29 de fevereiro de 2008

Jacaranda. Shiriagari Kotobuki (Kankô)

A banda desenhada, na sua origem, apresentava um percurso, isto é, a acção necessária para ir de um ponto A a um ponto B, da forma mais directa e linear possível, numa implicação de causalidade material quase absoluta e, as mais das vezes, sem quaisquer alterações intrínsecas para aquele que percorre, a não ser a ideia de vitória. Aliás, este sentido desportivo é corroborado pelo sentido etimológico de cursus, aplicado às corridas. Se em William Hogarth ainda se mostravam, através de largos e alegóricos episódios espaçados da vida de uma determinada personagem (a “Harlot”, o “Rake”, etc.), progressos (morais, entenda-se, e usualmente de derrocada), Töpffer instituiu a ideia de aventura, de viagem, de deslocação, cujo acme se encontra talvez em Docteur Festus ou nos pequenos nós de movimento da Histoire de Monsieur Cryptogame. Este ideia de movimento quase-perpétuo seria tornada numa regra de construção aquando da transformação desta linguagem num veículo de entretenimento infanto-juvenil, e estou em crer que é Saint-Ogan o nome mais importante nessa transformação: as aventuras de Zig e Puce são uma linha recta esticada entre o ponto de partida, França, e o ponto desejado de chegada, a América, e em que cada nódulo narrativo é desencadeado por uma causa qualquer, ao acaso, parece-nos, mas que se constituem como contribuições para a continuidade desse movimento.
A história da banda desenhada viria a oferecer-nos muitos exemplos de narrativas complexas, que empregam todos os dispositivos narratológicos disponíveis nas suas histórias, criando obras de múltiplas leituras, ou de camadas sobrepostas de sentidos e direcções, capazes de suscitar polifonias internas ou movimentos envolventes e de vaivém... Mas pode também trazer-nos à consideração uma narrativa perfeitamente linear, sem transigências para com uma vontade de tornar mais complexa a história, mas felizes de se tornaram uma flecha, recta, directa e certeira. Jacaranda é uma flecha. A sinopse explica quase tudo: num pequeno bairro residencial da cidade de Tóquio, um dia, brota de debaixo do alcatrão uma árvore de jacarandá. Ao princípio, é apenas uma curiosidade para os habitantes desse local, e depois para os jornalistas. O jacarandá, porém, não se limita a crescer um pouco. Atinge antes proporções colossais, e o seu avanço, do tronco que engrossa, das raízes que se espalham, da copa que abarca a cidade, vai arrasando a cidade, demolindo casas e edifícios, invadindo esgotos e túneis de metro, fazendo explodir condutas de gás, disseminando incêndios, provocando tremores de terra e muitas catástrofes à escala humana.
Não há aqui personagens principais humanas. Apenas a árvore que vai crescendo é a protagonista, vista de todas as perspectivas possíveis à sua volta, recordando assim, de certo modo, as 36 Vistas do Monte Fuji de Hokusai, obra a qual, não sendo uma narrativa propriamente dita, faz emergir uma noção de protagonismo, de imortalidade divina em contraste com a vida dos homens, fugaz, que igualmente se espelha em Jacaranda. Há muita mortandade, e mesmo – estritamente a uma escala humana – crueldade, mas a glória final do jacarandá florido com as suas claras e lindas flores desabrochando por sobre a destruída Tóquio acaba por impelir os sobreviventes a uma epifania, um louvor à manifestação do divino sobre a terra. As associações dessa árvore, até pela sua figuração, a sua forma, com as explosões atómicas ou nucleares é aventada nos textos que acompanham esta edição, e numa entrevista ao autor revelam-se algumas das leituras e intenções aqui envolvidas. Nas suas palavras, Kotobuki explicita que “o processo de renascimento é transmitido por uma dimensão trágica”. Todavia, quase que nos desapaixonamos da escala humana que referi, e as tragédias, mesmo aquelas que vemos representada de perto (um desastre de automóvel, uma mãe e uma criança desaparecendo numa explosão, pessoas a caírem de prédios) são apresentadas num turbilhão cada vez mais rápido nestas quase 300 páginas, para podermos rapidamente chegar ao propósito, isto é, a esse renascimento: uma árvore plantada no centro da cidade, deixando-nos adivinhar toda a espécie de mudanças radicais e quase utópicas que se seguirão.
Essa velocidade é de tal modo que, apesar de já o traço de Kotobuki ser muito solto, em que as personagens humanas parecem ser feitas por uma acumulação de traços ao acaso, à medida que nos vamos adentrando na catástrofe, a figuração vai também sendo progressivamente engolida nesse vórtice de traços, de riscos, não já símbolos de movimento, não já onomatopeias dos horríssonos acontecimentos, mas sinais abstractos dessa mesma vertigem. Veja-se esta imagem como exemplo disso. Quase parece estarmos perante uma obra de caligrafia clássica, onde algumas das linhas paralelas e cruzadas nos poderiam fazer adivinhar um ideograma e, assim, um qualquer sentido oculto na destruição que representa. As associações a Katsuhiro Otomo serão óbvias, sobretudo se tivermos em conta que esse autor parece ser “mais interessado o conceito de destruição do que no de construção” (João Miguel Lameiras e João Ramalho Santos no excelente artigo Urbanismos de Papel. As cidades na banda desenhada, in Biblioteca 3/4 de 1999). Não obstante, a destruição de Otomo é uma destruição meramente física, superficial, e mesmo a exploração que esse autor faz dos fenómenos sócio-religiosos que surgem em Neo-Tóquio não deixam de ser uma leitura relativamente simples das dependências mais imediatas do homem aos rituais. Em Jacaranda, porém, parece estarmos a assistir a algo mais profundo. Existe uma sequência atroz de destruição, sim, do espaço físico e dos objectos que ele encerra. Existem mortos. Mas Tétis tentou que Aquiles se tornasse imortal precisamente mergulhando-o nas águas do Estige, um dos rios infernais.
A árvore e a mortandade que a acompanha – ou anuncia? Ou lhe abre caminho? Uma espécie de oráculo ou precursor, que traz um “baptismo de fogo” – faz uma escolha, e os humanos que sobrevivem, de ar derrotado, abandonado para trás a vida citadina, material que tinham, tornar-se-ão os seus acólitos e primeiros discípulos. Atente-se ainda à forma como estas duas páginas duplas seleccionadas mostram o modo como Kotobuki gere e direcciona, de modo rápido, o olhar do leitor em linhas horizontais, verticais e diagonais que, mais do que a instauração de um dinamismo próprio, vem reforçar essa ideia de um mergulho cabal da humanidade na prova da qual surgirá transfigurada, à sombra do jacarandá.

19 de fevereiro de 2008

Quadradinhos. Histórias Postadas. Galeria Yron. Conversa a 23 Fevereiro.

