26 de junho de 2013

Inferno. Marcel Ruijters (Mmmnnnrrrg)

O fascínio por Dante inaugura toda uma linha de desenvolvimento do pensamento, filosofia, teologia, e literatura na Europa, e mais além. Como não poderia deixar de ser, também exerce uma forte influência no que diz respeito à representação visual dos círculos do Averno e do Empíreo (o Limbo, entretanto, “fechou”), não tivesse tido uma versão magnífica, ainda que incompleta e ainda que não a primeira, com Botticcelli e, depois, seguida pelas de Giovanni Stradano, William Blake, Gustave Doré, António Carneiro, Miquel Barceló, etc. É claro que outras disciplinas artísticas não puderam ser de forma alguma ser alheias a essa tradição (recordemo-nos de A TV Dante, de Greenaway), tais como a banda desenhada. Mas se aqui, sobretudo no que se entenderia como cultura popular, existem muitas “versões” escolares, naturalizantes, de “terror” ou medíocres, existem também outros exemplos que conseguiram passar a barreira da mera adaptação para chegar a formas de verter a matéria em novos actos poiéticos, levando-se mesmo à fundação de novas obras magistrais deste outro campo artístico. Neste último aspecto, apenas nos podemos referir, pensamos nós, a Jimbo in Purgatory e Jimbo’s Inferno de Gary Panter. (Mais) 

17 de junho de 2013

Le décalage. Marc-Antoine Mathieu (Delcourt)

Nascido dos conhecidos trocadilhos do autor, a personagem na “capa” (ver adiante) do livro aponta desde logo o mote de Le décalage: “on ne contrôle pas un lit ivre”; literalmente “não se pode controlar uma cama bêbada”, mas onde as duas últimas palavras conduzem à ideia de “livro”. A cama trata-se do inusitado veículo de, a um só tempo, entrada do protagonista na história, saída do seu universo diegético para um nível supra-diegético, referência metafórica e intertextual do “mundo da banda desenhada” e, claro, piscadela ao poema de Rimbaud, Le bateau ivre, e as suas paisagens feéricas.
Como já havíamos escrito a propósito do seu livro dedicado ao Louvre, Mathieu tem em Acquefaques uma espécie de guia psicopompo que nos conduz pelos intricados mecanismos internos do próprio livro. E tal como nesse outro caso, mas de uma forma particularmente intensa nesta série, cada livro não é mais do que uma mise en abyme desses mesmos mecanismos. De uma forma redutora, poderemos dizer que os álbuns anteriores desta série se centravam noutras dimensões da obra de banda desenhada. L’Origine sobre a ontologia da banda  desenhada, a forma organizada a que um objecto livro obriga, às passagens a que convida, mesmo as inesperadas; La Qu…  revisitava a ideia do processo de criação mas para colocar o protagonista em busca da quadricromia; Le Processus desdobrava o personagem em dois, para colocá-lo “fora” da sua dimensão ou nível de representação, para descobrir outros níveis ainda de estruturação da banda desenhada; Le début de la fin/La fin du début é um livro reversível que apresenta duas narrativas numa espécie de palíndromo visual invertido, inclusive a nível da distribuição do preto e branco; La 2,333e dimension centrava-se sobretudo na ideia do ponto de fuga, da perspectiva, na fabricação de “mundos ficcionais” de banda desenhada e na [ilusão da] terceira dimensão.
Cada um destes livros são bem mais do que isso, claro. São como que um exercício de reflexão metalinguística sobre a banda desenhada através de uma ficção que imita, em parte, alguns dos típicos elementos do mercado a que pertence - o franco-belga -, desde a assunção de uma série, a existência de um herói recorrente representado da mesma maneira, o tirar partido das guardas, etc. Mas também elevam essa reflexão do meio a  referências quer directas a outros autores - de Schuiten a Trondheim - quer indirectas: o nome de Julius Corentin remete desde logo a referências mais ou menos óbvias (cada nome e o acrónimo), o de família é uma espécie de palíndromo fonético de “Kafka”, o pressuposto indicado pelo sub-título (“prisioneiro dos sonhos”) e pelas primeiras acções (ele acorda sempre porque caiu da cama de um sonho estranho) remete a Nemo, etc. A série, mas poderíamos dizer toda a obra de Mathieu, de facto, electrifica a dinamização da estrutura que conhecemos como “banda desenhada” para dela criar histórias “ao quadrado”, como diria Borges.
Em cada um desses livros, o autor usa técnicas relativamente incomuns que mexem mesmo com a materialidade do livro. Não são propriamente inéditas, e emprega-as de modo que não se esgotam num uso somente espectacular ou de prazer háptico/visual, lúdico, mas tornam-se integradas e significantes na construção da diegese, do significado da história: vinhetas que são um buraco, a passagem gradual às quatro cores, uso de efeitos 3D, uma espiral de papel que liga uma folha à seguinte, fotografia dos materiais originais de criação da própria banda desenhada, duas capas e inversão do livro… Em muitos aspectos, a obra de Mathieu, e esta colecção em particular, é uma prova cabal que no campo da banda desenhada a camada dita paratextual é menos relativizável e mais significante do que noutros domínios mais literários (sobretudo o romance “clássico” ou “normativo”). Porém, desenganem-se os leitores que julgarem estar perante experiências densas como aquelas propostas ora pelos exercícios de salão - mas divertidos, consequentes, teoricamente ricos - da Oubapo ora dos projectos artísticos e profundos de plataformas tais como a Frémok - que obrigam sempre a uma distância emocional e entrega crítica particularmente forte. Bem pelo contrário, Mathieu tem uma capacidade de empregar todos estes desvios experimentais no seio de uma estrutura naturalizante, de onde emerge uma história, uma intriga, uma acção empolgante e até humorada, e uma construção clara de um universo ficcional e das relações entre as personagens.
No caso presente, a descrição física aponta desde logo à circularidade da narrativa (como em 3 secondes, mas numa estruturação totalmente diversa). O álbum tem um aspecto material normal: capa dura de cartão com impressão brilhante, divisão do miolo em quatro cadernos cosidos, impressão off-set. Mas aquilo que se encontra na(s) capa(s) não são os elementos usualmente reservados para uma capa. A capa, digamos, “verdadeira”, assim como o cólofon, a lista de livros já publicados, a descrição da história, e até mesmo o código de barras, estão no interior. Na “capa” (física ou material) encontra-se parte da história. As folhas correspondentes às páginas 41-42, 43-44 e 45-46 encontram-se rasgadas na sua quase totalidade, mas dos fragmentos “sobreviventes”, a sua combinação consequente permite leituras múltiplas (“obrigando”, portanto, as personagens a repetirem gestos, posições, expressões e partes dos diálogos). Aliado à “história”, entendemos que o que se passa é o “desfasamento” - a décalage - entre a forma física do livro e a organização da história.
Mais uma vez, J.-C. Acquefaques é “cuspido para fora” da narrativa ao início, e tudo isso vai colocar todas as restantes personagens não apenas à busca dele como a tecerem inúmeras ideias e reflexões sobre a natureza de uma “história sem herói” e das formas de organizar narrativas. A busca pelo protagonista torna-se mesmo a ocasião para construir diálogos em torno de trocadilhos e diálogos absurdos dignos de Beckett, e o convite à sua leitura repetida, circular, potencialmente infinita, levam a ter de escavar cada frase como sendo uma fórmula para entender, de forma universal, o projecto da ficção, ou da arte.

