuitos que pretendem sublinhar a sua discordante natureza. E tal como no caso, já longínquo, do livro de Cotrim e Worm, O homem bestial, a palava do título do livro presente parece assumir ambos os sentidos possíveis na sua qualificação das criaturas.

Já no que diz respeito ao projecto de Marta Monteiro, é por demais clara a vontade em criar uma unidade mais narrativa entre as imagens. Se aquilo que surge aqui é uma colecção de acções disruptivas levadas a cabo pelas sombras em relação ao que os seus donos fazem, não estamos porém perante um livro-jogo (recordamo-nos de um projecto que brinca com as expectativas das formas criadas pelas sombras e a revelação dos objectos) nem tampouco no reino de uma fantasia, como no caso de Shadow, de Suzy Lee. Acompanhamos um dia, quiçá banal, de um polícia de giro, e uma realidade em que as sombras dos transeuntes, e dele mesmo, parecem exprimir melhor os seus desejos íntimos. Porém, a dado momento, essa barreira entre “mundos”, um pouco à Peter Pan, parece romper-se, e as sombras ganham vida própria e independente das acções dos seres de que partem, criando uma esfera paralela de vida. Talvez a lição esta na reviravolta de que são alvo deixam de ser reflectidas para revelar outra coisa.  

Ambos os livros abdicam, de modos bem diversos, do acompanhamento verbal escrito/inscrito, mas em nenhum aspecto dirimem a potencialidade do desdobramento imaginativo, mesmo através das palavras, seja criando exercícios de nomeação com as criaturas de da Loba (“Molamula” ou “Chaleironte”, por exemplo) ou uma narrativização/explicação pela trama do de Monteiro (é a sombra dorminhoca ou atrasada, fantasma intangível ou projecção de vontade?). Como escreveu a filósofa Suzanne Langer, “a criação de imagens é (…) o modo do nosso pensamento liberto [untutored], e os seus primeiros produtos são as histórias”. Estes livros poderão servir de tutores, sem dúvida, mas sê-lo-ão de um modo ainda assim bastante livre. E se Mar convida à consulta, Bestial e Sombras convidam a manipulações e subversões sucessivas da sua própria matéria.

Ainda recuperando algumas lições de Salisbury e Styles do livro citado, encontramos no projecto autoral e livre da Pato Lógico (mas a cujo esforço se poderiam aliar outros projectos, como vimos, não obstante as especificidades, aqui mais próximas da exploração visual, gráfica e de design, e menos “literária”, digamos assim), uma preocupação em fornecer os seus leitores com livros que contribuem de forma substancial e integrada para a “compreensão cognitiva, estética e emocional” das crianças. Ou melhor, dos leitores.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros. 

26 de dezembro de 2013

Como ler banda desenhada (OC/LEBD).


Conforme anunciado anteriormente, aqui deixamos os detalhes para os cursos a desenvolver em parceria entre a Oficina do Cego e o Laboratório de Estudos de Banda Desenhada.
Como ler banda desenhada
7 e 9 de Janeiro, das 18h20 às 21h20, no LEBD (Chiado).
Workshop sumário de análise formal e teórica da banda desenhada. Informações, preços e programa aqui.
Logotipo LEBD de Marta Monteiro; imagem de João Maio Pinto.

Como ler ilustração (OC/LEBD).


Conforme anunciado anteriormente, aqui deixamos os detalhes para os cursos a desenvolver em parceria entre a Oficina do Cego e o Laboratório de Estudos de Banda Desenhada.
Como ler ilustração
21 e 23 de Janeiro, das 18h20 às 21h20, no LEBD (Chiado).
Workshop sumário de análise formal e teórica de ilustração, sobretudo em contexto editorial. Informações, preços e programa aqui.
Logotipo LEBD de Marta Monteiro; imagem de João Maio Pinto.

Curso de Banda Desenhada Experimental (OC/LEBD)


Conforme anunciado anteriormente, aqui deixamos os detalhes para os cursos a desenvolver em parceria entre a Oficina do Cego e o Laboratório de Estudos de Banda Desenhada.
Curso de Banda Desenhada Experimental
De 13 a 16 de Janeiro, das 18h20 às 20h20, na Oficina do Cego.
Workshop de estratégias experimentais de banda desenhada, com abordagem teórico-histórica e uma bateria de exercícios práticos. Informações, preços e programa aqui.
Logotipo LEBD de Marta Monteiro; imagem de João Maio Pinto.

23 de dezembro de 2013

Océano. Anouck Boisrobert e Louis Rigaud (Héllum)


Nesta próxima semana, deixaremos alguns textos breves sobre alguns livros da esfera do “infantil”, mas que escapam quer a gravidade mais corriqueira da ideia - pelo pedagógico, o lamechas, o protector ou o instigador de papéis normativos - começando pelo último projecto desta dupla francesa, o singelo mas lindíssimo Océano.

Tratando-se de um livro pop up, logo à partida trata-se de um livro que cria dimensões materiais extraordinárias em relação à maioria dos livros. Se este mesmo conceito, “livro”, deve ser cada vez mais revisto, por um lado face à consideração da história de todo o material impresso ou legível (os chapbooks e as harlequinadas, os teatrinhos de papel e as folhas volantes) e por outro face ao avanço dos ditos “livros electrónicos”, de forma alguma se deve temer pelo seu fim, mas antes uma sua transformação conceptual. Todavia, isso não pode servir igualmente de um simples abandono por formas tradicionais de contar histórias, de mostrar imagens, ou de “dar a mão” ao público, como querem por vezes os cultores acríticos de qualquer novo desenvolvimento tecnológico. Um texto publicado pela equipa da Planeta Tangerina diz isso mesmo, opondo uma certa pirotecnia inconsequente do digital e a ainda tão aberta potencialidade sugestiva do livro “parado”. Escrevem: “Muitas vezes não dá pistas: mostra”, precisamente impedindo que se faça um caminho só seu, mas se percorra somente as linhas já delineadas e apertadas.