Desde finais de Janeiro que a galeria Yron, na Rua de São Bento, apresenta uma exposição intitulada Quadradinhos. Histórias Postadas, na qual se apresentam projectos artísticos que partem de pressupostos formais cuja fonte se encontra na banda desenhada, num seu cruzamento com um objecto específico, os papelinhos autocolantes de notas "Post-it".

O grande objectivo desta exposição é não somente apresentarem novos trabalhos como colocarem em questão modos de apresentação, de discursar sobre as artes, de dividir terrenos, ou melhor, de como esses terrenos não são facilmente divisíveis.
São apresentados vários artistas, mas permitam-me salientar o trabalho de Joana Figueiredo, de quem aqui já falámos, e que apresenta uma obra claramente de princípios narrativos, ainda que onde essa raíz narrativa se dilui ou so é captada através de um exercício de multi-legibilidade da parte do leitor.
Além disso, o espaço tem servido de ponto de encontro e discussão de alguns temas sobre a banda desenhada no geral. Nos dois anteriores Sábados, houve a oportunidade de se escutar e conversar com Marcos Farrajota a propósito do mercado editorial de banda desenhada, nacional e internacional, com uma atenção especial para com estratégias alternativas às mais usuais, e com Geraldes Lino em torno da noção e amplíssimo mundo dos fanzines, sobretudo dos portugueses, mas não só. No próximo dia 23, pelas 17h, será a minha oportunidade de torturar as pessoas que tiverem o descuido de aparecerem por lá... O tema é muito amplo, aberto e será desencadeado pelo diálogo com os circunstantes, mas centrar-se-á sobre aspectos da estética da banda desenhada, do experimentalismo que ela própria possui, permitiu e para o qual se abre, e alguns dos possíveis e mais interessantes diálogos que ela estabeleceu com outras linguagens artísticas.
O objectivo é sensibilizar para quão amplo e inesperado é esse universo de diálogos, mas sobretudo como a banda desenhada tem uma especificidade que a torna autónoma e passível de admiração, enquanto plataforma de pensamento sobre o mundo.
Sejam bem-vindos.

Criminal. Ed Brubaker e Sean Phillips (Icon)

Remeto ao post anterior, sobre a série destes mesmos dois autores Sleeper para algumas informações mais circunstanciais no que diz respeito ao trânsito e progresso de Brubaker, mas também de Phillips.
Criminal é uma outra série que, pertencendo à Marvel, o pertence a uma subsidiária, a Icon, que apresenta, através da possibilidade dos autores serem os detentores dos seus direitos, trabalhos ligeiramente mais autorais e sem obrigatoriedades para com políticas internas dos “universos” da companhia. Brubaker e Phillips optaram pela assunção de uma série cujos “volumes”, “arcos” ou “estações” (para mimar as estruturas de séries televisivas) se centram nesta ou naquela personagem, mas em que todas elas pertencem a uma rede maior, ainda que ténue, de relacionamentos. A fórmula dessas uniões, desses elos, é feita através de referências que transitam de livro para livro: uma personagem que se cita num dos episódios ocupará o lugar central num outro, um mesmo espaço de cruzamento torna-se o centro nevrálgico das ocupações das personagens (o bar “Undertow”, um magnífico trocadilho – Undertown, baixa, perde o n para se tornar a ressaca ou contracorrente que puxa para o interior do mar os mais desprevenidos). O género, mais uma vez, sem quaisquer excusas para com a crescente derrocada desejada pelo pós-modernismo desses mesmos géneros, é o “policial”. Na verdade, muito mais do que Sleeper (que ainda vivia sob o signo dos super-heróis, tanto quanto, se bem que não de modo tão directo, Powers, de M. B. Bendis e M. A. Oeming), Criminal retorna ao que parecia os primeiros ensaios de escrita em banda desenhada de Brubaker, mergulhando de caras em todo o manancial de chavões esperados, situações e crises típicas do mesmo género para dele emergir incólume e com uma obra não apenas verosímil, como louvável e forte. Isto é, quase poderíamos quebrar toda a intriga e até mesmo a caracterização destas personagens em módulos e, depois, examinando-os e/ou recombinando-os, identificá-los com elementos idênticos que foram empregues no mesmo género ao longo dos anos nas mais diversas linguagens (literárias, cinematográficas, televisivas, etc.). Não obstante, isso não invalida a obra em si, não se trata de repetições, epigonismos, ou pior, algo entendido como “falta de originalidade” (seja o que isso for): trata-se antes de um profundo conhecimento das peças necessárias à edificação de um policial para, a partir dele, permitir-nos aceder a algo de humanamente identificável: as pessoas.
Pode-se dizer que Criminal faz um retrato das famílias do crime da cidade retratada (sem nome), e é exactamente as relações familiares que estão no centro dos dois episódios, Coward e Lawless. A família, aqui, deve ser entendida aquela que é unida pelo sangue, sem dúvida, mas de dois modos: o que transita de pai para filho, que é partilhado entre irmãos, mas também aquele que é derramado entre amigos e companheiros na sua actividade. Despojados de quaisquer poderes sobrenaturais ou de um escopo de acção monumental, todas estas personagens movem-se num prisma relativamente apertado, senão mesmo claustrofóbico, em que cada acção parece expressar o desejo de dele escaparem.
Coward foi o primeiro “arco” e centrou-se na personagem de Leo, uma espécie de ladrão com alguns princípios éticos e preocupações máximas no seu profissionalismo – nesse aspecto recorda a personagem de De Niro em Heat, de Michael Mann – mesmo que isso acarrete um confronto directo com os seus “colegas” mais excitados com a possibilidade de quebrar a lei. Juntem-se a isso a responsabilidade que tem em cuidar de dois toxicodependentes a tentar escapar ao vício, a protecção ao longe de uma criança, o tentar esquivar-se de polícias corruptos e de uma apertada malha de tráfico de droga, e Leo passa do que prece ser um cobarde a afinal uma personagem que havia ponderado bem o viver num carreiro só seu. A narrativa de Coward é linear, com uma grande intervenção extradiegética da voz do protagonista (a dita voz off), pois o que interessa é preencher ao máximo a perspectiva de Leo sobre todo este mundito que o rodeia. Tudo parece caminhar num só sentido, que se pode mais ou menos adivinhar (ainda que o desenlace de Coward seja iluminado ou explicado depois, em Lawless), parece fazer esse sentido, o que torna muito curiosa a presença regular e ritmada da leitura interna, pelas personagens, de uma tira de banda desenhada policial publicada no jornal local, um misto de Chester Gould e Paul Auster e Daniel Clowes intitulado Frank Kafka, Private Eye. E o autor é um tal de “Jacob K.” Aperceber-nos-emos facilmente dessoutra rede de relacionamentos que é aqui desejada. Todavia, o que mais importa é entender essa tira que apenas surge um punhado de vezes como uma mise-en-abîme de todo o Coward. Tal como as suas personagens “não entendem”, isto é, não captam o estranho sentido dessa tira, também elas mesmas se encontram presas num movimento sem sentido aparente, quase niilista, das suas vidas. O mesmo poderia ser dito da nossa própria, da realidade. Viver-se no interior de uma ficção, seja ela como for, vive ainda numa qualquer natureza de unidade. Final feliz ou infeliz, Coward tem essa unidade, no cômputo final das coisas. Lawless elabora uma unidade tão ou mais forte que o arco anterior, sobretudo por seguir uma estrutura muito menos linear, feita de avanços e recuos, analepses e prolepses que nos vão ofertando todas as peças da história que temos de construir juntamente ao ritmo da narrativa. Desta feita, seguimos uma outra personagem feita de uma massa bem diferente, Broderick Lawless, um comando saído desse mundo criminoso, passado a ferro pelo exército norte-americano nas suas missões mais violentas (e supostamente secretas), que retorna à sua origem para se inteirar da morte do seu irmão e, se possível, exercer vingança. A descoberta de quem é que lhe matou o irmão é quase uma questão secundária. Mesmo quando o descobre, é quase anti-climática essa descoberta, como o é ainda mais a resolução final de Lawless em relação a esse saber. É tão secundário que nos vamos apercebendo que as relações de Lawless e o seu irmão morto eram algo definhadas, quase um silêncio e indiferença. Porém, é como se existisse um código que os obrigasse a todos, a estas personagens, a uma reacção, a uma resposta, automaticamente provocadas por uma acção primeira, também ela afinal programada. Mais uma vez, descobrir-se o quão preso se está à natureza finalista que emerge no interior de uma ficção, espelhando de maneira enviesada o que se passa em nosso torno.
Brubaker explicou em várias entrevistas que o seu conhecimento dos trâmites do mundo do crime é em primeira mão, e que os graus de violência são muito densos. A violência em Criminal passa obviamente pelo uso de pistolas e punhos, mas há muitas outras violências exploradas, sendo a familiar a principal. E essa violência, menos espectacular, é bem mais profunda e espessa e sobrevive durante muito mais tempo.
Os desenhos de Sean Phillips encontram um excelente equilíbrio entre um realismo desejado e a estilização. Não caindo nas linhas de um absoluto geométrico chiaroscuro como o de Gould ou de Frank Miller, mas evitando as armadilhas maniqueístas deste último igualmente, Phillips apresenta-nos corpos que respondem na perfeição às necessidades da narrativa: expressividade e dramatismo que baste, mas sem ser histriónico, descolando-se das personagens trevas de dentro para fora, cores (por Val Staples) que respeitam o ambiente, a um só tempo ou destacadamente nocturno, nostálgico e abjurado – não há uma única vinheta diurna em Lawless, independentemente de alguma menor acção ser “de dia”.
Nenhum dos arcos de Criminal, até agora, mostraram ser condescendente ou amáveis para com as suas personagens. Isto não quer dizer que se desejasse um fim “feliz”, redentor, nem tampouco que consideremos os fins absolutamente niilistas, como apontámos acima. Simplesmente que retratam os modos improvisados com que a retribuição, a justiça e o equilíbrio têm e com que teimam em surgir.