12 de junho de 2013

Unearthing. Alan Moore, Mitch Jenkins et al. (Top Shelf)

Apesar do texto de Unearthing, de Alan Moore, já existir há mais de seis anos, a razão que nos leva a escrever sobre ele neste momento é sua edição “de luxo” pela Top Shelf. Um monumental volume de mais ou menos 22 por 30 cm, de capa dura, de edição limitada, e que traz uma dimensão “ilustrativa”, através das fotografias de Mitch Jenkins [com um cartão em letterpress, assinado por ambos autores, numa edição ainda mais especial, de 300 exemplares, que serviu de incentivo e garante da impressão, um dos modos mais usuais de pequenas editoras, como é o caso, de assegurarem o sucesso comercial das suas empresas].
Não é o primeiro texto que Moore cria sem ter, numa primeira fase, uma sua dimensão visual, se bem que mesmo os contos, poemas ou outro tipo de projectos textuais que se pretendiam como tal, sem mais, cedo ou tarde ganharam uma sua adaptação, se bem que nem sempre interessante (precisamente por ser adaptação, e não um projecto pensado de raiz). Mas Unearthing acaba por se tornar um nódulo extremamente curioso, já que nasce e mergulha de novo numa complexa constelação de colaborações.
Uma forma de tornar explícito o que “isto” é, é chamar-lhe biografia. O objecto de inquirição de Unearthing é um amigo de longa data e mesmo mentor de Alan Moore, Steve Moore. Apesar da coincidência dos apelidos, não são do mesmo sangue, se bem que sejam já família há muito tempo. Conhecendo-se desde a adolescência (Alan tinha 13 anos, Steve era um jovem adulto), Steve foi quem, de certa forma, “ensinou” Alan a tornar-se um melhor escritor para banda desenhada, introduzindo-o ao mundo da 2000 AD e, mais tarde, partilhando o caminho de entrada na via real da magia e do ocultismo. Neste último campo, ambos os Moore preparam uma espécie de compêndio sobre magia para a Top Shelf, ainda sem data marcada.
Mas “biografia” não é um descritivo preciso, ou totalmente correcto. É tão-simplesmente uma categoria que serve de armadilha para aprisionar algo que escapa em larga medida a quaisquer possibilidades de categorização. Talvez esse seja apenas o termo da desculpa para tecer um objecto textual que desdobra considerações psicogeográficas de um local “electrificado” pela vida de Steve Moore, que aparentemente nunca saiu de um espaço relativamente confinado, desde que nasceu até à sua idade actual (61 anos). Assim, Unearthing é também uma história mística de Londres (à la Iain Sinclair ou Peter Ackroyd) - ou mais especificamente Shooter’s Hill, no sul da cidade -, uma saga de uma viagem espiritual e das travessias mágicas de S. Moore, e uma composição livre, que alguém já havia comparado ao jazz.
O texto em si já havia sido escrito em 2006, e publicado, aparentemente, na antologia London: City of Disappearances, editada precisamente por Iain Sinclair. Graças a várias versões ou formas de leitura pública do texto, em 2010 ganharia uma dimensão sonora através de um projecto que reunia variadíssimos músicos (com nomes como os de Zach Hill, Stuart Braithwaite, Justin Broadrick, Adam Drucker, dos cLOUDEAD, e Mike Patton, mostrando desde logo uma compreensão bastante alargada do que se pode constituir enquanto camada musical), em que Moore lê os textos integrados em ambientes sonoros post-noise, uma espécie de audiobook com contornos de spoken word. Moore lê os seus textos de uma maneira cadenciada, com um sotaque muito particular, e que, sublinhado pelos sons que envolvem a voz, ganha uma qualidade quase hipnótica, seguramente pretendida.
Finalmente, uma dimensão visual e de estruturação veio a ser garantida na colaboração com o fotógrafo e realizador de videoclips britânico Mitch Jenkins, que, como Moore, é de Northampton, e com quem já havia trabalhado na revista Dodgem Logic. Jenkins trabalha sobretudo no mundo comercial da publicidade ou do glamour televisivo, sendo um profissional muito afamado trabalhando na camada superior desses mundos, o que se notará pelos tiques técnicos (determinadas formas de tratar a composição, a diferenciação de planos, a escala cromática e a iluminação, os retoques em Photoshop, etc.). A colaboração com Moore poderia ser vista, do ponto de vista financeiro, uma “descida”, mas em termos de criatividade, liberdade, estímulo intelectual, Jenkins confessa que foi como novo oxigénio. Trabalharam nalgumas imagens, incluídas no box set dos CDs e Lps, depois no livro que agora temos em mãos, e além do mais, têm colaborado numa série de filmes curtos que comporão uma unidade maior intitulada The Show, de certa forma sobre o bas fond de Northampton. Na internet, podem-se ver, até à data, o “prelúdio”, Act of Faith, e o trailer de Jimmy’s End. Numa primeira abordagem, parece-nos que o tipo de intensidade a que Moore nos habituou em determinados títulos da sua lavra na banda desenhada não encontra no cinema a mesma felicidade. O primeiro filme até parece firmar a contínua crítica a Moore de que parece de alguma forma obcecado pelo sofrimento das mulheres, mormente associada ao sexo. No entanto, é necessário que todo o projecto (multimédia, hipertextual) arranque para termos uma imagem mais consistente e definida do mesmo. E no que diz respeito à visualização permitida por Jenkins, a ela voltaremos.
Não obstante, todas estas linhas de desenvolvimento, na verdade, influenciam-se umas às outras, num natural processo circular de linhas de desenvolvimento, soluções, estruturas, e feedback. Se o texto se encontra no centro da tempestade, por assim dizer, a tempestade em si alimenta-se das várias zonas de fricção entre os colaboradores.
Daí que a experiência deste livro foi feita por nós de uma maneira muito expectável, acompanhando os textos, pelo menos numa das fases, ao som da voz de Alan Moore a partir as gravações musicadas, tentando compreender os pontos de convergência e de divergência entre, por um lado, os ritmos construídos e harmoniosos entre a voz e os sons, e, por outro, pelo arranjo tipográfico do texto e os contrapontos fotográficos. Se são duas estruturas diferentes (ou mesmo duas estruturas duplas, por serem “diálogos” entre texto escrito e imagem, e entre texto oral e música), haverá momentos que nos estimulam a imaginar ora harmonizações felizes ora dissonâncias significativas.
A leitura, desta forma, permite compreendermos o texto, que não deixa de ser denso e complicado quer pelas suas referências, as quais exigem erudição, quer pela sua qualidade gramatical, nem sempre imediata. Escutar apenas os textos poderia tornar-se eventualmente obscuro para a esmagadora maioria do público (mesmo o anglófono), e somente lê-los lançar-nos-ia na possibilidade de ritmos desconexos. Nesta opção, ambas as dimensões guiam a atenção e reforçam o foco, absolutamente necessário num trajecto tão pouco linear e de contornos difusos.
O livro não se encontra organizado propriamente num conjunto de capítulos, que pudessem corresponder às faixas do projecto musical, mas é possível, se assim quisermos, entender algumas das separações como criando unidades textuais. De resto, não há uma correspondência directa entre os “intervalos” das faixas e a composição do texto no livro. Se uma primeira parte se pode entender como introdutória, fazendo-se uma larguíssima e densa história de Shooter’s Hill e a sua área circundante - desde a pré-história geológica até a conquista romana, passando pela expansão isabelina e a era industrial, os ataques da Luftwaffe e a miséria dos anos Tatcher -, rapidamente se coloca a tónica na vida da família de Steve Moore até se chegar aos acontecimentos pertencentes à sua vida: formação, escola, primeiras relações amorosas e grandes tragédias do coração, os primeiros empregos, as primeiras obras e as conquistas da carreira, os percursos, o início do fascínio, fortuito aparentemente, com Selene, o pequeno retrato que faz [mostrado acima], e a consequente formação dela numa ideia mais forte, até se coalescer em algo sem descrição lógica. A um só tempo, há uma organização lógica e a possibilidade do seu desvio, as mais das vezes conseguida pelo conhecido burilar textual de Alan Moore, que associa através de adjectivos ou fugas de atenção um qualquer pormenor prosaico às suas associações quasi-universais, sempre para sublinhar as coincidências maravilhosas que o mundo ainda permite, a quem quiser olhar com olhos de ver.
