22 de agosto de 2009

Eräänlaisia rukouksia. Ville Ranta (Huuda Huuda)

O que é uma oração? Etimologicamente, a palavra religião é apontada popularmente como derivando do latim religare, re-ligar, criar um novo laço com alguém ou algo, sendo os seus dois termos o homem ou a mulher e Deus, assuma esta última figura a forma que assumir (se for figura). Mas uma raiz mais correcta é a que é apontada em dicionários, através de Cícero, para relegare, reler, ler uma segunda vez, um texto que existe. Mas quem lê quem? O homem relendo o texto que Deus é, passando a ganhar um certo grau de distância que lhe permitirá uma mais profunda interpretação e, assim, tornar esse texto mais “seu”? Ou Deus lendo o homem e, a cada nova leitura, refazendo-o à medida da sua interpretação, transformando o texto passo a passo? Escolhamos uma ou a outra explicação, ambas apontam à ideia de comunicação ou associação entre dois termos que têm de estar necessariamente afastados. A oração é então uma leitura de um telegrama, de uma carta, é telefonema (ponderando aqui se existe ou não comutação). Mas tendo em conta que as comunicações hoje se podem reduzir até à escala do sms ou do twitter (e esperemos pelo momento do retorno do Morse na forma de smileys), a oração pode assumir as mais diversas formas, e cabe a cada um de nós procurar qual a mais apropriada. O autor finlandês Ville Ranta faz essa procura neste brevíssimo livro. Eräänlaisia rukouksia significa “Preces de uma espécie” [esta publicação tem tradução em inglês] e aqui apresentam-se uma mão-cheia de histórias curtas na qual o autor tenta procurar qual afinal a sua própria relação com a ideia de Deus, e de que forma é que se pode re-ligar a Ele, ou relê-Lo. Em 1994, a editora Autrement publicou uma colecção de livros de banda desenhada (“Histoires Graphiques”) com muitos dos autores na vanguarda do momento; um dos volumes intitulava-se Le retour de Dieu, com David B., François Ayroles, Jean-Christophe Menu, Lorenzo Mattotti e Marc-Antoine Mathieu. Todavia, todos eles preferiram apresentar pequenas rábulas humorísticas, derisórias do poder da(s) igreja(s) e do engodo que a religião pode ser/é. Ranta, apesar da aparente simplicidade destas histórias, encontra-se num processo mais sério de ponderar a sua experiência pessoal.
O cidadão cosmopolita urbano de hoje pretende viver na plena certeza do seu ateísmo. Existem, contudo, indícios, de que esse edifício é mais titubeante do que parece. Aquilino Ribeiro, enquanto personagem de David Soares, no seu romance Lisboa Triunfante, a dado momento expressa a sua visão da religião que penso ser aquela de um largíssimo número de pessoas na nossa esfera de vivências, ainda que o não expressassem assim jamais, ou talvez nem sequer desconfiem ser isso o que pensariam, se se atravessem a pensar nisso: “ser apenas agnóstico e não ateu: gostava demasiado de histórias e de acreditar nelas”. A crença nas histórias é o que leva ao exarcebar dito fundamentalista em torno das principais religiões monoteístas (a crença no Arrebatamento dos Evangelistas, toda a hierarquia do Paraíso no Islão), e o crescimento exponencial de sistemas altamente ritualizados e associados a toda uma narrativa, desde o Wicca aos Odinistas, passando até mesmo por culturas como a vampírica ou os Matrixistas.
Ville Ranta não crê em nenhuma história, mas vai explorando aquelas que herdámos – quer na forma das narrativas propriamente ditas da Bíblia quer as que foram sendo construídas pelas igrejas e denominações – para perceber qual o seu caminho, assim como cria as suas próprias histórias, precisamente as dessa busca.
Sem querer fazer um absurdo exercício de redução teleológico, podemos encontrar diversas fases (hoje concomitantes) no desenvolvimento ou história da oração: a rígida e altamente ritualizada praxis dos gregos, a comovida pistis dos cristãos, e o desaguar de todas as formas contemporâneas, “new age”, de crenças informais, pequenos sistemas de ideias e desejos que se pretendem comunicativos com uma ideia de Deus.