12 de fevereiro de 2008

Persepolis. Filme de Paronnaud e Satrapi (oferta de bilhetes)

Abrindo-se mais uma excepção neste espaço, serve o presente post para anunciar a estreia, para muito breve (dia 21 deste mês), do filme Persepolis. E fazer uma oferta (ver abaixo), entretanto terminada.
Este filme de animação é uma adaptação da excelente obra homónima de banda desenhada da iraniana Marjane Satrapi, publicada pela francesa L'Association em quatro volumes, entre 2000 e 2003. Entretanto, saiu faz pouco uma edição num só volume. Foi traduzida para várias línguas, inclusive a portuguesa, tendo saído apenas (ainda?) o primeiro volume, pela Polvo.
O filme é co-realizado e co-escrito por Vincent Paronnaud e a própria Satrapi, centrando-se mais no crescimento da jovem Marji por entre a Revolução Islâmica e a sua chegada ao "Ocidente", e necessárias dores e crises que lhe estão associadas, do que nos excursos e considerações que valorizam maximalmente esta obra, que passou desde logo a pertencer àquele limitado grupo de "obras maiores" da banda desenhada de discernimento. Não obstante, é uma animação seguramente bem conseguida e rara nos tempos do "much CGI about nothing".
As imagens que aqui se encontram (retiradas, como é óbvio, de outros locais na internet) mostram cenas de dois diálogos: entre Marjane e a sua avó paterna, mulher de um carácter forte e surpreendente (veja-se, ainda, Broderies) que em muito contrasta com as morais e as políticas entretanto (re)instituídas pela Revolução Islâmica, e entre Deus e Karl Marx, dois pensadores que em algo influenciaram o mundo.
O filme é distribuído pela Midas Filmes e, através do blog lerbd, poderiam ganhar acesso a um dos 10 convites duplos para a ante-estreia do filme. No entanto, estes já foram distribuídos pelos vencedores. Esta sessão terá lugar no dia 20 de Fevereiro, próxima Quarta-feira, numa das salas do cinema Alvaláxia, no estádio do Sporting, Alvalade, às 21h30m.
Para isso, basta responderem à seguinte pergunta (quem leu Persepolis, terá acesso à resposta): qual o nome do tio favorito da pequena Marjane, e que é executado pelo regime? [A resposta era Anouche, conforme o volume 1, que foi igualmnte publicado em Portugal].
De preferência, respondam por email, deixando o nome, morada e/ou telefone (para receberem os convites, e nada mais). Até Segunda-feira, 12h, máximo. Escrevam para pedrovmoura-arroba-gmail.com
Boa sorte, e bom filme.
Nota depois do visionamento do filme: continuo a julgar que ver este filme é uma obrigatoriedade, sobretudo para aqueles espectadores que apenas consideram os filmes baseados em personagens da Marvel ou da DC (ou quejandos azimutes) como os únicos dignos de atenção, publicidade e discussão quando se fala das relações entre a banda desenhada e o cinema (aliás, já quando apenas se reduz essa questão à mera adaptação), ou ainda aqueles que se dizem interessados pela animação, mas limitam as suas escolhas a Miyazaki, mono-CGIs ou experiências de cosmética superficial (Scanner Me Darkly, por exemplo). Não obstante, há que dizer que o filme está, em termos de força, ns quantos pontos abaixo dos livros. O carácter episódico, até mesmo espontâneo (que cria essa ilusão, melhor dizendo), da obra de banda desenhada é passível de se plasmar com o acto individual da sua leitura, raramente contínuo e ininterrupto. No entanto, como é de esperar, o ritual do cinema e a imposição da velocidade do cinema sobre a fruição do espectador implica uma relação totalmente diferente, tornando essas acções episódicas - imitadas do livro aqui nominalmente ali literalmente, e ainda que colocadas num interior semi-disfarçado, uma moldura maior feita de espera e rememoração - em pouco mais do que elementos desirmanados, dissolvendo a unidade que seria possível.
Um efeito dessa falta de unidade, e apresentação de segmentos separados, impede a que haja uma entrega emocional completa, apesar do carrossel de emoções, de alegrias súbitas e comédias, de tristezas que rasgam a terríveis eventos... Não há tempo para que se desenvolvam as entregas necessárias à leitura e compreensão das emoções retratadas, logo, impede a nossa aproximação.
Há uma maior preocupação comercial, naturalmente, mas talvez esperasse um encontro que se inclinasse mais para Kiarostami do que para uma série de animação televisiva...
Sob um aspecto formal, somente, pequena violência de análise por vezes necessária, parece-me que não estando perante um uso inédito das suas técnicas, nem de uma capacidade de representação e estruturação genial, é porém um filme mais do que competente, com um ambiente muito coeso (formalmente, lá está), que estabelece relações directas com os antigos teatros de marionetas e de sombras da riquíssima - visual! - cultura persa.