O texto entra e sai das mais variadas escalas: humana, geológica, animal, vegetal, cósmica, histórica, mágica. Não há forma de dar forma sinóptica ou explicativa de todos os seus elementos, que não são propriamente livres, num movimento browniano, mas que exercem uma qualquer força gravitacional entre si, permitindo elos subtis e afinidades electivas entre os fósseis selenites rhomboidalis e o planeta Uniceptor IV, da série Dr. Who. Uma das frases do primeiro capítulo parece ser suficientemente programática: “[Steve Moore] dreams [Shooter’s H]ill. The hill dreams London”. Mas não se julgue que o sonho surge somente como portão ou passagem. Não há nenhum aspecto da vida que não possa encontrar uma forma de ser trabalhado enquanto ponto de significação. Mais, muitos aspectos domésticos, e até mesmo sociais e políticos, são sublinhados precisamente para deles se libertarem com maior força e efeito as dimensões mágicas.
Pois apesar de tudo, se há progressão na “diegese”, ela dirige-se à tal relação com Selene, ou pelo menos com a Selene que Steve Moore conjurará para si mesmo. As referências aglomeram-se: Crowley, Algernon Blackwood, a tulpa, o sistema do I Ching; tudo isso na contínua exploração do espaço que a magia tem no mundo. Os momentos de maior intensidade aural, no projecto musical, são precisamente os rituais que deram fruto: o primeiro passo quando escuta, num sonho premonitório, a palavra “Endymion”, às quatro da manhã em Outubro de 1973, o encontro com Alan a 7 de Janeiro de 1994 (possivelmente o primeiro momento em que Alan veio a conhecer Glycon, o “seu” deus), e finalmente - na economia da narrativa que nos é dada a seguir - o desvendar de Selene a Alan no início de 2001. Em várias entrevistas, Alan Moore já expôs como interpretou estas experiências, não descartando a noção de uma alucinação, mas nem evitando que ela faça parte da experiência, logo, real da própria pessoa, ou que ela não possa ser fruto de uma partilha com outra pessoa (que é precisamente o caso dos dois Moores) ou que altere a forma de compreender o universo. Assim sendo, Unearthing pode ser tanto lido como pura ficção, como efabulação obscurantista entre os dois amigos, ou a criação de um diário sobre o acesso a outro reino de experiências.
Tal como Alan Moore tem como seu totem - não é o termo exacto - o deus-boneco-serpente Glycon, Steve Moore elegeu a deusa grega Selene como sua figura maximal (num momento em que Alan se introduz a ele mesmo no tecido da narrativa, recorda-nos que é Steve também o mentor e percursor nessa senda). Steve havia encontrado uma espada divinatória chinesa, feita de moedas, e num ritual improptu foi encontrando respostas ou estímulos às decisões que precisava de tomar, levando-o então a uma relação duradoura com aquela figura divina. A compreensão de “magia”, neste contexto, é muito específica, e nada tem de mistificadora, mas bem pelo contrário, relaciona-se com uma compreensão profunda dos espaços que ainda existem de liberdade e total decisão humana nos interstícios da lógica, da racionalização ou da escala “humana”. Menos do que obscurantismo, tem antes a ver com uma aceitação da estranheza que ainda não controlamos. De certo modo, a pesquisa que Alan Moore faz do local onde o amigo Steve vive, Shooter’s Hill, levou-a a uma compreensão causa-consequência sobre a origem da cidade de Londres, já que aquele local foi “criado” pelo colapso de um leito de giz, que por sua vez levaria à formação do vale do Tamisa e, logo, à possibilidade da fundação da cidade. Um dos eixos principais, senão mesmo aquele que mais importa, e que se deve notar em todas as considerações sobre a produção destes projectos, as relações entre as pessoas, e as dimensões da vida quotidiana e a vida “mágica”, é a da existência do feedback, que em português se diz “retroalimentação”, isto é, aquela parte de matéria que é ofertada ao mundo e que acaba por regressar e alimentar a fonte. Os rituais de magia, assim, são compreendidos como gestos que de uma maneira ou outra acabarão por exercer uma qualquer espécie de força e manipular o mundo de que partiram. É exercer uma vontade, por exemplo através da escrita, que se manifestará no mundo. Unearthing está cheio desse tipo de relações, tal como muitas das discussões de Moore em entrevistas, ou outros autores.
Ta como noutros trabalhos de Moore, acima de tudo Promethea, espécie de compêndio-através-de-uma-narrativa, a “magia” aqui não é entendida de forma alguma como uma forma de ilusão, truques de cabaret, ou princípios organizativos de uma qualquer seita. Aliás, a forma como estes dois autores se desligam de grupos organizados e auto-proclamados demonstram a total liberdade não só da prática como do conceito. O problema está em deslocar essa poderosa ideia de todo um edifício de mistificação e popularidade facilista. Repescando a ideia de Crowley de que a magia é uma “doença da linguagem” (também no documentário The Mindscape of Alan Moore este discute a proximidade de “gramática” e “grimório”), lemos neste livro o seguinte: “A maior parte da população tornou-se imune [a essa “doença da linguagem”, com o seu “vocabulário aceso e a sua sintaxe alucinada”] devido a C. S. Lewis, Tolkien, J. K. Rowling, Buffy, através da exposição ao vírus sob a forma de uma cultura morta, algo que forçará anticorpos que não aceitam ilogicidades, e os quais surtirão efeito sem o perigo de um encantamento totalmente desenvolvido. Textos que agem como desinfectantes, linguagem pasteurizada para consumo vulgar, com todo o bolor azul ontológico raspado”… Mas o que se pretende é mesmo uma intoxicação com esse bolor, um encantamento total que retire quaisquer referências e lance as pessoas num novo e alargado quadro existencial. “A ideia de deus é o deus”, escreveu o autor uma vez, impedindo desde logo a assunção de sistemas ou dogmas ou caminhos perigosos de hierarquias. O que importa é formar um caminho particular, e que tem tudo a ver com acção, não recepção.
Por isso, Unearthing serve para ser lido e ouvido e visto como um programa que tenta colocar em acção, noutras dimensões, o texto, e de certa forma convidar não apenas a conhecer a história - crendo nela - de Steve Moore, mas igualmente a novas acções.
As relações entre os sons e as imagens e os textos são por vezes claras, directas, “ilustrativas”. Algumas das fotografias de Jenkins pura e simplesmente mostram aquilo que se fala no texto, desde uma representação de Anne of Cleves (baseada na pintura de Holbein, mas mais velha), a um campo de golfe com uma bandeira caída para dar conta da morte do pai de Steve, passando por personagens que o representam a ele mesmo, a imagens de uma taberna antiga local. Outras abrem mais a interpretações deslocadas, mas no cômputo geral tudo é particularmente domesticado, por assim dizer. Numa entrevista sobre os filmes que estão a produzir, e respondendo a uma comparação que alguém fizera com a cinematografia de David Lynch, Mitch demonstra logo a sua pretensão de naturalizar as coisas, quando diz que, ao contrário do realizador norte-americano, ele deseja “explicar” as histórias e personagens, deseja que os espectadores compreendam os contornos da ficção. Contudo, não nos parece que isso seja particularmente enriquecedor, sobretudo se estamos perante um programa de esclarecimento, e não de abertura de espaços interrogativos, que é o que a arte deve criar. Quanto aos sons, estes são por vezes limitados igualmente a aspectos claros - Zach Hill a martelar complexamente a bateria no rápido progresso histórico de “Wappling Street”, sons mais violentos nas descrições decisivas nas conquistas indicadas por Moore, etc.
Há uma grande legibilidade de todo o projecto, mas não deixa o design de recordar práticas dos anos 1990, sim, com a Raygun acima de tudo. A acumulação das mais variadas fontes, a construção de parágrafos livres, certos tipos de “ruído” na sua composição, a utilização de toda a espécie de fotografias, inclusive fotogramas, fita-cola, rasganços, anotações “manuais”, o isolamento de palavras em algumas composições para efeito dramático, o uso de situações encenadas e altamente produzidas, a oscilação entre imagens quase escuras, nocturnas, e outras claramente manipuladas e “publicitárias”… tudo discursos mais ou menos perenes e tipificados do mundo comercial de que Jenkins emerge.
Nota: todas as imagens colhidas da internet ou dos materiais promocionais.