A própria praxis da banda desenhada ganha em Ranta contornos informais a todos os níveis, com as vinhetas flutuando como nuvens na página, as figuras e as letras desenhadas em modo de esquisso, ou rápido apontamento, a paleta abafada de cores aplicada num estranho equilíbrio entre um diverso e um estreito espectro, e o rigor da estruturação dos episódios e dos acontecimentos desfarelando-se à medida do momento. Como se procurasse ter criado uma linguagem que lhe permitisse transmitir o pulso à medida que o sentisse, como o sentisse, em quaisquer circunstâncias que o sentisse.
Poder-se-ia dizer, preces de uma espécie, de facto.
Nota: as imagens foram todas retiradas da net, inclusive de um blog que dava conta de uma exposição dos originais de Ranta.

16 de agosto de 2009

Ufoja Lahdessa # 3 & De la viande de chien au kilo. Marko Turunen (Daada & Frémok)

Estando presentemente a elaborar um pequeno ensaio em torno da obra, já considerável, quer em termos de proficuidade quer em termos de linhas de força de significação, este texto pretende apenas tecer umas breves notas soltas, dando conta ao mesmo tempo, sobre as duas últimas publicações acessíveis: o terceiro número, de quatro, da Ufoja Lahdessa, pelo seu próprio selo editorial, de que já havíamos falado aqui, e a edição francesa de De la viande de chien au kilo, pela consagrada Frémok.
Cada vez mais, a cada nova leitura, parece ser-nos confirmado o facto de que estamos perante uma forma nova de trabalhar a autobiografia, uma forma de trabalhar a autobiografia que a mescla à ficção, à auto-ficção, ou até mesmo à fantasia, provocando aquele sentimento do estranho familiar a que aludiramos anteriormente. As informações que nos permitem pautar estes trabalhos como “autobiográficos” (sobretudo as curtas histórias de UL, com as personagens Alien e Graterwoman¸mas De la viande... não deixa de se apresentar de um modo similar) são, na verdade, externas ou intuídas, já que não ocorre aqui o que Phillipe Lejeune chamara de “pacto autobiográfico”. Mas essas informações, esses elementos, esses indícios, externos ou não, concorrerão para a ideia de que apenas considerando essa interpretação permitirá um maior grau de desvendamento - mesmo que este jamais seja total (impossível, naturalmente, como a qualquer obra de arte que o seja profunda e verdadeiramente).
Tomemos De la viande de chien au kilo. Aparentemente, trata-se tão-somente da história de uma personagem feminina, Liisa, uma cadelinha, e de toda a sua família alargada. A forma, as cores, o ritmo, poderão fazer-nos pensar que se tratará de uma pequena rábula, infantil talvez, na mesma linha de um Scarry, Renier. A sua leitura, revelando pequenos episódios de um quotidiano muito próximo do nosso, vulgar, poderá fazer-nos aproximar de Wiggert. Mas a consideração de todos os elementos num corpo coeso leva-nos um pouco mais longe. As criaturas de toda a narrativa são animais, os mais variados possíveis (numa secção especial ao fim do livro, sobre os combates de luta livre de Kalevi, primeiro marido de Liisa, ele luta com vários adversários, de passarinhos a polvos gigantes, passando por cetáceos pré-históricos, leva às mais díspares combinações de tamanhos e forças), mas é como se fossem copiados de bonequitos da Playmobil ou algo do género, não por remeterem à infância, não somente por serem uma reapropriação da cultural popular (costumeira em Turunen, como se sabe), mas por serem inexpressivos. E é essa inexpressividade destas figuras que as torna estranhamente familiares, e as torna tão precisas para a a-plasticidade da reconstrução da memória familiar. Pois estamos em crer que Turunen, nesse livro em particular, elabora aquilo que David B. havia feito em L’Ascension du Haut Mal: uma altero-biografia dos seus antecedentes.
Mas o desvio que Turunen provoca – a distância que rompe a existência de um pacto autobiográfico ou que nos permita aceder a essa realidade familiar real, a inexpressividade das suas personagens, já de si “reapropriadas” de outros universos referenciais, da cultura popular ou de sub-géneros ficcionais ou de modas – leva a um desarranjo algo incómodo.