9 de fevereiro de 2008

L’Oeil privé. Blexbolex (Les Requins Marteaux)

Por vezes, a aproximação de duas obras incomparáveis desperta linhas de leitura pertinentes. Essa aproximação pode ser – ou é sempre – circunstancial, como ler dois livros seguidos num mesmo espaço de tempo, o que desencadeia momentos de comparação, mesmo que falhos, ou de uma breve mistura de instrumentos, mesmo que erróneos.
A leitura é de um livro de Blexbolex, L’Oeil privé, e outro de Kikuchi Hironori, Mademoiselle Takada. O que surge dessa leitura conjunta?
A primeira percepção que se tem em relação a esta obra em particular de Blexbolex (já que noutros casos se dá algo de diferente, como o Disaster Boy na Dernier Cri) é que a sua inventabilidade gráfica não está totalmente ao serviço do modo da história, esgotando-se por vezes num mero efeito de superfície, o qual, não deixando de ser interessante de contemplar e estudar, desregula um certo equilíbrio à obra.
Estando associado à revista Ferraille, Blexbolex explora um dos mais reconhecidos universos de género da cultura popular, o policial, para construir uma história linear, não obstante o recurso a grandes elipses, segmentos de alucinação, sonho ou dúvida (momentos nos quais a mesma abordagem gráfica já ganha uma dimensão mais significativa, e não somente “de efeito”). Há uma intriga, uma trama, uma personagem principal – o detective – lançado no seu centro, as sucessivas crises, o desenlace, o sucesso. Cada episódio é iniciado por uma ilustração a página inteira, depreendendo tratar-se de uma espécie de página de rosto que recontava tudo o que se passara antes no episódio antes, estratégia típica de revistas regulares e de histórias em continuidade.
A construção de todos os objectos visuais, personagens inclusive, é feita de acordo com regras geométricas, como se Cézanne tivesse sido levado à letra tardiamente numa banda desenhada de uma leveza extrema. Essas geometrias confundem-se de quando em vez, quando a representação de elementos que não fariam parte do universo físico retratado ganham um corpo que tem um peso idêntico aos demais objectos: falo das onomatopeias, das linhas cinéticas, das gotas de surpresa, de estupefacção ou dor ou impacto, mas também do modo como as linhas de sombra ou de luz, as sombras e as manchas de cor acabam por fluir de acordo com princípios não naturalistas e quase de vontade própria, elaborando-se assim num complexo visual apelativo. Todavia, e apesar do humor necessariamente negro, da presença de palavrões, vestígios de violência extrema, sexo, e temas controversos - trata-se de um homem que clona a mãe para estar para sempre com ela, passando-se por seu pai, e depois esta “engravida” e dará à luz um clone desse mesmo homem..., podendo-se ou não fazer associações óbvias com a história de Cristo – a leitura global de L’Oeil privé apenas nos faz atravessar uma aventura leve, policial, de um desfecho “feliz” ainda que estranho, tornando ainda mais estranho pela barreira visual ter sido apenas barreira, e não caminho.
Já no livro de Kukuchi... (continua aqui).

Mademoiselle Takada. Kikuchi Hironori (Humeurs)

(Continuação daqui)
Já no livro de Kikuchi, Mademoiselle Takada, as mesmas questões invertem-se. A aparência dos seus desenhos remete-nos de imediato para uma mangá ou um animé do mais comercial e infantil que existe (Doraemon, Zzanggu, Pokemon, etc.), mas por vários indícios, quer visuais (figuração) quer narrativos (as histórias), apercebemo-nos de que é de facto apenas uma aparência. A senhorita Takada evita que fantasmas de crianças sejam exploradas por uma exorcista, tenta reutilizar para bem do mundo a sua colecção de bonecas de plástico, tenta levar a cultura japonesa, sobretudo a aprendizagem do kanji, a todo o mundo... Rapidamente, portanto, nos apercebemos que, não obstante a organização das histórias ser tão linear quanto L’Oeil privé no que diz respeito à ordenação dos eventos, à gestão do tempo, do desenvolvimento das personagens e seu relacionamento com os nós narrativos, que tudo se abre para um pequeno universo de absurdos. No entanto, há que ter em conta que o absurdo traz à mistura dois elementos fulcrais, a saber, a angústia e o cómico, e que é o equilíbrio entre esses dois factores que caracteriza as obras particulares de autores particulares.
Se em José Carlos Fernandes, por exemplo, apesar do seu humor, é o elemento da angústia aquele que mais paira após a leitura d’A pior banda do mundo, em Kikuchi é a dimensão do cómico que leva a vantagem. Para mais, sublinhada que é pelos seus desenhos que mesclam um falso ar de “cute” com pequenos desvios a essas mesmas regras (ou grandes: veja-se, por exemplo, a representação monstruosa e terrífica de Madame Yamada a amamentar o seu filho).
É portanto, uma outra forma de construir a leveza, e suscitar o riso através de um confronto com a estranheza total. De acordo com a sua “ficha” da Comiclopedia, da Lambiek, a obra de Kikuchi foi apelidada por um dos seus editores na Garo como “uma droga que se lê”, sublinhando-se a sua “natureza alucinatória”. É uma boa imagem, sobretudo se tivermos em conta as relações que estas alucinações lançam com a realidade que nos rodeia, também ela cada vez mais contaminada por elementos que acharíamos “estranhos” em circunstâncias mais conservadoras, e o modo como após a sua leitura, nos apercebemos ainda mais conscientemente dessa “estranheza” mas igualmente do modo “natural” com que a aceitamos. Espécies de flashbacks?
Nota: agradecimentos a André Lemos, pela oferta do livro.