7 de junho de 2013

The Nancy Book. Joe Brainard (Siglio)

Tal como ocorre no livro dedicado a Jess Collins, também este outro volume se concentra num “capítulo”, digamos assim, de um artista. Neste caso, reúnem-se todos os trabalhos produzidos por Brainard nos quais estão presentes referências a Nancy, a personagem da famosa tira de banda desenhada  de Ernie Bushmiller.
O denominador comum com Jess Collins terá a ver, em primeiríssimo lugar, com o processo de apropriação. Mas onde Jess seguia parâmetros de apropriação ao nível material, através da colagem de elementos anteriormente fabricados, Brainard apropria-se somente do ícone (no caso das imagens) ou da personagem/nome (no caso dos textos), remetendo a outro nível de re-criação e re-construção. Outro aspecto em comum parece-nos ser a genuína relação de afecto que ambos os artistas nutrem pelo material que citam. Vários críticos explicitam que a relação que Brainard estabelecera com esta personagem não era da mesma têmpera que aquela, mais generalizada, entre os vários nomes maiores da Pop Art - com a qual temporalmente partilha factores e palcos - e os vários ícones oriundos da cultura popular, da cultura de massas, comercial, industrial. Ao passo que as sopas Campbell, os Kennedy ou as vinhetas extraídas da banda desenhada eram, nas mãos respectivas de Warhol, Rauschenberg ou Lichtenstein pura e simplesmente matéria pronta a reempregar enquanto simbólicas de um certo estatuto da produção humana na economia dos valores, e, portanto, apta a um discurso secundário que desmontava as fontes ou as confrontava com outras estruturas de pensamento, Brainard, mesmo não totalmente na ausência desses meta-discursos, acabava por revelar uma espécie de admiração ou amor por esse mesmo objecto.
A repetição das Nancy apontaria a uma obsessão, mas a colecção de textos, de amigos, do editor do livro, do próprio artista, que esta antologia comporta impede-nos de fazermos qualquer reificação dessa mesma relação. Ron Padgett, um dos amigos, por exemplo, mostra como interpretar o significado de Nancy a partir da ideia da homossexualidade de Brainard seria erróneo, até mesmo em termos históricos ou locais, já que o termo “nancy” ou “nancy-boy” (equivalente a “maricas”, por exemplo) não era empregue na infância e adolescência do artista, no Oklahoma. Portanto, não haverá tanto uma “identificação” entre Brainard e Nancy - naquele sentido pobre que discutimos a propósito de Hellblazer -, mas antes uma afinidade com aquela personagem por razões artísticas, entendidas estas da forma mais profunda possível, que abarque aspectos icónicos, figurativos, plásticos, formais, conceptuais, mas sobretudo de afinidades afectivas.
Brainard parece atravessar toda a espécie de possibilidades de empregar Nancy. “Inscreve-a” numa folha de rascunhos famosa de Leonardo, sobrepõem o rosto dela numa fotografia de infância de André Breton, cria-lhe pinturas, pequenas colagens (entre as quais uma relativamente conhecida capa para a revista Art News Annual no. 34), cria bandas desenhadas em colaboração com poetas tais como Ted Berrigan, Ron Padgett, Bill Berkson (porno na qual “participa” ainda o Henry de Carl Anderson) e Frank O’Hara, cria uma série de desenhos lançando Nancy em situações hipotéticas (“Se Nancy fosse um cinzeiro”, “se fosse uma personagem dos underground comix”, “um De Kooning”, “um Larry Rivers”, “se tivesse uma afro”). Além do mais, Brainard era também escritor, tendo criado uma autobiografia original com I Remember, caracterizado por abdicar de uma forma clássica de organização diegética, e coligir uma série de frases todas iniciadas “I remember…” O livro reúne todos os materiais textuais, estranha mescla de auto-ficção e manifesto, que falam directamente da sua personagem-fetiche, revelando parte do fascínio que ela exercia em Brainard e do enigma assim constituído.
Este volume não reúne todos os trabalhos que alguma vez Brainard criou com a Nancy, já que é apresentada uma relação no final do mesmo de trabalhos ausentes (por razões editoriais e dos proprietários). Mas a forma como os que estão presentes são reunidos pretende ser não só a de uma tipologização cabal mas estimulante aos diálogos internos.
Se a propósito do livro de Jess nos referimos a Spiegelman, neste caso também deveríamos recordar os trabalhos de “mixagem” de Nancy feitos por Mark Newgarden, a saber, a história “Love’s Savage Fury” e o ensaio escrito com Paul Karasik “How to Read Nancy”. Mas se nestes casos o que se procura estudar é a sobejamente conhecida plasticidade minimal e modular do universo gráfico de Bushmiller (já agora recordemos o jogo Five Card Nancy inventado por Scott McCloud), no caso de Brainard há mesmo uma pesquisa por um uso quase cabal da mesma, uma espécie de “vestir-se” com Nancy, mesmo nos seus sentidos travestidos e sexuais. Ann Lauterbach, no seu ensaio introdutório, cita Susan Sontag, das suas “Notes on ‘Camp’”, de 1964, no qual ela o define como “um solvente da moralidade (…) Aprecia, mais do que julga, os pequenos triunfos e intensidades estranhas de ‘carácter’… Camp é um sentimento afectuoso” (18).
Lauterbach chama o “casal” Brainard-Nancy “perfeito”. E a diversidade tremenda dos trabalhos em todos os aspectos revelará muitas emoções, humores e até decências, se assim quiserem, mas todas se unem num terno afecto, quem sabe não apenas do artista em relação à sua “musa”, como da personagem em si face ao seu apropriador.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

5 de junho de 2013

O! Tricky Cad & Other Jessoterica. Jess (Siglio)