De certa forma, Turunen recorda-nos aquilo que vemos no trabalho de outros autores de outras áreas criativas, por exemplo, a fotografia de Gregory Crewdson. É claro que em Crewdson dá-se uma encenação complexa e rica, procura-se o pormenor límpido e a profundeza de campo, uma claridade trabalhada, e nos desenhos a preto-e-branco, quase xilogravados, brutos, de Turunen não existem as mesmas regras plásticas. Mas o que encontramo em ambos é esse pequeno e inanalisável, inquantificável desvio da realidade, ainda que saibamos dizer que esse desvio se dá; são imagens que olham para ambientes e paisagens vulgares, quase medíocres, por vezes povoadas por acções vulgares, mas focado de um modo tão preciso, tão intenso, que nos tornamos maravilhados perante o seu brilhantismo.
É como se, através das suas estratégias (que esperaremos desenvolver, como dissémos ao início), Marko Turunen quisesse, e fosse capaz, de transformar o ordinário no extraordinário e depois retorná-lo ao ordinário. O trabalho dele é feito de várias camadas, mas sem que elas se relacionem de forma hierárquica. Essas camadas entrosam-se umas nas outras, elaborando uma tessitura una, complexa. Tanto se pode entendê-la de um modo como de outro, como pertencendo a este género como àquele... Em certa medida, é em si mesma um ovni de banda desenhada.
Resta-nos cartografar os seus movimentos.
Nota: agradecimentos ao autor, pelo envio e oferta dos livros. Kiitos!

14 de agosto de 2009

Pinocchio. Winshluss (Requins Marteaux)

No romance homónimo de Collodi, publicado em 1883, as primeiras palavras que se referem à personagem que irá ser conhecida por Pinóquio são “pezzo di legno”. Só quando esse troço de lenha, absolutamente utilitário e vulgaríssimo, está para ser cortado por mestre Ciliegia (e não Gepeto), é que a sua voz plagente se faz ouvir. Só depois de Ciliegia se aterrorizar com essa voz e tentar calá-la com violência atirando o pedaço de madeira contra a parede, é que se tenta livrar dele, através de Gepeto. Este entra no atelier do colega com a intenção de esculpir un “burattino”, um bonco articulado de madeira. Mas os dois marceneiros acabam à bulha, por Ciliegia gozar com Gepeto pela peruca deste, e por, ao tentar passar-lhe o tronco, dar-lhe uma pancada violenta nas mãos.
Se demoro algum tempo a descrever os dis primeiros capítulos do romance, deve-se ao facto de, como muitos outros romances da literatura infantil ou popular, ou de épocas mais remotas que acabaram por se verem sublimadas e reduzidas à mesma natureza – falamos das aventuras de Sherlock Holmes, dos livros de Verne, do sublime Quixote, do imenso Moby Dick, de Robinson Crusoé e Gulliver, de Frankenstein e Dracula -, o Pinóquio ser um daqueles livros que é pouco lido na sua forma original mas muito conhecido na sua mais elementar estrutura e episódios, sobretudo pelas muitas versões existentes. O que tem um resultado paradoxal: por um lado, acaba por desvirtuar a verdadeira natureza literária e moral da obra - o Quixote é um dos mais experimentais e pós-modernos avant la lettre, romances da literatura ocidental, Gulliver e Crusoé são magníficas obras da mescla entre ironia e sobranceira britânicas, Pinóquio é um livro de contornos negros -, por outro, as personagens ganham uma vida que é superior à dos livros que as viram nascer, encontrando extensões múltiplas pela imaginação dos seus herdeiros.
Se falo dos “contornos negros” desta história é porque, para além dos seus elementos mais fantásticos e feéricos (em si mesmos com idênticas raízes tenebrosas, de resto), esta personagem associa-se a ideias muto profundas da existência humana, que se relacionam sobretudo com o livre arbítrio e com o acto de criação divina que o homem tenta imitar, não apenas pelo acto de reprodução (os filhos, o filho que Gepeto deseja), como pela arte e a magia. Irmanar Pinóquio com outras personagens, como o monstro de Frankenstein ou o Golem não é displicente, como não o é ler à luz do magistral Sobre o teatro de marionetas, de Heinrich von Kleist. Uma interpretação recente nesta veia foi a da série de fotografias de Jorge Molder, apresentada no Chiado.