4 de fevereiro de 2008

Wanya. Escala em Orongo. Augusto Mota e Nelson Dias (Gradiva)

Ou, A Revolução que não foi.

Sobre as circunstâncias originais (no sentido estrito de “origem”) da factura e edição e limitada recepção deste livro em 1973, remeto todos os leitores interessados aos textos dos seus prólogos, assim como à do blog específico desta obra. A leitura de todos estes materiais demonstrará as razões dos temas e ideias aqui debatidos. É sempre um aspecto positivo que, num país que não preza a reedição de livros, inclusive aqueles que vários sectores poderão apelidar de “clássicos”, e cuja política de silêncio afecta sobretudo a banda desenhada (mas não só), se encontrem estes pequenos e esporádicos gestos. Ainda que não me pareçam significar uma reestruturação de mentalidades ou a instauração de novas políticas editoriais. No entanto, a bem do rigor, há toda uma nebulosa erguida em torno de Wanya que me parece discutível.
O primeiro problema surge na cinta em que este livro se vê exposto nas livrarias. Trata-se de mera publicidade, sem dúvida, mas ainda assim leva-nos a pensar. Diz tratar-se de um livro que revolucionou a banda desenhada portuguesa. Mas como é possível revolucionar algo quando não se deixam herdeiros? Falei de reedição, que o é sem dúvida, mas de um livro que não se encontra esgotado. De quando em vez, pequenas ou grandes feiras do livro mostram pequenas pilhas da edição da Assírio & Alvim, de 1973. O facto de não ter esgotado não é suficiente para se entender as razões pelas quais se diz ser um “ilustre desconhecido”, mas é já condição necessária. É verdade que Wanya foi um desses livros que, regularmente, surge no círculo nacional da produção de banda desenhada que se diz serem “pedradas no charco” ou “lufadas de ar fresco”, mas é igualmente um facto que muito rapidamente o charco volta a estagnar e o ar se adensa novamente.
Numa das entrevistas de então (a Vasco Granja), surge-nos de imediato o nome da influência mais imediata, a saber, a do livro Saga de Xam, “realizado por Nicolas Devil” (aqui, uma imagem desse livro), apesar de fruto de uma colaboração de uma grande equipa, publicado em 1967 pelo editor Éric Losfeld (o qual ganhara algum renome junto à intelligentsia francesa pelos seus actos culturalmente subversivos, em prol da literatura e erotismo livre: vide a primeira edição de Emmanuelle). Folhear esse livro é gesto suficiente para entender onde se encontram as afinidades formais e de mote entre um e outro. Poderíamos estender essa associação a praticamente todos os livros que Losfeld editaria por essa altura, pela simples razão de todos eles partilharem toda uma série de elementos idênticos. Estou a pensar no primeiro álbum de Barbarella (1964), de Jean-Claude Forest, os dois primeiros álbuns da personagem Scarlett Dream (1967 e 1972), de Claude Moliterni e Robert Gigi, Pravda, la Survireuse (1968), de Thomas Pascal e Guy Peellaert, Epoxy (1968), de Jean Van Hamme e Paul Cuvelier, Valentina (1969), de Guido Crepax, e Xiris (1970), de Serge San Juan, entre alguns outros títulos. Todos eles partilham a presença de uma personagem principal mulher, ou jovem adulta, livre, belíssima, e cujo exercício de liberdade passa por fazer amor ou deixar-se nua em variadíssimas situações. Pravda, por exemplo, montada numa motocicleta, apenas vestida com as suas botas de cano alto, uns mínimos calções, e um colete de cabedal: é descrição suficiente da “liberdade” dessa mulher.
É acabrunhante, portanto, que se diga que Vânia (há uma discrepância entre o título do livro e a grafia no seu interior) é uma heroína e, para mais, inovadora, quando se verificam elementos que consagrariam o seu contrário. Neste aspecto, também Wanya. Escala em Orongo, segue a linha que havia sido estabelecida nas edições Losfeld, com as suas pretensas heroínas “feministas”. Feminismo feito por homens, é no que dá: a projecção de fantasias masculinas disfarçadas de uma cumplicidade respeitadora. Lobos disfarçados de cordeiros, sem dúvida. Repara-se como, primo, não só não é Vânia quem se defende com sucesso dos “aves-do-desespero”, como acaba por sucumbir à violação de Uhr (que debateremos mais à frente), e nenhuma acção é por ela desencadeada (a não ser pela sua mera presença, como se de um catalizador se tratasse), logo... heroína?; secondo, tal qual Barbarella, Xam, Xiris, e outras que tais, as cenas de acção são mais desculpas para a despir (aos nossos olhos lúbricos, que tornam as situações pouco eróticas em palcos de um erotismo exacerbado), as situações em que se encontra são flagrantes pretextos, pouco encobertos de resto, para permitir o avanço dos temas – mais do que dos episódios e acções - que os autores pretendem debater através do livro, e as composições gráficas, mais do que uma recriação da potencialidade narrativa e legível da banda desenhada (como Crepax havia feito repetidamente, veja-se este exemplo ao lado) são antes confusas, informadas por uma cultura visual, digamos, “alta” (pintura, fotografia, etc.) que ignorando as valências da “baixa cultura” (a banda desenhada) a revisita com a ideia de a transgredir positivamente. É pela existência dessa ignorância que se ergue um obstáculo à ideia de inovação. O facto da personagem ter cabelos curtos é apontado como um dos aspectos inovadores em relação à figuração da personagem. Seja. Mas para além das informações extratextuais acessíveis – Nelson Dias ter-se-ia baseado na sua própria mulher – convêm não esquecer a presença de Valentina de Crepax desde 1965 na revista italiana Linus (que chegava a Portugal), já em si baseada em Louise Brooks, e cujo look seria continuado em Portugal tardiamente por Beatriz Costa. A qual, por sinal, também representou papéis de mulheres com um certo grau de independência, acção e autonomia visíveis, ao contrário de Vânia.