A primeira vez que tivemos acesso ao trabalho de Jess, a sua “tira transformada” Tricky Cad, baseada em Dick Tracy, foi nas páginas de um, agora algo obsoleto, mas no seu momento fulcral e importante The Penguin Book of Comics, de George Perry e Alan Aldrige, de 1967. O aspecto importante é que uma obra de suposta divulgação de banda desenhada, menos interessada em perspectivas académicas ou conceptuais, teve a temeridade de misturar géneros, estilos e até mesmo campos, incluindo o que era abertamente uma obra obscura das (então) artes contemporâneas, de contornos experimentais, no seio de um balanço sobre “as grandes obras-primas” da banda desenhada. Não estando de forma alguma seguros do que diremos de seguida, estamos porém em crer que não encontramos jamais referências a este trabalho, até nos depararmos com uma versão redesenhada de Tricky Cad num dos últimos números da antologia alemã de banda desenhada Tonto.
Há uma outra referência-fantasma que não nos impediu de a esquecer, porém. Referimo-nos à banda desenhada experimental “Dead Dick” (na verdade, um dos lados da litografia Lead Pipe Sunday no. 1, de 1989) de Art Spiegelman, e que ainda teria alguns ecos em outras das suas bandas desenhadas curtas. A ela voltaremos.
Jess [Collins] é o nome “de plume”, simples, pelo qual Burgess Collins era conhecido no mundo das artes dos anos 1950 e 1960. Poderemos, até certo ponto, caracterizar a maioria da sua arte como tecendo-se em torno do que hoje se chamam “found images”, ou “apropriações”, inclusive as pinturas e as esculturas. Numa época em que ainda se cumpriam caminhos artísticos no interior de disciplinas e meios específicos (e não a categoria pós-conceptual mais alargada de “arte”), Jess era um praticante de diversos modos de fabricação e re-combinação de imagens. O presente volume reúne algumas das suas obras que têm uma qualquer relação com as artes do livro, seja pela via do múltiplo (livros de artista, postais, cartões de intertítulos para cinema) seja pela via da colagem que dialoga com a ilustração, a publicidade, a fotografia erótica e a banda desenhada (enfim, numa palavra, com uma certa linha da “cultura popular” do seu tempo).
Editado por Michael Duncan, comissário de uma exposição que está prestes a abrir dedicada a Jess e a Robert Duncan, poeta, colaborador e namorado de Jess de longa data (apesar das coincidências de nome, não há relação), este livro pode ser visto como um objecto-companheiro da mesma, mas não é um catálogo. Mais, um dos aspectos importantes deste volume, para além de algumas dessas colaborações Jess-Duncan, é que reúne na (quase) totalidade os trabalhos em torno da banda desenhada e reproduz na íntegra os seus livros de artista, inclusive um fac-símile de O!, incorporado num envelope [ver imagem acima]. Este livro pode ser lido conjunto com outro livro da mesma editora, em torno da obra de Joe Brainard dedicada à Nancy, personagem famosa da tira de Ernie Bushmiller, e de que falaremos no próximo post. Além disso, muitas das considerações possíveis em torno destes livros podem incorporar alguns elementos do texto de Marcos Farrajota no blog da Chili Com Carne (e também num dos Kuti Kuti), “Comix Remix”, uma antologização bastante alargada de uma prática cultural com muitos contornos, e que toca nas raias de alguma banda desenhada experimental. Dos Dada a diceindustries, encontraremos exemplos de um campo alargado da banda desenhada, e aos quais também se poderão candidatar os trabalhos de Jess.
Tricky Cad é um trabalho de 1952 em que se remisturam as tiras do famoso detective de Chester Gould. Jess produziu oito “Cases” (as II e III parecem estar perdidas), bebendo do trocadilho de “caso policial” e “vinheta”. Na nota de introdução (todo o livro tem notas do autor, que as tomou em vida), Jess explica que não fez quaisquer adições de texto ou de imagens, sendo os únicos novos elementos os instrumentos da cola (paste) e da tesoura. Mas aquilo que ele pretende fazer emergir é “a crítica hermética auto-contida da arte popular”, que deveria ser entendida mesmo como elogiosa, mas que, aparentemente, Gould detestou (“flatly abhorred by the creator”, pg. 17). Os outros trabalhos abertamente aproveitando material banda desenhístico são duas páginas de Ben Big Bolt (1954), uma tira do mesmo nome, sobre um boxeur, de E. Caplin e J. C. Murphy, e quatro tiras de Nance (1956), baseado no clássico Lance, de Warren Tufts (de que as edições de Manuel Caldas têm feito a sobejamente conhecida brilhante recuperação). De resto, existem séries de imagens que colam imagens vitorianas (um pouco à la Max Ernst, mas sem a mesma preocupação de estruturação para-narrativa), ou os corpos dos jovens musculados retirados da revista Physique Pictorial, talvez  a mais famosa revista beefcake de sempre, e importante nexo da cultura gay norte-americana dos anos 1950 e 1960.