O que importa reter dos elementos do Pinóquio original, e destas últimas interpretações, para a leitura desta nova versão em banda desenhada de Winshluss é o facto de que a sua origem é meramente utilitária, que há um encontro feliz de um desejo (de Gepeto) anterior à circunstância de encontrar o troço de lenha encantado, e que tudo o que se segue é uma variação da “comédia (ou tragédia) de erros”. E, para mais, a da total ausência de desejo, paixão, vontade, enfim, arbítrio, da parte deste Pinóquio robótico: ele é somente movimento. É como se Winshluss quisesse regressar ao sinal e moral original da história, apagando todos (ou quase todos, como veremos) os resquícios deixados pela incontornável Disney, mas mantivesse o direito de explorar a sua própria variação, por mais radical que pareça.
Publicado em episódios ao longo de vários números da Ferraille Illustré, este Pinocchio trata da história de um pequeno robot, desenvolvido por um cientista, cujo emprego seria militar (e muito violento, como se vê nesta imagem dele em plena acção automática). Mas os enganos e malentendidos começam cedo, trazendo a morte, a miséria, a radical alteração da vida das personagens que com ele se cruzam, sempre para nosso gáudio. Indicar Winshluss como herdeiro do humor negro de um Franquin (ainda que não tão directa e sucintamente contundente) é dizer pouco.
Se este Pinóquio é, como dissémos, apenas movimento, só poderemos esperar uma imensa cinética neste livro, reminiscente da ontologia primeira da banda desenhada, quando pensada na sua forma moderna por Topffer (sobretudo o seu Monsieur Pencil, totalmente amoral, completamente cinético). Aquele que esperaríamos ser a voz da consciência, o Grilo Falante, se o é, é-o de um modo muito diferente do que se esperaria. No romance original aparece somente num capítulo e, curiosamente para aqueles que apenas conhecem a versão Disney, acaba logo esborrachado pelo próprio Pinóquio, “tutt’infuriato”. É o filme animado norte-americano que o torna o detentor da moral a guardar. Winshluss retira-lhe esse papel; aliás, retira-lhe todos os papéis numa relação directa à personagem principal. O Jiminy Cafard do autor francês é simplesmente um inútil, com apetências literárias mas sem talento nem disciplina, que vive de expedientes e artimanhas, e se aproveita dos outros como pode, entregando-se porém a longas diatribes, fantasias e devaneios megalómanos. Nalguns momentos, perguntamo-nos se não é utilizado de quando em vez pra servir de auto-paródia do próprio autor. Ainda que revele, num momento ou outro, algum rasgo de inteligência (como quando lê um trecho de Dostoievski e, esmagado pela citação, destrói a máquina de escrever e desiste), ele serve sobretudo de representação dos “derrotados da vida”, a quem passa o lado a fantasiosa aventura levada a cabo ou em torno do Pinóquio, dentro de quem vive. A interpretação é clara.
Se na versão da revista as suas pranchas tinham um tratamento primário de cor, na versão do livro surge sempre em material a preto-e-branco. A sua relação com o Pinóquio robot deve-se tão-somente em que que faz da cabeça deste o seu novo lar. De resto, todas as acções são paralelas e se existem pontos de contacto, é sempre de um modo indirecto, que não afecta a não-aliança directa entre ambas as personagens.