Sem querer menosprezar o digital como um conjunto - pois, como tudo, haverá uma percentagem significativa de obras menos conseguidas, desinteressantes, derivativas, aborrecidas mesmo no centro da sua tempestiva actividade, mas também um conjunto maravilhoso de gestos novos, que abrem mundos, que estimulam novas formas de reagir, ver, considerar e até pensar -, concordamos totalmente com a ideia de que qualquer obra de arte é interactiva, mesmo na ausência de feixes infravermelhos, botões e alavancas… E um livro pop up é desde logo um toque ou um passo a mais nessa resposta activa do próprio livro em relação à aproximação física do leitor. Basta que este ou esta o abra, afastando as páginas, para que se desabrochem as estruturas do interior. E por mais simples que Océano seja em termos de narrativa, são as redes dos seus mecanismos e a obrigação física do “mergulho” (já lá iremos) que o torna um gesto consequente e até maravilhoso.

A propósito de Popville, dos mesmos autores, havíamos debatido alguns pontos, aos quais remetemos os leitores. A história do pop up, ou dos livros “mãocânicos”, constrói uma complexa rede de referências que nem sempre está somente associada ao livro infantil. Bem pelo contrário, as volvelles e os papeis que se desdobram, até mesmo a exploração de texturas e efeitos da impressão nasceram nas páginas de compêndios e obras científicas. O entrosamento entre os mecanismos de papel e a narrativa proposta, quando esta existe, é também muito variada. No caso de Océano, não estamos perante uma simples cronologia de um mesmo espaço, que implica uma leitura “horizontal”, com o livro disposto sobre um tampo, e depois o seu crescimento sequencial. Tratando-se de um périplo marítimo, o barco aponta sempre da esquerda para a direita, para atravessar as cinco paisagens, muito diferentes entre si, e também colocadas em momentos diferentes, condições meteorológicas distintas, de maneira a criar a diversidade necessária da navegação. O livro, portanto, parece-nos dever ser lido na vertical, com os olhos sobre a superfície construída pelo mar de papel. Esta superfície divide um espaço “superior” e “inferior”, sendo esta o fundo do mar, e que dá continuidade à paisagem visitada, mas também a um entendimento da vida que aí tem lugar, e poderia ser inimaginável para os seres que apenas ficam por cima. E a leitura dos textos (que pela sua maravilhosa eufonia parecem ser versos livres) está dividida em dois blocos: um “acima” do mar e outro “sob” o mar, que convida ainda mais a esse “mergulho” sob as águas. Nalguns casos as acções são continuadas pelas personagens, como o mergulho do batíscafo, em apneia ou com botijas… Mas na esmagadora maioria dos casos, o propósito do mergulho é poder vislumbrar o incrível espectáculo da vida subaquática, desde as imensas baleias azuis à pesca por arrasto, dos glaciares por onde nadam narvais e ursos polares aos corais pejados de um arco-íris de vida animal e vegetal. E para ver todos os pormenores, há que rodar o livro de um lado para o outro, incliná-lo, aproximar a vista, vasculhar todos os seus recantos por mais ocultos que pareçam, havendo sempre uma qualquer revelação surpreendente.

Poderá parecer uma actividade de antanho, esta de navegar, mas a verdade é que há mais pessoas a navegar por recriação hoje do que em qualquer outro momento, e não são necessariamente ricaços em iates (é preciso investimento, coragem e tempo, sem dúvida, mas não é algo caricaturalmente capitalista). Se vemos um pai-capitão e os grumetes filho e filha, não há uma particular atenção pormenorizada para as suas pessoas, quer textual quer visualmente (uma abordagem muito estilizada, simplificada e de cores básicas em aplats expressivos, recordando alguns nomes clássicos como Alain Grée ou a série Daniel et Valérie, nostalgicamente amada pelos franceses) todos eles partilhando das actividades necessárias à manutenção e navegação do barco (estando sempre de perfil, não se percebe se é um catamarã ou um veleiro, mas experts saberão identificar pelo casco, vela ou outros elementos). Mas essa é uma estratégia dos autores, também presente nos projectos anteriores: uma certa miniaturização do mundo, para que melhor sirva de brinquedo imaginativo, a ser preenchido pelos leitores nas suas próprias viagens e, quem sabe, estimular a que se procure o início de uma aventura maior.

Š! nos. 14 e 15 (kuš!)



Apesar de a esmagadora maioria das pessoas - e não nos excluímos desse grupo - atentar sobretudo para os grandes pólos de produção de banda desenhada (Estados Unidos, França e Japão), e abrir uma única excepção em relação ao seu próprio país, se o fizerem, muitos outros leitores estarão alertas para o facto de que existem muitos outros centros onde ou existe uma sólida tradição de banda desenhada que continua a medrar (Espanha, Alemanha, Itália, Bélgica, Argentina, etc.), ou existem novos agentes que torna a cena contemporânea extremamente viva (Finlândia, Sérvia, Eslovénia, Canadá, Hong Kong, Coreia). Além disso, graças a exposições, amizades ou à “sociedade de informação”; também se está ciente de que existem sempre algumas “cenas” em quase todos os países, ora com contornos diferentes em termos de qualidade colectiva, ora por vezes concentrando-se com um autor ou autora fora do comum. Por isso, não é sem surpresa que nos cruzamos com uma antologia de grande qualidade, verdadeiramente internacional - à escala global - oriunda de um país relativamente arredado daquela atenção de que falámos: a Letónia. A kuš! é uma plataforma cujos editores são David Schilter e Sanita Muižniece, e que publica presentemente, pelo menos, duas séries de projectos: por um lado, a mini-kuš!, que é uma pequena publicação monográfica, a que pertencia um título de Amanda Baeza, já discutido (e que já conta com mais de 20 títulos), por outro, esta antologia, Š!, que agrega nas suas páginas autores vindos das mais diversas paragens do mundo. A antologia é temática, sendo estes últimos números dedicados ao desporto (14) e aos gatos (15).

Haviam começado com uma revista em 2007, a kuš!, que entretanto suspenderam, para conduzirem os seus esforços ao crescimento da antologia, iniciada em 2008 com menos de 50 páginas, e cujos últimos números (numa média de 3 por ano) atingem as 164 páginas. Quer uma quer a outra são em formato A6, associando-se, como havíamos dito a propósito do livro de Baeza, às colecções patte de mouche e Quadradinho, etc. Trata-se, portanto, de um formatinho que tem implicações de uma tradição, mas ao mesmo tempo de opção política e de unidade de leitura - menos dada à espectacularidade e “normatividade” dos géneros de banda desenhada e envolvendo-se com uma certa ideia de intimidade, alternativo, etc. - e, claro, opções económicas.