Em todos os casos, podemos dizer que o propósito de Jess não era propriamente construir uma paródia básica, nem sequer um exercício oubapiano avant la lettre. Ou melhor, se entendermos estes últimos como exercícios que pretendem refundir o acto narrativo, representativo, natural, linear do objecto primeiro, Jess pretende despertar antes sentidos muito mais obtusos e opacos, mas não por isso menos impactantes. Tricky Cad continua a revelar uma economia de acção e reacção, de ambiente policial, mas ao mesmo tempo surgem situações surreais no pleno sentido da palavra (a legenda “Whinemeal” continua a ressoar potencialidades imensas). Uma vez que Jess emprega em casa “case” apenas elementos de um mesmo “arco narrativo”, há uma coesão estilística - a cor, o tipo de traço de Gould, personagens recorrentes mesmo se “alteradas” por Jess, etc. - e até mesmo narrativa. É em contraste com esta forma de trabalhar que os exemplos de Spiegelman se revelam menos arriscados, e quase surgem como confirmações dos componentes dos trabalhos originais, não enquanto modos de relançamento do seu significado. Já Nance e Ben Big Bolt, até pela repetição de corpos numa mesma vinheta, e muitas vezes corpos masculinos despidos, e também influenciado pela série de colagens When a Young Lad Dreams of Manhood (1953, a tal a partir dos efebos da Pictorial), parece querer sublinhar os aspectos homoeróticos que essas aventuras masculinas continham desde logo (ler estas obras de Jess à luz dos ensaios de Wertham talvez lhes garantisse também uma capacidade de análise dos textos originais nesse mesmo sentido).
Algo de extrema importância neste volume, e no tratamento gráfico das imagens, é que a reprodução fotográfica não oculta de maneira nenhuma a materialidade original das colagens, a sua textura, a sua “bumpiness”, para recuperar um termo de Lynda Barry. A antologia da Penguin tinha uma má reprodução a cinzentos, num processo obsoleto que tornava o o “texto” algo “liso” e “monótono”. Na Tonto (apenas a “Case VII” [ver imagem ao lado]), o editor e autor, Helmut Kaplan, “transforma”, por assim dizer, esse material original num novo texto, redesenhando-o. Puxando os pretos e brancos, introduzindo um apontamento a vermelho, instalando uma lisura, o novo Tricky Cad de Kaplan procura efeitos de design que não existiam originalmente, como se fizesse parte de uma presença mais naturalizada. Seja como for, é esse mesmo o propósito dessa recuperação pela parte do editor, que a integra num corpus maior de referências (e que serviria de contexto precisamente para o trabalho de Jess e dos vários comix remix de Farrajota). Como se encontra em Jessoterica, porém, podemos estudar os processos de Jess. Vemos, palavra a palavra, onde e como ele recompõe as frases ditas pelas personagens, e apercebemo-nos como é que essas mesmas personagens, reformatadas, surgem a partir de elementos heteróclitos da tira original (funcionaria decerto um contraste directo, revelando mesmo princípios de análise interessante, mas que não tentaremos nós mesmos). E se por um lado, graças a essa visibilidade e textura compreendemos os elementos criativos e repetidos de Gould, como se tivéssemos acesso a um seu arquivo de gestos, formas e ideias, por outro nada nos impede de ficarmos surpresos com a estranheza (uncanniness) de palavras novas (“Arsywhere”, “Janucember”, “Octovember”, alguém a gritar “Soup! Police! Nuts!”) ou imagens inéditas (Toyee mascarado de mulher ou com uma estrela na testa, mãos sem corpo entrando em cena de nenhures, e sobreposições impossíveis).
Aparentemente, segundo os críticos, a parceria entre Jess e Duncan colocavam-nos numa senda que apontava desde logo a um culto da ironia, da distância mas ao mesmo tempo de uma genuína apreciação pelas mais variadas produções culturais, fossem elas vistas como eruditas ou populares, atitude que seria mais corrente a partir do final dos anos 1980 quer nas artes visuais quer na literatura. A palavra “mito” é repetidamente empregue, e apercebemo-nos dessa forma que há uma inscrição, se não na plena narrativa, pelo menos na fundação das condições para que possa emergir um imaginário com todas estas “peças”. Poderemos pensar mesmo que, no que diz respeito à técnica, metodologia ou processo mais corrente nestes trabalhos, a colagem, esta também pode ser vista como uma prática que implica um entendimento muito particular do “arquivo”, noção essa igualmente significativa no vocabulário crítico da filosofia da arte e outros campos. O arquivo não é uma figura objectiva de um repositório que supostamente encerrará todos aqueles objectos do passado que constituirão, depois (pois um arquivo trabalha sempre sob o signo de um tempo posterior), uma herança, uma tradição, um legado, mas antes o próprio processo de uma escolha, ele mesmo revelador de opções, circunstanciais ou ditadas por quaisquer princípios ideológicos que se mascaram a si mesmos, para chegar à tal ilusão de objectividade. Como escreve Jacques Derrida num seu ensaio decisivo, “Mal d’archive. Une impression freudienne”, o arquivo “nunca será memória ou anamnese enquanto experiência espontânea, viva e interna. Bem pelo contrário, o arquivo tem lugar no lugar da quebra originária e estrutural dessa mesma memória”. É no fim da memória que o arquivo emerge.
Por outro lado, aproveitando as lições de Ann Cvetkovich sobre Fun Home, de Bechdel, em torno igualmente do conceito de arquivo, poderemos entender que este aproveitamento material do recortado numa nova superfície e plano de composição que não procura a ilusão da coerência ou continuidade visual como uma forma de dar a ver a impossibilidade de assimilar a memória. Isto é, estes fragmentos ou elementos recuperados tornam-se parte de uma nova unidade de significado, mas são eles mesmos, ou mesmo no seu conjunto, signo da parcial emergência de uma unidade de sentido, de narrativa, de naturalização. A apropriação, portanto, nunca se disfarça a si mesma, ao contrário da ideologia. E permite, ela mesmo, no surgimento então de novos mitos. É possível então que a sua conjunção num novo objecto livresco possa levar à sua mais feliz circulação.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, a Filipe Abranches, pelo empréstimo da(s) Tonto(s), e a Marcos Farrajota, por uma correcção importante.