Aliás, essa é mesmo a estratégia narrativa de Winshluss, lançando alternadamente várias sub-tramas com as muitas personagens que vão surgindo, que se podem entretecer no texto maior mas nunca de modo imediato. Um exemplo dessas relações nota-se nesta “splash page”, com o pai-inventor de Pinóquio no tonel flutuando nas águas, sobre ele o dirigível levando Pinóquio noutra direcção, e sob as águas o Montro radioactivo que o engolirá mais tarde... Outros elementos sobreviventes do filme Disney é o episódio passado na “Ilha Encantada”, espécie de mescla entre as Disneylândias e pequenos reinos autónomos tardo-feudalistas em que esperamos ainda golpes de estado sucessivos para substituir ditadores uns atrás dos outros. Mas Winshluss, como havia experimentado noutros dos seus trabalhos (Welcome to the Death Club ou Pat Boon, este último publicado entre nós pela Polvo), e aqui, com mais espaço, aproveita para beber de várias fontes e registos, géneros e estilos, para os misturar nesta composição heteróclita. É como se a personagem principal e a sua história geral servissem para poder revisitar toda uma série de pequenas obsessões: histórias de capa e espada, de terror, policiais, de ficção científica, eróticas, panfletos religiosos, versões abjectas de contos infantis famosos ou de fábulas dickensianas, críticas à guerra e às religiões e à estupidez congénita dos humanos. A própria capa parece ser um símbolo desse jogo de cruzamento de referências. E se há um final feliz, em que Pinóquio se torna também um “filho querido”, apenas se promete que o seu movimento jamais irá parar: enquanto objecto imparável, não é o fim de uma história a sua barreira imóvel.

Qu’Inferno. AAVV (Mula)


Por toda uma série de vicissitudes, este livro demorou algum tempo a ser publicado, o que implicaria que alguns dos trabalhos reunidos acabariam por surgir noutras publicações ou plataformas, tornando-o, para todos aqueles que seguem com regularidade e atenção os trabalhos dos autores aqui agregados, que compõem de uma certa forma um corpo mais ou menos coeso e coerente (no que diz respeito aos criadores de banda desenhada , ilustração, desenho livre), menos um veículo de novidade do que uma transformação em arquivo mais perene. De facto, deveremos considerar a Qu’Inferno não como mera continuidade da actividade editorial d’Os Gajos da Mula, que haviam editado os fanzines Paint Suck’s, Lamb-Hãert e Hum, Hum! Estou a ver... e Estou careca e a minha cadela vai morrer!, mas como gesto de inflexão, reflexão e memória dessa mesma actividade. O título foi também tomado de empréstimo pra uma exposição no Espaço Campanhã, no Porto, que mostrava trabalhos dos participantes e outros amigos. Há, portanto, a importância de levar em conta esta verdadeira antologia como um gesto que almeja fazer não só um balanço de acções anteriores e das relações, cumplicidades e alianças entretanto formadas entre criadores, como também marcar um momento que se quer como de consolidação e memória. Daí o cuidado feito nesta publicação, bem diverso do dos fanzines mais clássicos anteriores. Um aspecto digno de nota, e repetido noutros lugares, é o facto de que foram publicados 300 exemplares e as capas, impressas pelo atelier Mike Goes West, num magnífico trabalho de serigrafia, e que são todas diferentes: apresentando várias combinações de verdes, vermelhos, laranjas, amarelos e rosas, prateados e dourados (e alguns exemplares mesmo a preto-e-branco e outros monocromáticos), não haverá qualquer hipótese de existirem dois exemplares totalmente idênticos. Uma forma curiosa de promover uma discussão e questionamento sobre a reprodutibilidade destas artes no seu mais famoso veículo e a multiplicidade de “objectos únicos”.
O que encontramos no seu interior é a reunião de trabalhos de autores que estão reunidos nestes gestos desde o início, sobretudo Marco Mendes e Miguel Carneiro, mas também João Marrucho e Arlindo Silva, como outros cúmplices de acções comuns do/no Porto, como Nuno Sousa e Carlos Pinheiro, d’O Senhorio, os Von Calhau, Lígia Paz, Mauro Cerqueira, comparsas de Lisboa como Filipe Abranches, João Maio Pinto, André Lemos, José Feitor e Júcifer, assim como outros nomes menos comuns nas suas acções, mas não de somentos importância, desde o veterano Carlos Zíngaro (que aqui se agrega por ter sido organizada uma exposição antológica sua em Guimarães e no Porto comissariada por Marco Mendes, mas que faz todo o sentido na ideia de haver um gesto que tanto tem de recuperação como de integração dos novos artistas na tradição iniciada por Zíngaro), ao pintor Rodrigo Neto, a ensaísta Aida Castro, e o escritor e editor (das sub-míticas e auto-marginais Edições Mortas) A. Dasilva O, entre outros.