A diversidade dos autores destas publicações atingem todas as dimensões possíveis: proveniência geográfica, estilos gráficos e narrativos, experiência e idade, propósitos de género, reinvenção ou experimentalismo, e até mesmo, um termo mais ambíguo e vago, as suas “eficácias”. Por este último termo quereríamos dar conta de uma impressão muito subjectiva, e que seguramente basculará conforme os leitores e terá pouco sustento em qualquer  tipo de argumentação. No entanto, se nos recordarmos de algo dito há algum tempo, de associar as antologia a florilégios, a escolhas de flores, sobressairá o facto de que haverá sempre uma flutuação então de gostos, efeitos, ocasiões, etc. Essas palavras foram ditas a propósito de Kramer’s Ergot, que é precisamente o título que se nos ocorreu ao depararmo-nos com a kuš!. Mas onde essa outra antologia se centrava em autores “perto de casa”, encontraremos aqui autores que vêm desde o Brasil à China, num escopo muito mais aberto, e que não perde de forma alguma o rigor a uma certa “novidade”.

É verdade que se poderá dizer que a esmagadora maioria dos autores aqui concentrados são “alternativos”, naquela ideia de que são cultores de uma banda desenhada menos dada aos estilos genéricos e comerciais mais famosos, mas há uma  panóplia suficientemente alargada para nos impedir de criar outro tipo de descritivos que lhes servissem a todos. Se encontramos autores com estilos a que se poderiam chamar de “infantis”, empregando animais antropomorfizados, por exemplo (Anna Vaivare, John Broadley, L. L. de Mars), outros há que são extremamente estilizados e quase escapam do entendimento clássico da “forma bd” (Fredox, Dace Sietina, Warren Craghead III), ao passo que alguns outros utilizam até linguagens ou abordagens particularmente convencionais (Mikus Duncis, Lat Tat Tat Wing, Conor Stechschulte, Paul Paetzel, Emmi Valve), ainda que se permitam explorar territórios temáticos, tratamentos narrativos e de representação mais criativos que o usual, claro.

Haverá igualmente autores que serão mais conhecidos deste ou daquele público -o que dissemos da atenção particular para cada país só se pautará individualmente - e outros menos, mas não há uma atribuição a priori de mais peso aos autores que poderiam ser mais conhecidos do que os outros (através das capas, por exemplo, ou a organização interna editorial). Da parte que nos toca, encontraremos nomes muito familiares como Warren Craghead III, Pedro Franz, Amanda Baeza, Fredox, Edie Fake, Michael Deforge, logo à partida criando uma ideia especial desta tal “comunidade” de artistas bem alargada. Apesar do espartilho temático, que leva a que os autores criem trabalhos originais, e não material previamente publicado, não há autores a “encher chouriço”, até mesmo no caso de ilustrações soltas, em série, ou histórias de apenas duas páginas. Todas elas, inscrevam-se melhor ou pior nas pesquisas pessoais dos autores, criem pequenas novelas domésticas, confissões autobiográficas, explorações de géneros espectaculares, ou se entreguem a um quase abandono da matéria expressiva possível do embate entre as palavras e as imagens, irão sempre responder ao tema de modos bastante interessantes (levando a imaginar um processo editorial relativamente próximo e intenso entre editores e autores). É nesse aspecto de coesão interna apesar das diferenças substanciais apontadas que nos leva a comparar novamente este gesto com o de Kramer’s Ergot, mas onde a Š! acaba por ganhar uma vantagem de coerência, pertinência e até beleza. Sem se entregar, porém, ao exercício megalómano dos formatos gigantes, mas antes operando a uma escala mais humilde, mas por isso mesmo mais sustentável e duradoura seguramente. Tornando-a, por fim, numa das mais frescas, abertas e estimulantes antologias que nos foi dada a ver nos últimos tempos.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio de um dos exemplares.

19 de dezembro de 2013

Palookaville no. 21. Seth (Drawn & Quarterly)

Tal como ocorrera com o número anterior, na transformação do formato de comic book (irregularíssimo) para o de um volume (igualmente irregular, mas de forma menos premente), Seth faz convergir neste objecto não apenas o seu projecto narrativo corrente, como explora várias outras possíveis linhas temáticas, estilísticas, e até de pesquisa matérica. Não deixará de ser estranho, em termos materiais, ter um título de uma série sob a forma de livro, não o sendo, isto é, acima de comic book, digamos assim, ou mesmo de revista antológica, mas que não é de forma alguma como livros de uma série contida, como o Berlin de Lutes ou uma qualquer colecção de TPBs. A capa dura, o vinco, a capa com revelos e aplicações prateadas, as guardas irrepreensíveis, o papel de gramagem superior, a “mão” ou ergonomia perfeitas, tornam estes Palookaville em objectos, no fundo, de algum luxo.

Dividido em três “secções”, Seth apresenta-nos três modos narrativos distintos, distintos igualmente pela sua abordagem visual e estrutural. Em primeiro lugar, temos a continuação de “Clyde Fans”, uma espécie de saga familiar melancólica e derrotada, em torno dos dois irmãos Simon e Abraham, e da sua companhia de ventoinhas eléctricas. Se It’s a Good Life if you Don’t Weaken era uma obra maior da melancolia e da lentidão, no seu sentido mais poético, introspectivo mas também de atenção para com os pormenores que apenas aqueles que se dão à distracção da vida acedem, parece-nos que “Clyde Fans” atinge patamares ainda mais profundos dessa lentidão. Se aceitarmos aquele símile de que Kundera fala em A Lentidão, em que a velocidade é proporcional ao esquecimento e a memória à lentidão, o que faz com que uma pessoa, passeando, estugue o passo para impedir recordar-se de algo de que não se deseja recordar, e diminuí-lo para que a memória o apanhe, então esta novela de Seth mostra um homem que já quase não tem forças para fugir das memórias que o apanham, e de toda a herança da vida, mas também da pobre perspectiva de que aquilo que havia construído profissionalmente irá atingir uma inexorável dissipação, quem sabe coincidente com a sua própria morte. A relação de Abraham com a sua mulher, de quem se separou, a quase patética rivalidade com o irmão, e o assalto de uma memória longínqua do caso com Alice, são aparentemente os únicos resquícios que lhe ocupam os dias. Como de costume, neste texto, Seth opta pela construção de páginas em estruturas regulares, com poucas variações, dando particular atenção a momentos de flânerie, ou de observações de pormenores espaciais, quase desimportantes, ou interrompe a “acção” com vinhetas a negro e legendas, que apontam à consciência do protagonista. Isto é, em “Clyde Fans” tudo parece concorrer para que não haja espaço a acções.