3 de junho de 2013

The Last Vispo Anthology. C. Hill e N. Vassilakis, eds. (Fantagraphics)

Poesia visual, poesia concreta, poesia tipográfica, poesia gráfica, poesia de padrões, technopaegnia, poema/processo, caligramas, poesia cinética, poesia digital, poesia em código, interactivo, programável e re-combinável. Poesia criada com caneta, máquina de escrever, processador de texto, tesoura e cola, iPod, telemóvel, com lápis, pincel, e objectos manipulados, outras tecnologias. “Poesia libertada da denotação e conotação” (um dos editores, Crag Hill, pg. 12). “Um sub-produto do olhar fixo” (o outro editor, Niko Vassilakis, 10). Não haverá, nem se procurará, nenhuma descrição geral que consiga abarcar toda a produção e se a naturalize, pronta-a-transmitir, esta poesia. O único ponto em comum, e mesmo assim arriscado, é dizer que existe uma imagem específica que se consolida numa matriz isolável, perceptível, analisável e apenas transmissível na sua completude.

Este volume reúne a produção de dezenas de poetas, dos mais variados países, num período compreendido entre dez anos. Não há propriamente um programa estipulado a montante do projecto (fora as necessárias contingências espaciais, temporais, editoriais, etc.), mas há seguramente a esperança que surja algo a jusante, pelo menos nos efeitos junto aos leitores. O livro divide-se em cinco grandes secções organizativas: “Letras” [Lettering], “Objecto”, “Escrito à mão”, “Tipografia” e “Colagem” sublinhando, a um só tempo, as técnicas de fabricação do poema, uma sua natureza física e material, mas também uma ontologia, um intervalo no interior do qual e para além do qual o trabalho de interpretação é desperto. Todas as secções são ainda acompanhadas de pequenos ensaios por uma dezena de cultores, teóricos e críticos, alguns com aspecto de manifesto livre de uma prática, outros arriscando uma introdução histórica a este corpo de trabalhos e movimento poético (são os casos dos textos de Karl Kempton, uma história do campo, que inclui o Brasil mas não refere sequer Portugal, de Karl Young, considerando esferas tangentes que incluirão o grafitti e o famoso “hobo code”, e de C. Mehrl Bennett, sobre as linhas de força do campo), outros criando um espaço que duvida da própria possibilidade de esgotar o discurso - para mais, o “explicativo”, académico, regrador - em torno destes objectos. Outros parâmetros, como o da performatividade e da fonética, não são totalmente descurados, havendo uma intervenção de Jaap Blonk. No entanto, há ao mesmo tempo um desvio dessa dimensão "aural/oral"...