Surgem-se-me aqui dois curtos desvios, em forma de questão. Em primeiro lugar, é natural que me poderão contestar este(s) argumento(s) dizendo, “não era essa a sua intenção”, “não foi essa a sua política”; todavia, não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que por não verbalizarmos ou esclarecermos ou expressarmos in actu uma determinada política, ela não exista em contexto. Mais, tornando-se tão claro haver um propósito político, “engajado”, de crítica social e despertar das consciências, mais ou menos apegados às especificidades do regime vigente em Portugal, essoutra política oculta torna-se mais premente. Isto poder-nos-ia levar longe... Quando a chamada agenda política ultrapassa os valores intrínsecos e estéticos de uma obra, esta sofre as consequências de um peso insustentável; mas quando essa mesma agenda tenta ofuscar outras programações, rompe-se mesmo o cerco. Em segundo lugar, poderá sentir-se essa ténue vontade, tantas vezes repetida, de condescendência para com o que se produz em Portugal, uma espécie de atestado da fraqueza congénita das nossas produções, seguida de uma desmesurada alegria pela sua mera existência. Só que acredito que o crescimento de uma arte, de um artista, de uma pessoa, enfim, não se pode dignificar pela condescendência paternalista e nacional-porreirista (e muito menos patrioteira), mas pela acuidade e gravidade da sua leitura e exame.
Uma leitura outra importante a assinalar é a de Rui Zink, em Literatura Gráfica? (Celta, 1999), uma vez que Wanya é um dos cinco livros das “close readings” da sua tese. Algumas pistas são aí apresentadas, sobretudo as que dizem respeito a um entendimento desta obra como uma mínima transfiguração da sociedade em que se inseria na altura. Só que surgem ainda assim problemas por resolver. Se Izar, o terrível cérebro com olhos que controla a população de Citânia (um dos pontos a favor da associação imediata com um Portugal real), é “um deus que se comporta como um déspota esclarecido: dominou o povo e retirou aos indivíduos vontade própria, mas fê-lo para os salvar da destruição, mantendo-os nesse estado de hibernação durante vários séculos, mortos-vivos, é certo, mas também imortais” e “Tendo em conta que este texto foi publicado num país com um regime particularmente autoritário (...) as implicações políticas de uma leitura são tentadoras, até pela semelhança fonética entre Izar e Salazar” (pág. 156 do livro citado; presumo que se deveria entender antes aqui “as implicações de uma leitura política”?), então a leitura de um suposto Salazar consciente da mágoa e opressão está na ordem do dia, o que não me parece ter sido o caso, tal qual e muito menos a abnegação com que o regime – a Primavera Marcelista – se sacrificaria para bem do povo. Que a “opressão” tenha sido para “bem” do povo de Citânia não nos restam dúvidas, mas esta aceitação passiva implicará, em nós, leitores, a aceitação dessa mesma via. Mais uma vez, não há jamais não-acção política.
Pouco tempo depois, uns dois anos, de Wanya ter sido publicado, surgiria a revista Visão, que se aguentaria um ano, com muitos autores que se tornariam uma espécie de marco, mais consolidado, do espírito dos tempos e os quais exerceriam, de facto, algum peso e influência sobre a banda desenhada a vir. Apenas para citar um nome, por razões que serão claras aos seus leitores, Vítor Mesquita foi o autor de um álbum, relativamente próximo dos temas de Wanya, atravessando territórios contíguos, mas com uma eficácia bem superior: estamos a falar, claro, de Eternus 9. Independentemente dos gostos, não se pode negar que este livro (pré-publicado na Visão), sim, marcou um ponto de viragem, influenciando uma geração, quer directa (Diniz Conefrey, que colaborou com Mesquita) quer indirectamente (a reconstrução utópica da cidade de Lisboa de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves nos livros de Filipe Seems encontra em Eternus 9 uma das raízes, seguramente). No entanto, não me parece existir um trânsito directo entre os autores de Wanya e o grupo da Visão.
Em várias ocasiões deparo com a situação de pessoas formadas em determinada disciplina artística – dita da “alta cultura” – que resolvem visitar a banda desenhada como um território de contacto-e-fuga (ou o popular “toca e foge”). Isto é, considerando a banda desenhada algo de “interessante” para se consumir em termos de superficialidade, e cujos elementos se refiguram para a elaboração de uma “arte maior”. As mais das vezes essa posição implica que a banda desenhada é desprovida de pensamento e de uma capacidade autónoma de experimentação e revalidação das suas valências e especificidades, logo, o artista esclarecido está a fazer um favor em “reinventar” esse modo “inferior”. É claro que isto só é possível dada a ignorância dos primeiros em relação a uma desenvolta e complexa e ampla história da banda desenhada e ilustração, pois caso a soubessem, entenderiam que sempre existiu um movimento interno de reformulações, de reestruturações, de fulgurantes maravilhas e invenções desenvolvidas no seio da banda desenhada. São raros os artistas das “altas artes” que compreenderam de facto os ágeis e robustecidos caminhos da banda desenhada, quer os narrativos quer os visuais, bebendo dela para criar algo de um encontro feliz. Roy Lichtenstein, o exemplo de sempre, não foi um deles, fiel à agenda do movimento da Pop Art. Godard, Resnais, David Wojnarowicz, Öyvind Fahlström, sim, podem ser contados como tais.