Há uma atenção particular e gráfica para o modo sonoro: onomatopeias sublinham todos os gestos, por mais insignificantes que eles pareçam ser, desde a máquina de barbear ao zumbido de uma lâmpada solitária, dos tacões no soalho às baforadas no cigarro, tudo parece ganhar uma dimensão adicional que não necessitaria noutras circunstâncias. Todavia, o facto destes “eventos” serem sublinhados pelo som servem precisamente para acentuar a ausência de outras dimensões mais dramáticas ou espectaculares. São elas que “enchem” o espaço, o texto, a vida de Abe. Se outros textos em torno da velhice, há pouco discutidos neste espaço (Living Will, El arte de volar), demonstravam ainda a resistência possível da velhice ao tempo, as formas como se podem assumir os papéis activos que ainda restam na vida, esta narrativa de Seth parece antes prender-se aos fiapos da mesquinhez, aos egoísmos destilados, aos rancores guardados durante anos, e que desgastam as personagens. Veremos se o término está próximo, e como fechará o cômputo delas.

Antes de passar para a segunda secção, falemos da terceira, ocupada pela anunciada primeira parte de “Nothing Lasts”, uma história que faz Seth regressar ao campo da autobiografia pura e dura como já não fazia desde o início de Palookaville (aceitando-se que It’s a Good Life se inscreve antes na “auto-ficção”). O autor concentra-se aqui na sua infância, prestando atenção sobretudo às mudanças de casa, numa zona relativamente circunscrita daquela zona do Canadá, às correspondentes transformações das relações de  amizade com outras crianças, colegas da escola ou vizinhos, modos de explorar o espaço em torno da casa, hábitos de lazer, variadíssimos episódios passados na escola ou colónias de férias, etc. Mas ainda mais central, ainda que sempre de modo difuso e subtil, está a relação com o pai e com a mãe, sobretudo a mãe. Na verdade, este ponto faz-nos recordar a obra maior do colega e amigo de Seth, Chester Brown: I Never Liked You é um livro que também se concentra em memórias da infância para poder tecer ou regressar a uma relação perdida com a mãe, tentando talvez compreender o que mudou nessa relação e assinalar uma perda. Mais ainda pelo facto de tanto a mãe de Brown como a de Seth terem sofrido nos últimos anos das suas vidas doenças degenerativas, que a afectam a personalidade, e isso ser debatido, ainda que de modos diferentes, nos textos.

Talvez para assinalar essa representação, ou melhor dizendo, reconstrução das memórias da infância, Seth opta aqui por um estilo mais arredondado, cartoonesco, próximo de certos estilos de humor que ele próprio admira e segue, desde Peter Arno a John Stanley. Essa factura, por assim dizer, não quer portanto criar uma total ilusão de “verdade” ou de “regresso prístino” dessas memórias, e o autor vai deixando questões que colocam em causa algumas das memórias ou da arquitectura das reminiscências. Uma dessas questões é coloca de forma subtil mas visível, para que os leitores atentos a “cacem”: Seth vai indicando toda uma série de nomes de ruas e bairros e pontos que presumimos serem verdadeiros e existentes naquelas pequenas cidades de Ontário, mas há um momento em que ele nos mostra um pequeno edifício que indica o nome “Dominion”. Os leitores do número anterior de Palookaville reconhecerão o nome, e aperceber-se-ão de que essa palavra cria de imediato um factor destabilizador da suposta “verdade judicial” do que está a ser contado, até certo ponto uma expectativa típica na leitura da autobiografia (tal como discutido por vários teóricos, como Elisabeth El Refaie), mas ao mesmo tempo ela permite que se estabelece uma tensão entre a “auto-ficção” e outros modos de poder criar a “autenticidade” neste tipo ou género de banda desenhada.
Contudo, não são essa tensão e negociação próprias do funcionamento da memória humana? Tal como Kundera, também Seth é um criador de metáforas poderosas da memória. A “grelha” em “Nothing Lasts” é ainda mais apertada do quem “Clyde Fans”, partindo de um modelo de 4 x 5, mas aqui e ali fundindo vinhetas para dar a ver uma cena maior, usualmente de um edifício ou um retrato, ou uma cena mais significativa. Algumas dessas imagens levantam porém um problema aos protocolos de leitura. Se algumas delas terminam as páginas, não levantando problemas de maior, e apenas num caso abrindo a página, existem outros momentos em que elas se encontram a meio do percurso e lançam o leitor na dúvida: deverá ler-se a vinheta maior logo após a vinheta menor que a antecede, ou deve ler-se a vinheta menor em baixo e depois passar para grande à direita? Este breve desarranjo não é grave, nalguns casos é claro, e é, claro, propositado, servindo talvez para fazer “tropeçar” a leitura e portanto impor uma velocidade muito particular, um ritmo de retorno e avanço lento, conservando todo o projecto na filosofia do autor. Mas há outras metáforas. A dado momento, e tirando partido desta grelha apertada, Seth fala de umas gavetas onde guardava, ou jogava apenas, brinquedos velhos que já não o interessavam, velhos modelos de plástico de aviões, carrinhos ou bonecos. À medida que a gaveta de enche, as figuras começam a apertar-se até se quebrarem e não deixarem senão fragmentos de si mesmas a encher esse espaço. Pela economia da narrativa e a navegação das páginas, Seth faz passar dessa discussão sobre os brinquedos para a de um cinema local, na página seguinte. Mas repare-se como estando lado a lado essas imagens, e apesar da imagem do interior do cinema poder ser lida como uma imagem contínua sobre a qual está sobreposta a grelha das vinhetas, não só esses espaços acabam por isolar as figuras (estão juntas, partilham um ritual social, mas na sua acção de entrega imaginativa ao filme estão em espaços isoláveis na sua maioria) como elas parecem imitar as peças quebradas dos bonecos. Quererá o autor acentuar o isolamento das pessoas? Ou dele mesmo quando criança das restantes criaturas? Somente impor um ritmo de narratividade e tempo, como querem certas teorias semióticas da banda desenhada? Ou permitir uma navegação em dois sentidos, que tanto aparta como tece esses “fios de memórias”?