Se a ideia da poesia visual parece violar um dos ditames platónicos, e vem lançar a confusão não apenas nos elementos distintos da escrita e da imagem, e ao mesmo tempo vem trazer uma armadilha icónica que cria a ilusão de se ser possível capturar uma ideia de “verdade” - um dos aspectos pelos quais Montaigne achava que este tipo de poesia era “frívola e vã” (apud R. Mittenthal, pg. 70) -, ela também permite que se explore através do excesso do objecto e dos seus parâmetros materiais o fim da reificação da escrita, dos alfabetos, das gramáticas, da linguagem. Materializando a densidade da escrita, olharemos com olhos de ver a sua constituição. E permite que se ultrapassem os condicionalismos humanistas, para chegar à “perda granítica e endémica” em que a poesia se deve tornar (de um poema de Greg Betts, citado por Derek Beaulieu, 74), um rizoma, no pleno sentido de Deleuze e Guattari (“[que] nada tem a ver com a significação (..) tem a ver com levantamentos topográficos [e] cartografia”, apud idem). Em termos históricos, ela permite mesmo desarrumar as estantes e as categorias. E assim olhar para outros sistemas de escrita que não o ocidental-latino, ou mesmo instrumentos de escrita (estiletes em cunha, códigos digitais), para contaminar o processo natural-social.

Esta poesia obriga a olhar quer o signo isolado da letra, quer ainda, ou sobretudo, todo o espectro da sua macro-escala - palavra e alfabeto, frase ou verso, parágrafo ou estrofe, mancha tipográfica e margens, página e plano, livro e mão, traduções em objectos - e ainda a micro-escala - as suas formas, linhas, ângulos, preenchimentos e sombras, serifas e ligaturas, combinações e formatações. Isto para não falar das escalas de significação: metonímia e metáfora, cliché e símile, confissão e emoção. As secções ajudam à navegação desse entendimento, encontrando - por vezes dos mesmos autores, inclusive do português Fernando Aguiar - trabalhos “planos” (tipografia, p. ex.) e “tridimensionais” (objectos). Como escreve K. Kempton: “O poema visual contemporâneo é usualmente composto por material linguístico [language] combinado ou seccionado [assembled/disassembled]. Este material inclui palavra, texto, nota, código, petróglifo, letra ou outro carácter fónico, tipo, cifra, símbolo, pictografia, frase, número, hieróglifo, ritmo, ícone, gramática, conjunto, traço, ideograma, densidade, padrão, diagrama, logograma, acento, linha, cor, medida, etc.” (207).
Mark Owens (ou melhor, mARK oWEns), nos seus “poems for R[obert] Duncan”, cita um psicanalista contemporâneo, Donnel Stern (e estes mesmos poemas “ilustram” essa citação): “A linguagem não é um instrumento, mas algo em que nadamos”. Os leitores de Grant Morrison recordar-se-ão de modos que o autor escocês tem de explorar ideias similares nas suas bandas desenhadas (sobretudo The Invisibles, mas também The Filth). Seguindo essa imagem, portanto, cada um destes poemas são zonas de intensidade, áreas móveis de um imenso oceano…

Quando lemos um texto, temos, em primeiro lugar, de olharmos para um texto, ou melhor, olharmos para uma superfície inscrita com signos visualmente estruturados. Quer dizer, num fracção da complexa operação cognitiva que a leitura implica, estamos antes do mais a olhar para uma imagem. Todavia, quase sempre, ao lermos, não diminuímos a velocidade de percepção-intricada-em-interpretação da leitura, e, logo, não damos conta que estamos, além de ler, a ver. No filme Black Sun, realizado por Gary Tarn, o escritor e artista Hugues de Motalembert, que ficou cego e teve de recriar toda a sua relação com as imagens, afirma que “a visão é uma criação, não uma percepção”. Os textos/objectos/poemas de Vispo obrigam a que consciencializemos o processo de criação.

É verdade que não se conquistarão leitores em massa para estes textos. Aquilo que importa na destrinça e juízo de valor da literatura não pode ser o sucesso medido de modo imediato e numérico. Como escreve Donato Mancini, haverá uma diferença entre a “multidão = números e estatísticas” e a “comunidade = relações humanas reais”, para concluir ou afirmar “Aquele que se Dirige às Multidões Não Fala a Comunidades” (64). E Vispo poderá ser entendido, de facto, como um projecto que cria uma comunidade em busca de outros que nela se desejem inscrever, ora como leitores ora como novos cultores (tal qual como antologias como Le coup de grâce ou Abstract Comics, ou menos monografias como 100 Scenes e Spuk). Além do mais, há um programa inevitavelmente político agregado à construção destas unidades. É Beaulieu quem esgrime os argumentos mais explícitos dessa dimensão, pela forma como a “poesia concreta não é uma pauta para a performance oral e não é para ser articulada pelo som”, isto é, põe em crise o “valor de troca” [na estrita acepção marxista] da poesia (76). Mesmo não o eliminando totalmente, pois o capitalismo voraz assimila [em ing., co-option] tudo ao seu uso e valor mercantil, ainda assim estes textos sublinham uma “catástrofe menor” (Baudrillard), uma “marca inarticulada” (Ngai).

O projecto conta ainda com um site particular, com muita informação e pontos de partida; na página da editora, encontrarão um vídeo, o índice e outros aspectos.
Nota final: agradecimentos à Fantagraphics, pela oferta do livro, e a Diniz Conefrey, pela chamada de atenção.