Como disse atrás, no seu domínio visual, Wanya vive mais sob a influência das artes gráficas – da colagem, da fotografia, da pintura – do que da banda desenhada enquanto território específico, não obstante os autores conhecerem melhor ou pior o que existia então, e fazem-nos crer que sim, que conheciam. No que diz respeito ao domínio da narrativa, há todo um sopro de vontades políticas, de visões, que se colocam no terreno diegético mas sem lhe permitirem qualquer autonomia. A constante voz de um narrador literário externo apenas sublinha essa falta de autonomia; por vezes cai-se na redundância, por outras apenas o texto explicita a confusão visual (o contraponto com Crepax apenas serve para revelar, mais uma vez, que o autor italiano reforçava a especificidade da visualidade da banda desenhada). As imagens não são suficientes para a condução da estória, e o texto explica-as, e mais, fornecendo a dimensão poética que lhe é repetidamente reconhecida, presente pela linguagem elaborada em torno de determinados chavões epocais, quando não de expressões vácuas (pelo que se entende das várias informações, há uma preponderância da imagem sobre o texto mesmo no processo de produção e criação, o que parcialmente explica a inversão da ordem dos nomes dos autores na capa desta nova edição, mas, por uma vez, mais próximo dessa hierarquização). Há ainda uma série de buracos de informação na acção da narrativa, mas cuja vagueza poderá eventualmente contribuir para acentuar a natureza de mito que parece ser seguida, segundo uma outra leitura de Rui Zink. A existência de uma epígrafe, de uma dedicatória – ambas em torno de William Blake, cuja presença se sente igualmente no interior da obra, mormente por via dos nomes e funções actanciais das personagens, informada pela leitura sobretudo dos seus “livros proféticos” – e de episódios a que o investigador português chama de “cantos”, levar-nos-á a um cotejamento com o género literário mitificador por excelência, a saber, a epopeia. Podemos mesmo ver o início da viagem interestelar de Vânia como sendo in media res e, juntamente com as duas analepses internas, completando-se assim outros elementos do género.
Quando Vânia desperta do seu primeiro desmaio, já na superfície do “estranho” planeta (todos os planetas são estranhos na ficção científica), está amarrada a um poste. É libertada por uma “estranha” criatura, que se parece com um yeti, a qual procede à tentativa de violação da “heroína”. Esta defende-se, mas debalde, e a criatura consegue levar a sua avante. E no espaço de duas pranchas, e o que podemos ver como quatro “vinhetas” (sem filamentos), essa mesma criatura torna-se um homem – o texto explica-nos que rejuvenesce – graças à “vontade satisfeita, daquele subtil apaziguamento”. Que violar uma mulher seja subtil, deixo a questão em aberto. Que ela não demonstre qualquer raiva para com Uhr (aprendemos o seu nome pelo próprio), mas sim até alguma condescendência, só o posso entender como crença no mito psicologista (culpas as quais mal-atribuídas a Freud) de que todas as mulheres desejam ser violadas e que os homens se sentem sempre rejuvenescidos aquando do seu exercício de poder sexual: afinal, conquista-se, penetrando, um novo território.
Essa violação acontece uma segunda vez, ainda que metafórica e voluntariamente. Depois de atravessar os “arquivos do silêncio” cujas “grandes pantalhas” mostram a violenta história da civilização perdida de Orongo, a sua queda e renascimento sob os auspícios de Izar, a “última ordem” do tirano é que Vânia “conte ao povo de Loss a história do seu mundo”. Há uma troca de informações, ambas analepses, dos povos a que cada um dos narradores internos pertence, os computadores de Citânia e Vânia. As informações são extraídas da e com a heroína mais uma vez numa posição passiva, como que exposta (o “dentro para fora”). Independentemente de no fim da narração se escrever “assim falou Vânia”, apercebemo-nos de que parte dessa mesma narrativa foi imagética, um “pensamento vertiginoso”, isto é, sem as rédeas da razão. Abre-se então o espaço narrativo para a história da nossa civilização, em tudo idêntico à estratégia presente na Saga de Xam, quando a protagonista dá finalmente luz ao “híbrido”, a um só tempo espelho do nosso mundo e caminho para a sua transfiguração (psicadélica, pós-verbal, extraterrestre). Que esse episódio, “O rosto dos dias”, seja introduzido por dois pontos que se abrem ao domínio visual que vem a seguir e não a uma mera presença do texto verbal, é interessante, mas também ele devedor da experimentação da banda desenhada psicadélica francesa, e perfeitamente inserido na experimentação “esquecida” da banda desenhada portuguesa, se nos recordarmos dos parêntesis dos Apontamentos Sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb de Bordalo Pinheiro.
No único momento em que parece que Vânia tem algo a dizer ou fazer, o narrador apressa-se a corrigir tal ideia: “Vânia está presente em todas as grande decisões da nova comunidade: sua experiência parece ser um sucedâneo da prologada dependência de Izar” (meu sublinhado). Ainda não é tempo para a “heroína” ser levada a sério pelo seu próprio valor. Depois de um massacre ou genocídio ecológico – as Aves, mesmo que sendo “do desespero”, não deixam de ser animais, criaturas vivas, dignas de alguma defesa ética, pressuponho, o que põe em risco, acrescendo-lhes os outros elementos debatidos, o valor deste livro enquanto “mensagem pacifista de carácter universal” – Vânia parte “já a caminho de outros limites”, onde, presume-se, possa contactar outros “estranhos” povos. E não precisa de fazer nada, basta-lhe ser e deixar-se ir... Esses limites esgotar-se-iam nesse primeiro livro (salvo uma história curta, que desconheço). Quiçá porque a heroína esgotara a sua capacidade revolucionária?
Nota posterior: ainda na continuidade desta aproximação entre as "artes plásticas" e a banda desenhada, em Portugal, talvez a experiência mais forte e, mais importante, sobrevivente (i.e., ainda cria sentidos novos) é O Peregrino Blindado, de Eduardo Batarda. Aí se concretiza e acaba um desses encontros felizes aludidos acima.