Essas interpretações metafóricas parecem ganhar um agente poderosíssimo no terceiro texto deste volume, a segunda secção, intitulada “Rubber Stamp Diary”. Seth começa por explicar este projecto: discutindo com Ivan Brunetti a dificuldade que havia em manter um verdadeiro diário em banda desenhada, teve a ideia de criar alguns carimbos que tivessem vinhetas pré-desenhadas com cenas recorrentes (a caminhar, de perfil ou de costas, a ao estirador, cenas urbanas, a sua casa, etc.) e que lhe permitiriam criar uma página rapidamente, bastando acrescentar o texto; além disso, um carimbo adicional com apenas a moldura de uma vinheta ajudá-lo-ia a precaver-se a situações inéditas. Seth acabou por “ficar” com essa mesma ideia e deu início a este projecto, que agora divulga pela primeira vez. Tal como em “Nothing Lasts”, que é indicado  pertencer ao “Sketchbook no. 10”, remetendo à ideia de uma obra contínua, arquivável, revisitável de vários modos (v. Vernacular Drawings, p. ex.), também estes Diários do Carimbo foram feitos em cadernos quase de burocracia obsoleta. A sua reprodução aqui é directa, sem qualquer tipo de intervenção ou limpeza posteriores, o que dificulta a leitura por vezes. Além disso, nota-se perfeitamente os locais onde a tinta está mais gasta, onde houve um desenho com marcador ou caneta por sobre o desenho do carimbo, pequenas alterações ou adições, nota-se igualmente de forma nítida as repetições e/ou diferenças entre a utilização de um mesmo carimbo em momentos diferentes. E finalmente, temos novamente uma grelha, 2 x 4, como se Seth quisesse demonstrar em todos os seus gestos criativos a preferência por uma quase absoluta regra de construção, sem desvios, para se concentrar no que é contado, num “conteúdo” transmissível: as experiências de um passeio, a visita a um novo restaurante, a rotina de um dia de trabalho fechado em casa, uma observação permitida pelo quotidiano…

Menos autobiografia do que observação momentânea, existem vários trechos que farão recordar os leitores de John Porcellino do tipo de “haikus” possíveis de surgir nessa entrega ao “sem-importância”. A repetibilidade das imagens e a ausência de um tratamento que melhor a qualidade das imagens enfatiza essa predisposição ao banal. A grelha irrepreensível insistirá numa certa disciplina do corriqueiro, tornado afinal “Rubber Stamp Diary” num texto menos interessante pelo que revela do que da forma como se revela e nos obriga a repensar as formas de atenção e de trabalho.

Num só volume, de um mesmo artista, e correspondendo a um período relativamente similar de tempo em termos de produção, eis como Seth nos dá a ver três modos totalmente diversos - ainda que com grandes traços comuns - de tratar a memória, de tecer narrativas e até mesmo de gerir as matérias visuais e gráficas de uma mesma mão. A obra de Seth é de uma sofisticação muito complexa, ainda que aparente tratar-se de algo quase indolor de criar. Aquela expressão do “falsamente simples” poderia ser aplicável de uma forma perfeita a este autor, se não estivesse gasta por um uso abusivo em relação a trabalhos que mimam o tipo de profundidade que Seth atinge (relembremo-nos, a título de exemplo, de Daytripper) para se ficarem por uma superfície demasiado burilada. Talvez baste dizer que cada vez mais o título de Palookaville faz menos sentido.

3 cursos do LEBD na Oficina do Cego.


Serve a presente mensagem para informar que já está disponível no blog da Oficina do Cego o plano formativo para o primeiro semestre de 2014.
No quadro dos vários cursos e workshots, o Laboratório de Estudos de Banda Desenhada (o nome de "pompa" do espaço que coordena as Conferências de Banda Desenhada em Portugal e este blog) terá três ofertas. Dois cursos cursos teóricos, de introdução à análise crítica, com "Como ler banda desenhada" e "Como ler ilustração", e outro mais alongado, sobre "Banda desenhada experimental".
Para mais informações, o programa (em breve), e modos de inscrição, consultem aqui.

17 de dezembro de 2013

Super Pig - O impaciente inglês. Mário Freitas e André Pereira (Kingpin Books)

Este é o livro mais ambicioso da saga desta personagem, e seguramente que, não apenas pela sua circulação, divulgação, formato e apresentação física, mas também pela desenvoltura gráfica e narrativa, será aquele que mais facilmente chegará a um público ligeiramente mais alargado e diferenciado. Além do mais, é também o livro que, na economia dos anteriores, escapa de certa forma ao género do humor (ainda que mesclado com o policial e o absurdo) para tentar ser uma estrutura mais complexa. O seu grau de autonomia é também assinalável. Porém, subsistem algumas dúvidas se de facto consegue O impaciente inglês conquistar a complexidade que aparentemente parece almejar.

À imagem do aardvark Cerebus de Dave Sim, Super Pig é uma personagem única, zoomórfica, que vive num universo aparentemente realista, habitado por seres humanos normais, salvo todos os pontos de entrada do absurdo e do fantástico a que as narrativas obrigam. A economia de distribuição de papéis é assim idêntica à de Cerebus, se bem que as inscrições narrativas e de género sejam bem distintas. Se a obra do autor canadiano nasceu enquanto pastiche de sword-and-sorcery para rapidamente entrar num opus complexo de crítica social e filosófica (concorde-se ou não com as posições, controversas e vincadas, do autor), Mário Freitas parece ter dado origem a esta sua personagem para criar um espaço onde pudesse explorar toda uma série de ideias, desde pequenas anedotas ligeiramente veladas da psique nacional a conceitos devedor ao absurdo transformado em palco de conspirações. Todavia, o tom geral sempre foi o de alguma leveza, que O impaciente inglês tenta abandonar, tornando mais palpável a rede de referências, quer históricas e reais, quer a géneros mais densos. Depois de termos seguido alguns passos da vida do protagonista, a sua entrada numa instituição fundada pelo pai (Fundação Calouste Pig), e um desvio pela sua infância (em Roleta nipónica), este volume coloca-o no centro de uma trama que se estende por séculos, originando-se em Inglaterra (ou Reino Unido), passa pelo seu pai e vem desembocar na sua pessoa. No entanto, esta descrição pode dar a entender uma estrutura fluida e - não obstante a complexidade e linhas intricadas que pudesse assumir - coesa que, infelizmente, não possui.