É, portanto, uma reunião. Nesse sentido, podemos interpretar este “espaço” instituído pela publicação Qu’Inferno tanto como uma tomada de posição colectiva como um simples agregado de pessoas unidas por uma circunstância ou outra, inclusive a da amizade. Se sublinho esta última ideia, é porque penso que a junção de trabalhos de banda desenhada e de desenho livre, quando colocadas lado a lado a discursos críticos, correm o risco de serem amalgamadas num único propósito. E se os “discursos” das bandas desenhadas e ilustrações, quer sejam mais directos como os de Nuno Sousa, Carlos Pinheiro, Miguel Carneiro e, de certa forma, José Feitor, quer os mais indirectos dos restantes artistas, apontam a uma toma da de posição e uma efectivação de acções e gestos que demonstram logo as suas valências enquanto força de criação alternativa em relação aos mais normalizados e institucionalizados veículos da arte e da cultura no nosso país, sobretudo na cidade do Porto – independentemente do facto de alguns deles integrarem desde logo caminhos, como disse, “normalizados e institucionalizados” por via de galerias, instituições e/ou programas de bolsas de apoio -, parece-me excessivo empregar como que “ataques” verbalmente expressos a essas mesmas estratégias da normalização. Em primeiro lugar porque ao se fazerem esses ataques há uma imediata reacção (que pode mesmo roçar o “reaccionário”, sem dúvida, mas é preciso pensar as coisas até ao fim, mesmo que as consequências nos sejam adversas) em procurar em que é que esses discursos diferem de uma atitude complacente ou cúmplice com essas mesmas normalizações. Em segundo lugar porque estamos em crer, de uma forma talvez conservadora e romântica, que as acções e a efectividade do que está feito é muito preferível e bem mais eficiente do que programas.
Faça-se uma exposição num barracão abandonado, com dinheiros ajuntados por um churrasco ou a venda de bonés, e publique-se um pasquim como se consegue, com a ajuda de muitos, o que importa é que é essa mesma exposição e essa mesma publicação os discursos que deverão ficar marcados. Não os “intentos”.
Durante algum tempo, anos, Miguel Carneiro e Marco Mendes planeavam que a capa desta publicação fosse uma enorme tela que produziram intitulada “As Portas do Inferno”, que podem ver aqui e ali no blog dos editores. Acabaram por utilizar a que agora se vê, com o traseiro de uma mula desaparecendo no incêndio dos nomes... Todos estão familiarizados com a última frase escrita sobre os portões do inferno no poema de Dante: “Deixai toda a esperança, vós que entrais” (na tradução de Graça Moura). Todavia, o facto de podermos virar esse desenho e ver o que está para além dele prova precisamente que existe algo mais para além dessas portas, desse inferno e que as acções de todos estes autores são positivas. Façam-no. É discurso suficiente.
Nota: agradecimentos aos editores, pela oferta do exemplar; o vídeo no início é dos editores.

10 de agosto de 2009

George Sprott. 1894-1975. Seth (Drawn & Quartely)


Na cinta que acompanhava o livro de Blutch, por ocasião do seu prémio em Angoulême, diz-se que essa obra é “magistral”. Sem querer roubar os louros e as qualidades de Blutch, a utilização dessas palavras deve ser sempre ponderada e, quando empregue, deve-se procurar a sua exactidão. Creio que os sentidos cobertos por essa palavra, seja a da mestria sobre uma técnica e/ou linguagem particular, ou a do magistério, em que se serve de exemplo perante a sociedade em que se integra, é mais plenamente cumprida pelo novo livro de Seth, George Sprott: 1894-1975.
Há na contemporaneidade – aquilo que a define para além da coincidência temporal hodierna - uma incessante busca, sobretudo, por uma natureza inquieta, desassosegada, mais inclinada para a desconstrução, da transformação do quotidiano num estranho familiar (o unheimlich de Freud). Não há aqui, nesta leitura, nenhum tipo de juízo de valor da minha parte, é tão-somente uma análise dessa natureza, mitigada, ou pelo menos suavizada, pelo entendimento amplo de que existem mais do que dois caminhos para a sofisticação. É contra esta generalidade que encontramos Seth e o seu trabalho mais pessoal... Este autor, no centro da tempestade (positiva, variada, bem-vinda) de todo este trabalho de desconstrução, de alargamento de fronteiras, de revisitações, revisionismos e questionamentos, procura antes a instalação de um conforto, de uma familiaridade total, de um retorno, através da nostalgia “desnatada”, da recuperação de um tempo perdido.