3 de fevereiro de 2008

Shortcomings. Adrian Tomine (Drawn & Quarterly)

É natural que uma história curta procure estabelecer ritmos muito diversos daqueles que são permitidos por uma mais longa, sem com isto se querer precisar uma maior valorização de uma sobre a outra. Na cultura ocidental moderna, em termos literários, é o romance o modelo mais apreciado e defendido, mas nem isso corresponde a uma verdade histórica nem é algo que se tenha sempre verificado. A transposição destes géneros literários, em sentido restrito, para a banda desenhada, raramente funcionam, e o emprego de expressões como “novela gráfica” (já em si uma corruptela, e não tradução rigorosa, de “graphic novel”) as mais das vezes provoca uma percepção errónea. A extensão de um livro de banda desenhada, por comparação material, física, com um livro literário é sempre menor em relação, em primeiro lugar, ao número de eventos dispostos na diegese e, em segundo lugar, à natureza da abordagem desses mesmos eventos. Mais uma vez, não está em causa uma hierarquia de valores, já que ambos modos – literatura e banda desenhada – são incomparáveis entre si: somente elementos constituintes isolados. Dito isto, de que nos serve?
Quando passeamos numa livraria, folhear um qualquer livro ao acaso de pouco nos diz do seu interior e recorremos sempre a informações que lhe são externas: o nome conhecido do autor, a editora ou a colecção, o título que nos remete a algo, o texto na badana, uma opinião anteriormente lida ou ouvida. Todavia, há uma percepção entrelaçada em intuição que nos ajuda – mesmo não conhecendo o livro – a identificá-lo e diferenciá-lo em termos de género: romance, colecção de contos, novela, etc. Num livro de banda desenhada, isso nem sempre ocorre, e a sua dimensão material pode por vezes iludir-nos. Um volume, por mais espesso e completo que seja, de Krazy Kat jamais nos prometerá um “romance”; um livrinho tão pequeno como The Curious Sofa, de Gorey, não nos havia preparado para a condensação de relações que alberga; os clássicos franco-belgas (Hergé, Jacobs, Christin, Charlier) geram tramas densas num espaço físico menor, em menos páginas, do que autores norte-americanos em obras imensas (Kirby, Vaughan, Bendis, Jeff Smith, Craig Thompson). É a leitura efectiva que nos permite o entendimento do seu ritmo e, consequentemente, do género exacto.
Como é sabido, no que diz respeito à narratologia, o ritmo é a relação do “tempo da fábula” com o “tempo da história”. O primeiro diz respeito à cronologia, ao avançar (aparentemente) natural e uno do tempo, mensurável em unidades (segundos, anos, milénios,...), sobre cujo eixo os eventos da fábula (os eventos, interrelacionados causalmente) se organizam. O segundo é antes o tempo ou a velocidade que leva a apresentar esses mesmos eventos na superfície do texto, o que é mensurável pelas unidades do material específico do meio empregue. No nossa caso, poderemos falar das vinhetas como essas unidades, sem bem que possa tornar-se mais complexo.
Shortcomings é um livro que colige uma história que havia sido apresentada tal qual na série de Adrian Tomine, Optic Nerve, números 9 a 11, logo uma história composta por três episódios separados materialmente. Tomine trabalhara até então sobretudo em narrativas curtas, e este é o primeiro exercício numa história mais estendida, em termos materiais. O tema é o de sempre, em Tomine: as relações humanas. E a inexorável verdade de que jamais poderemos nutrir amores perfeitos por outras pessoas se acreditarmos que o amor perfeito significa relacionarmo-nos com algo menos do que uma pessoa, isto é, alguém sem a liberdade de ser, acima de tudo, humana, logo, com todas as contradições e flutuações que nos são inerentes. E são precisamente essas contradições e flutuações (de humores, vontades, desejos, disponibilidades, ânimos) que estão no centro de Shortcomings. Apesar das atenções estarem sobre o protagonista, Ben Tanaka, e apenas em breves momentos se nos permitir focar na sua namorada, Miko, não é isto suficiente para que acabemos por nos aproximarmos de Ben – naquele movimento a que usualmente se dá o nome de “identificação”. Isso não é possível porque a gestão que Tomine faz das informações que nos chegam acabam por tornar frágil a personalidade de Ben. O que não sabemos de Miko reforça-a enquanto pessoa, e quanto mais defeitos vemos acumulados em relação a Ben, mais o fiel passa a fazer-nos compreender o afastamento progressivo de Miko. E, como Tomine pretende eliminar a estratégia do narrador dirigir-se-nos directamente, desvelando de chofre o que poderemos descobrir em contexto e sob o domínio da acção, Ben tem sempre uma confidente, a lésbica coreana-americana Alice Kim. Estas duas informações sobre a deuteragonista não são gratuitas, mas sim fulcrais para dar a entender um ou vários dos outros territórios complexíssimos em jogo no livro, a saber, os problemas inerentes às segundas gerações de imigrantes de comunidades ditas “menores” num país cuja heterogeneidade se apresenta como mítica e inabalável por todos os canais (neste campo, podemos recordar os livros de Kim e de Luen Yang), o peso do exercício de poder (social, político, etc.) que se perfaz através da sexualidade, os modos como as amizades por vezes ultrapassam todos os inertes preconceitos adjacentes às várias “tribos”, e como toda a educação e abertura do mundo pode entrar numa brutal derrocada quando o amor dilui as defesas.
Importa-me, no entanto, destacar o modo como não obstante estarmos perante um livro com cerca de 100 páginas, termos em Shortcomings uma construção que segue o ritmo, ou a velocidade própria de uma história curta, a que Tomine nos habituou. Vejamos dois exemplos que talvez nos exponham o modo como esse ritmo é construído. Já vimos o que o ritmo é, uma relação, mas não explicitámos que esse ritmo pode ser variado, ora acelerando-se ora diminuindo a representação dos acontecimentos. Os dois pólos são ocupados pela elipse – não se representa o tempo, ainda que nos apercebamos ter havido um “salto” – e a pausa – há uma qualquer representação, mas não um avanço cronológico da acção. A banda desenhada é obrigatoriamente uma arte cuja estrutura de base implica a elipse. Uma vez que temos várias imagens, colocadas em sequência, há como que um intervalo invisível. Não concordo com Scott McCloud quando este diz ser aí, nesse intervalo (a que ele chama “gutter”), que se dá o aspecto mais importante desta arte, e muito menos creio na existência de uma “terceira imagem” existente nesse espaço virtual. O que se passa é bem mais subtil, a meu ver, e complexo, a que tentativamente dou o nome de “Ponto Nulo”, já debatido noutros lugares, mas cuja discussão suspendo mais uma vez. Em todo o caso, todos concordaremos que há um “salto”, algo que “não se dá a ver”.
Além dessa elipse, digamos, estrutural da banda desenhada, há a elipse de natureza literária: há um salto no tempo, e apercebemo-nos que foram ocultados determinados eventos, não representados, e que podem ser de interesse nulo - o que Ben comeu ao pequeno-almoço? - como de um interesse absoluto - o que é que Ben respondeu à última frase de Miko – a rapariga com um sinal no queixo - nesta página? Não saberemos, apenas nos contentamos com a reacção de Alice – a rapariga de óculos – a essa frase. Mais, esta estratégia de saltos entre o que se passa entre Miko e Ben e a “terapia” deste com Alice é repetida em mais que uma instância. Existem ainda as elipses visuais, contíguas à natureza fragmentária na representação dos corpos na banda desenhada, que podem assumir um menor ou maior grau de efeito dramático, como o caso do rosto de Ben, literalmente cortado ao meio, como se já estivesse “posto do lado de fora” da vida de Miko, empurrado para a sua periferia – ela não precisa da opinião ou conselho dele.
Mas um outro modo de elaborar essa elipse é fazer uma representação “descentrada”. Estoutra página fixa-se no carro de Ben parado no estacionamento, enquanto ele acompanha Miko ao aeroporto, de onde parte para Nova Iorque – e, compreenderemos, para longe de Ben em todos os aspectos – e retorna. Cinco vinhetas absolutamente iguais, excepto outras duas, uma com ambas as personagens a se afastarem, outra com Ben a voltar. Mas a acção, a última discussão em Berkeley, o adeus quase-definitivo (cujos pormenores ser-nos-ão posteriormente ofertados) está fora do nosso alcance: como se nos tivéssemos tornados prisioneiros daquele espaço e o narrador (há sempre um narrador em meios visuais, que se confunde com a focalização), egoísta, não nos permite estar onde sabemos se centrarem os eventos.
São apenas duas estratégias, mais ou menos idênticas a outras empregues no livro. Em todo o caso, são estes mecanismos aparentemente simples de, num curto momento do texto, acelerar e desacelerar o ritmo dos eventos que leva a que o cômputo geral seja o de um apertado núcleo de acontecimentos e relações, e que podemos qualificar de “curto”. Mas um curto relato apenas nessa abordagem de género, superficial, que não esconde a amplitude e profundidade com que Tomine elabora este pequeno tecido humano. Podemos ser levados a crer que o nível de realismo é mantido pelo tipo de diálogos, de representação, mas na verdade isso apenas se deve por o autor combinar de uma maneira excelente os elementos que compõem essa ilusão de realidade e as ferramentas mais agudas que a ocultam.

2 de fevereiro de 2008

Leitura de David Horta: Blacksad. Algures entre as sombras. Juan Diáz Canales Juanjo Guarnido (Asa)

Convido os interessados a lerem o trabalho de leitura, análise e crítica, e apreciação pessoal, de David Horta, do álbum de banda desenhada Blacksad, Algures entre as sombras, trabalho escolar elaborado numa das unidades curriculares da licenciatura em Banda Desenhada e Ilustração, na ESAG, pelas quais sou responsável.
O trabalho está disponível aqui, no blog "escolar".
Espero que este post sirva de incentivo a cada vez melhores trabalhos e leituras por todos, alunos e outros.
Boa leitura!