Não somos, de modo algum, seguidores de qualquer tipo de dogmas para chegar a uma valorização de uma obra, achando que algo deve ser assim ou assado, ou se se não cumprir uma qualquer “regra” que se chegará necessariamente a um resultado menos satisfatório. Todavia, tendo em consideração que Impaciente se inscreve de modo claríssimo numa tradição que se pretende narrativa, clara, e até mesmo respeitadora de certos géneros, então aplicam-se determinados desejos de ordem. Há dois que importa salientar. Por um lado, a ideia muitas vezes repetida do “show, don’t tell”, que abordaremos já de seguida. Por outra, a do encadeamento das partes, e que nos remete para o princípio de todas as teorias da narrativa. É de Aristóteles a lição primordial da Poética: naquilo a que o filósofo chamava de “enredos simples” (isto é, o mythos, por oposição aos versos), distinguir-se-ão aqueles que organizam as partes, ou episódios, através da sucessão, “uns após outros [met’allèla] sem uma sequência verosímil ou necessária”, daqueles que as encaixam através de “uma relação de causalidade entre si” [di’allèla]. Isto é, consideraremos a existência de partes isoláveis e identificáveis enquanto tal, mas estudar-se-á se elas criam entre si uma relação de necessidade, de emergência de um tecido suave diegético, ou se mantêm a sua qualidade isolável. Ora estamos em crer que em Impaciente a ambição de gerir toda uma série de planos de desenvolvimento, conceitos e tempos, alguns deles de grande interesse, acaba porém por fazer rasgar a possibilidade de uma maior inconsutilidade, e cria antes uma catadupa de eventos relativamente desconexos. Ou pelo menos, como reza a expressão, aqui justíssima, “presos por um fio”, não sendo este fio aquele condutor de uma narrativa totalmente coesa. Apesar de, como dissemos atrás, a ambição e produção deste volume o tornar de facto o livro mais acabado na série em termos gerais, talvez não seja ele o mais equilibrado em termos diegéticos. Até pela sua concentração, é Roleta nipónica o que apresenta a estrutura mais elegante (apesar da ausência de cor no final não lhe garantir o fechamento do arco, parece-nos), já que os anteriores livros também sofriam daquele encadeamento de episódios “soltos”.

Esta realidade descritiva vai desembocar no problema de acedermos a informações sobre as personagens mais pelo que nos é revelado textualmente, pelas próprias ou pelas outras que os rodeiam, do que pelas suas acções efectivas delas nas narrativas. Esse é um dos outros problemas para chegar a uma leitura suave de O impaciente inglês. Consideremos a personalidade de Super Pig. A sua construção é muito curiosa e devedora, em larga medida, de várias tradições da banda desenhada facilmente reconhecíveis. Mário Freitas lança a sua personagem zoomórfica num universo de seres humanos, mas em que todavia rapidamente essa opção não dirá respeito a uma qualquer fantasia, possibilidade de maravilhoso, mas antes tão-somente a um equilíbrio actancial muito curioso. O que vai permitir ao autor jogar com toda uma série de referências (todo o conjunto de piadas em torno de temas suínos, sendo aliás os trocadilhos uma constante na sua escrita) como escolher, conforme as necessidades, um tom ora mais realista, ora mais fantástico, ora mais humorístico, etc., demonstrando assim a sua liberdade de géneros fechados.

O problema é que a personagem Pig é, no fundo, uma cifra, que está totalmente dependente das acções em que é colocado, e de certa forma quase sempre as resolve enquanto factor ex machina. Não compreendemos jamais, apesar da leitura dos livros, o que é que esta personagem faz, e muito menos a razão pela qual ela parece angariar a fama e o respeito dos que o rodeiam. Ele é respeitado, sem dúvida, mas não testemunhamos jamais as acções que o levam a conquistar esse respeito. Por exemplo, “sabemos” que ele ajuda a polícia em determinados casos, mas a forma como “vemos” esta personagem a resolver casos nunca é graças aos seus poderes de dedução ou de acção, mas antes chega lá quase por acidente. Já na Fundação, à qual acede por um estranho convite - quer dizer, ele é filho do fundador, e tenta-se demonstrar que não é essa a razão pela qual é convidado, mas tampouco se percebem quais as qualidades que tem para ganhar essa confiança - parece reduzir-se a papéis relativamente simples, desde escolher “bolsistas” (possivelmente um brasileirismo para “bolseiro”) ou a revelar uniformes à trekkie. Neste ponto, importa apontar que o papel desta Fundação também não é totalmente claro (arte, ciência, educação, tecnologia de ponta, numa espécie de cruzamento entre a Gulbenkian e a Wayne ou Future Foundations?). E a sua (quase) infalibilidade à mesa, na moda, na pista de dança, a conduzir helicópteros que jamais tinha visto, torna-o uma espécie de James Bond improptu ou instantâneo, mas que não ajudam à construção gradual da personagem, julgamos. Será ele então respeitado por ser um bom economista, ter dotes físicos e de combate, uma inteligência superna, ou - enfim, a imagem que mais resiste e sobrevive - ser uma pessoa com dinheiro? Regressamos ao início do parágrafo: parece ser quase uma cifra, passível de ser modelada conforme as necessidades dos eventos que se seguem, e não uma exploração interna da sua personalidade e limites que levem a acções e reacções necessárias. (Como é natural, abster-nos-emos totalmente de considerações biografistas e psicologizantes, apesar de existirem suficientes pistas textuais e paratextuais que permitiram interpretar a personagem como um avatar ficcionalizado do próprio autor, onde ele poderá ou não projectar experiências pessoais; mas sendo essa uma opção de todo e qualquer autor, ela não pode tornar-se um instrumento de leitura e interpretação, que se tornaria abusivo e falso). E se a interpretarmos dessa forma, e recordando ainda a autonomia do título, poderíamos perguntar-nos se não poderia ser a história tecida em torno de outras personagens, sem que se perdesse a estrutura e interesse? Provavelmente a trama, intricada e com pontos promissores de desenvolvimento, ganharia se fosse um universo autónomo.