Que são as “natas” aqui? São a nostalgia negativa, a atemporalidade, a perspectiva acrítica, a cegueira para com a contemporaneidade, os juízos de valor pautados pela experiência pessoal sobre tudo aquilo que não foi absorvido por ela. As natas são aquela nostalgia que se prende com a infância de cada um, a segurança ilusória e ilusoriamente perdida, a agregação do adjectivo “bons” aos “velhos tempos”, sem uma relativização dessa moral ("A infância gosta de filmes de época", começa um poema de José Miguel Silva). É por essa razão que os nostálgicos encontram a “grande qualidade” apenas naqueles textos que lhes chegaram numa zona rica de significância de aprendizagem das suas vidas. No caso da banda desenhada, por exemplo, dependendo da geração, são as revistas Cavaleiro Andante ou a Tintin, em detrimento de tudo o mais, sobretudo de uma abertura activa, crítica e expansiva sobre o presente. Mas a nostalgia positiva é aquela que nos é permitida em termos de revivência, mesmo de algo que não pertença à nossa geração e experiência individual, como bem aponta Jeet Heer (que tem mesmo um artigo sobre Seth e notalgia): ter saudades da Dublin dos anos 20 por ler Joyce, da Lisboa novecentista por ler Eça, da Paris dos anos 20 por a ler ou ver em representações (pouco importando quão fictícias, ilusórias ou mesmo falsas essas imagens possam ser).
Seth consegue criar este espaço confortável de umas estranhas saudades por algo que não pertence à nossa experiência (é claro que é bem possível que alguns leitores, nomeadamente pessoas mais velhas, canadianas, cosmopolitas q.b., tenham tido acesso ao ambiente retratado neste livro, mas estou em crer que se tratará de um público mais reduzido do que aquele que lhe é estranho; não obstante, todos os leitores – dado que apreciem o jogo - se unem nessa sensação positiva; mais, quem conhece as idiossincracias de Seth apontaria desde logo algumas das razões que o levam a esse “refúgio”). George Sprott trata da vida de uma obscura personalidade de uma estação televisiva local no Canadá, um homem que começara por se tornar famoso graças às suas viagens e aventuras (tardias, quando a aventura do século XIX se começa a dissipar e se torna mero fumo de fantasia) pelo grande norte polar, e depois explora essas memórias sob a forma de livros, “despachos”, conferências e, finalmente, um programa televisivo em horário nobre. Mas não nos concentramos somente na parte ocupada por esse trabalho, uma vez que nos são dadas a ver outras facetas da vida desse homem, assim como as opiniões ou perspectivas daqueles que com ele privaram.
O trabalho específico sobre a qualidade de fragmentário de Seth (irmanável, mas diferente, do de um Gilbert Hernandez, de um Dash Shaw, de um Clowes) continua aqui o caminho explorado antes em Wimbledon Green, tanto quanto a construção de um belo artefacto físico. O livro, em si, é um maravilhoso objecto. O seu grande tamanho transforma o acto de leitura numa experiência diferente na medida em que, como o último Kramer’s Ergot, nos remete a uma entrega física reminiscente à da leitura das páginas de banda desenhada dos antigos jornais norte-americanos, experiência renovada pela revista do New York Times, onde este título foi publicado em episódios soltos (vejam-nos aqui), antes deste novo e enriquecido formato de livro. Essa experiência da leitura das Sunday pages também não faz parte da experiência directa da maioria dos seus leitores, mas Seth consegue fazer retornar a ela, como se nos tivesse pertencido (o que é permitido igualmente, mas por outras razões mais físicas e circunstanciais, pelas edições de Little Nemo e Gasoline Alley da Sunday Press, já aludidas).