O mesmo poderá ser dito das personagens que o rodeiam, inclusive da família, mas tendo tão pouco tempo de presença e desenvolvimento na acção da narrativa, não há espaço para as expor. E acabam por surgir quase sempre reduzidas a uma ou duas características-chave. Repare-se como a figura da mãe parece problemática e um obstáculo na vida de Pig, mas não há interacção e conflito suficiente entre eles para perceber o que minaria essa relação. Mesmo o pai surge como uma versão ligeiramente diferenciada do seu filho. Sabe artes marciais, fala japonês, tem características infalíveis em termos culturais e de negócio, e recebe uma honra incomparável da parte de Churchill, para quem havia trabalhado como secretário, mas sem que compreendamos as razões que o levaram a conquistar essa honra. E tendo em consideração que o que herda de Churchill - a língua de Shakespeare - é o garante da glória britânica, não é clara a razão de ser um português quem a deve proteger de seguida (quer dizer, trocam-se palavras, explícitas, mas não é clara a razão).

Não obstante essa redução das personagens a agentes que servem de eixos mas não agentes das acções propostas, as ideias esgrimidas em O impaciente inglês são curiosas, imaginativas e estranhas de um modo inusitado, permitindo ao autor estabelecer uma trama complexa que nasce na Inglaterra isabelina, com Shakespeare e o mago John Dee, para atravessar vários dos momentos da sua história, muitos nomes sonantes - e até bastamente famosos - para desembocar em Churchill, passar pelo desvio, em Portugal nas mãos dos Pigs, para finalmente espoletar a acção central do livro. As várias heranças da língua, que passa por Milton, Wilde, e Darwin, por exemplo, poderão fazer recordar alguns leitores da intricada linha do Priorado de Sião, divulgado pelas obras de Baigent, Leigh e Lincoln, e popularizado por Dan Brown, mas são muitas as outras fontes, populares ou eruditas, possíveis de arrolar na leitura deste livro.

Os leitores de Grant Morrison, Neil Gaiman e Alan Moore conhecerão muitas dessas referências, e até certo ponto podemos imaginar que esta aventura é uma espécie de homenagem a esse trio importantíssimo de autores, e às suas ideias e elementos costumeiros, e mesmo alguns personagens, como Shakespeare, John Dee ou o trio de Byron e os Shelley. Os conceitos estrambólicos de Morrison estão presentes, por exemplo, na língua, que poderá recordar a cabeça de São João Baptista de The Invisibles, tal como o grupo L.I.V.E.H.A.T.E poderia associar-se às várias guildas de The Doom Patrol; as incursões pela história e a emergência de uma sustentável conspiração mágica terá muito de Sandman, e existem referências explícitas a From Hell. No entanto, perguntamo-nos se a catadupa de informações e linhas de fuga temáticas e de conceitos acaba por vir a coalescer-se numa narrativa fluida. Na verdade, algumas das ideias não são claras de todo, especialmente no que diz respeito aos “recipientes” da língua, as relações entre estes e os poderes instituídos (porque é que a Rainha Vitória se parece subitamente com um monstro? Não haveria alternativa em quem recebia? Por que razão está interessado o Kent Waite contemporâneo num plano de conquista cultural que não se havia debatido anteriormente?). E bastaria perguntarmo-nos “quais são os poderes efectivos da língua?” para desafiar essa compreensão.

No entanto, Mário Freitas apresenta toda uma série de ideias notáveis e particularmente operatórias na sua narrativa, trouvailles que contribuem para a mecânica densa do livro e, como toda aquela ficção efectiva, trazendo elementos fantasiosos que, depois de inventados, se tornam como que mais verdadeiros e interpelantes que a pobre e apagada “verdade histórica”. Dois desses mecanismos são a forma como as linhas da Union Jack se tornam o símbolo “fechado” que terá um papel preponderante na trama, ou a “explicação” do consumo de álcool e charutos da parte de Churchill (que, se por um lado complica a concepção explícita do poder da língua, faz pensar que o autor presta uma bela homenagem ao poema “Bluebird” de Bukowski). Há uma linha que tenta explorar o lado mais emotivo das personagens, sobretudo naquele friso inferior a cinzentos que demonstra (parte) da relação entre o Super Pig e o seu pai Calouste, que é em larga medida paralelo à acção, mesmo visual, de Impaciente, e que aponta à potencialidade de uma exploração bem distante da parte mais espectacular. Além do mais, existem várias cenas em que a interacção entre as personagens, os diálogos, os silêncios e os desenlaces das mini-acções, as transições entre cenas, são extremamente contundentes e efectivos, como no início da alucinação de Pig ou a página do epílogo.

Toda esta densa saga transhistórica e mágica é apresentada num veículo igualmente complexo, naturalmente. Em termos de composição, é bem possível que seja uma negociação entre a planificação de Freitas e a visualização de Pereira. Tendo em consideração os anteriores livros, que também se abandonavam a construções de página vistosas e complexas, não deixam de se detectar os mesmos princípios em Impaciente, e que nos fazem pensar nalgumas escolhas de Williams ou Quitely (sobretudo We3), como havíamos discutido a propósito de Sandman: Ouverture. Porém, se nestes últimos autores existem construções complexas mas judiciosas e que acentuam os significados (dinâmicos ou outros) do que é transmitido conotativamente na prancha, a esmagadora das opções da saga de Super Pig acabam por atingir um certo excesso. Não sendo impossível compreender todos os níveis da narrativa em curso, os efeitos estão ligeiramente mais próximos da pirotecnia do que numa fluida construção de sentido. Roleta nipónica era mais simples, e por isso equilibrado, e este novo volume volta a escolhas agudas, mais uma vez sublinhando a sua ambição. Nalguns casos, a clareza leva a uma fluidez de acção e reacção, como no caso do jogo de squash entre Pig e Rios de Massa, noutros casos pretende gerir várias linhas de atenção, como na cena inicial do encontro entre Pig e Kent Waite (pgs. 6-7), mas na recta final do desenlace existem opções que funcionariam melhor numa estrutura menos fragmentada. A constante alteração de ângulos, posições e planos nem sempre contribui para tornar mais interessantes as cenas, e a construção de espaços cheios e pormenorizados acentuam a sua ausência imediata (como a cena no escritório de Silva Mendes).

Em algumas das reacções ao trabalho de André Pereira, é curioso ver repetidas algumas das ideias, por vezes, ipsis verbis, do que foi dito na apresentação pública do livro no último FIBDA, mas sem que se procure compreender o valor das palavras e a correcção dos conceitos empregues. Uma primeira abordagem tem a ver com a figuração do artista, apelidada aqui e ali de “grotesca”. No entanto, que sentido quer essa palavra tomar? Estará a referir-se a uma forma de desenhar corpos menos atreitos às regras naturalistas da anatomia, ou a algumas das linguagens gráficas mais clássicas? Se as comparações ao trabalho de Frank Quitely funcionarem, em termos de figuração, terá que se compreender que dirá menos respeito à “potência física” dos corpos desenhados pelo autor britânico repetindo-se nos dos do português do que a uma formulação que distorce os rostos dos do primeiro (veja-se a capa de Terra Dois, publicado há pouco tempo em Portugal, e repare-se como a Mulher Maravilha parece um homem, e todos eles partilharem princípios estruturais), e todas as formas do segundo. Pereira não tem, de facto, uma linguagem suave, streamlined, uma vez que ele se inscreve numa escola mais “nervosa” (havíamos falado de Troy Nixey antes, mas haverá muitas outras referências).

Ou será mesmo possível regressar ao sentido daquela palavra na história de arte, que o associa às grottas italianas, isto é, às ruínas romanas e pinturas simples aí encontradas, por volta do século XVI? Mais especificamente, esse seria um vocábulo para descrever as pinturas ornamentais, cheias de motivos florais ou zoomórficos, que se compunham numa faixa vertical. Só mais tarde é que seria aplicado à literatura, e sugeriria ideias do ridículo ou absurdo, do monstruoso e do anormal. A palavra assume sempre, portanto, um tom relativamente pejorativo, sinónimo de “feio”, ou pelo menos de “distorcido”, “não conforme”, “estranho”, a ideia de excessivo. Se forem estes últimos sentidos, então notar-se-á sem dúvida que, apesar de Pereira ter criado uma história dinâmica em Inner Math/Mega Fauna, e depois em 9:2:5 ter perseguido antes um registo quase autobiográfico (nele podia-se testemunhar em parte o processo de desenho d’O impaciente), as suas opções figurativas, e sobretudo das expressões dos rostos, eram muito calmas e recatadas. O tipo de melodrama exigido pela saga de Super Pig, porém, lança-o numa zona de algum desconforto, e de facto notam-se alguns momentos mal conquistados nos momentos em que as personagens se exaltam, gritam, ou são surpreendidas. Pereira domina a continuidade dos corpos, mas nos grandes planos dos rostos perde-se alguma da coesão necessária.

Não obstante, de todos os artistas que desenharam o Super Pig, André Pereira é aquele que traz uma verdadeira personalidade gráfica (para além de mascote publicitária) e coerência interna para o projecto. Se podemos ver em Osvaldo Medina uma boa prestação, com Roleta, ela era-o por contrastar com alguns dos problemas de incoerência, prosaica se não mesmo insípida dos primeiros capítulos, já que mesmo assim não está ao nível do seu A fórmula da felicidade. E há algo no desenho em desequilíbrio de André Pereira, entre o caricatural, ilustrativo, “abonecado”, e o épico, dinâmico, modulado, que torna este universo diegético mais conciso.

Como se sabe, as estratégias do autor-editor têm sido a de sublinhar e tornar visíveis as mais possível todas as funções na economia de produção de um livro, o que é um gesto relativamente inédito entre nós, quer em termos de constituição de equipa quer em termos de atribuição e importância pública. Se sabemos que poderá sempre existir alguém responsável pela cor ou legendagem que não os artistas principais, é raro que se lhes dê lugar de destaque (o nome na capa, uma apresentação pessoal, etc.), pelo menos na tradição europeia, apenas há pouco tempo “corrigida”. No entanto, isso não significa necessariamente que, respeitando-se as contribuições artísticas desses intervenientes, que levam ao resultado final, aceitemos o mesmo grau de responsabilidade autoral (se bem que esta questão mereceria uma discussão maior, existindo casos-charneira nas quais as cores são decisivas não tanto na mera “beleza” como na construção de significado).

Ora as cores de Bernardo Majer são suficientes, mas questionamo-nos se merecerá uma discussão própria mesmo no nosso contexto de difícil profissionalização. Afinal de contas, não estamos perante um trabalho intenso e singular de cor directa como, por exemplo, aquele de Mattotti, Miguel Rocha ou de Diniz Conefrey, ou as expansões líquidas de Lynn Varley ou Pratt, os graus acima da linha clara de Yves Chaland e Isabelle Beaumenay-Joannet no Incal, nem de uma modulação da cor detalhada, com Photoshop, de Dave Stewart ou Matt Hollingsworth. No entanto, na ausência de um “mercado” (trabalho sustentado, acesso a tecnologia, assistentes e remuneração que liberte de outras responsabilidades, concentração e exclusividade), o domínio de uma ferramenta destas irá acentuar sobremaneira a expressão da arte original. A esmagadora maioria da coloração é feita com a escolha de uma cor para cada superfície, e as sombras na mesma são feitas com algumas gradações mais escuras (ou traços mais claros para dar toques de reflexos de luz, auréolas de brilho, etc.). Há uma procura por alguma ambientação geral diferenciada conforme estamos no “presente narrativo” ou em cenas pretéritas (a saga da língua, os flashbacks a cinzentos da infância de Pig), eficiente, mas em termos gerais acaba por se criar uma espécie de camada plana e sóbria, senão sombria, de uma ponta à outra. Além do mais, o desenho de Pereira opta precisamente por linhas nervosas, inclusive nos corpos e rostos, que já os modulam de uma maneira, que nem sempre é seguida com justeza (o que é diferente de “precisão”) por Majer. Contraste-se, a título de exemplo, esta galeria de rostos (pg. 37). Dito isto, não deixam estes de ser gestos conducentes à emergência de uma verdadeira coordenação de talentos, de extrema importância, e nada disto reflecte a qualidade do trabalho de Majer a solo, cuja obra é de uma solidez considerável, e que o inscreve numa escola de jovens autores que mesclam princípios da ilustração e da banda desenhada, de uma sensibilidade muito europeia. Futuros trabalhos anunciados possivelmente revelarão o seu traço a um público mais alargado do que aquele atento aos concursos nacionais.

Assim sendo, o equilíbrio de Super Pig. O impaciente inglês torna-a uma obra a ler atentamente, e a compreender o seu papel na economia da produção contínua da saga, e dos seus autores envolvidos.