A estrutura do próprio livro, que advém dessa primeira vida num jornal e depois num livro em que se junta novo material, algum dele “incidental” (separadores, miras de televisão, paisagens, pequenas esculturas de papel representando os edifícios onde se dá a acção – com as quais montou exposições, como podem ver nesta fotografia [retirada da Wikipédia] - , as páginas centrais desdobráveis que se oferecem como uma espécie de poema aberto em banda desenhada, reminiscentes de algum trabalho de Porcellino, mas subsumidas à personalidade de Sprott) obriga-nos a leituras diferentes, não contraditórias mas complementares. Uma leitura, por assim dizer, microscópica (as unidades previstas pelas pranchas ou duplas pranchas individualmente, os episódios concretos) e macroscópica (a obra em geral, inclusive os termos daquilo a que se chama material extratextual, da capa às guardas – as miras referidas -, etc., o que já discutimos várias vezes como parte fundamental, no fundo, da leitura do texto, ou melhor, a sua reinscrição mais apropriadamente no texto e não na sua periferia).
Mesmo com a existência de um narrador externo à história, esta é uma figura pouco fidedigna: mais, essa voz chega mesmo a confessar-se como tal. É como se se apontasse sempre para um fenómeno, mas não se conseguisse prendê-lo a uma só interpretação, e não porque esta não seja possível, mas porque é deixando-a permanecer nessa flutuação que ela ganha os seus mais maravilhosos contornos. Aquilo que tornará mais famoso George Sprott será o programa de televisão intitulado “Northern Hi-Lights”, um jogo com a expressão “Northern Lights”, termo aplicado à aurora boreal. Esta imagem parece ser aplicável a todo o livro, o de Seth. A aurora é, explicando de um modo simples mas espero que não erróneo, luz presa na camada mais alta da atmosfera (a ionosfera). Um acidente temporal, uma pausa na sua tessitura. A sua explicação não erradica a maravilha que é, a sua definição científica não nos impede de nos perdermos na sua beleza. Tal como o estudo da estrutura de George Sprott não nos impedirá de regressar a ele as vezes necessárias para vermos a sua luz dançar de um modo diferente da anterior leitura. São essas memórias – do próprio Sprott, mas também das pessoas entrevistadas – a sobrinha que foi a última pessoa que o viu vivo, uma mulher que viu todas as suas conferências, colegas de trabalho, um coleccionador especializado, uma filha “bastarda” inuíte -, e ainda agregadas ao acesso que o narrador ou hiper-narrador permite aos sonhos, fantasias e medos de Sprott, que compõem a imensa “cortina de luzes dançantes” do livro.
Os episódios ocupam uma, duas páginas, no máximo três, ritmos interrompidos por imensas paisagens esquemáticas do grande norte canadiano, baseadas, quem sabe, no trabalho do ilustrador McDonald, sobre quem Seth trabalhara nas duas páginas da Kramer’s Ergot. Aliás, esta flutuação entre tratar de personagens reais (McDonald, mas também o seu trabalho de designer e editor em torno de artistas como Shulz, Doug Wright) e fictícias (Kalo, Wimbledon Green, George Sprott) contribui para essa ideia de nostalgia positiva, de recriação ou reinterpretação do mundo real: não se trata de criar uma ficção ou fantasia tout court, mas lançar sobre a realidade um manto de fantasia, mesmo que pouco diáfano.
As estratégias de Seth estão aqui num estádio apurado, empregando desde pranchas de uma estrutura simplícissima, linear, em que a repetição das “talking heads” e os seus discursos erradiam uma acalmia pouco comum nos nossos dias, e como que um respeito e atenção redobrado ao que estas persongens, pessoas, estão a dizer. Mas há também outro tipo de abordagens, como as de paisagens urbanas fragmentadas pela rede das vinhetas que não impedem porém uma imagem comum, e o texto fluindo por essa paisagem como as deambulações da tríade narrador-personagem-leitor (a página a que me refiro tem por título Life is but a dream [retirada daqui], e talvez seja a favorita). Estes outros tipos de “arritmia” levam-me a um outro termo de comparação que penso não ser totalmente desprovido de interesse. Uma das mais belas peças musicais de Glenn Gould, que não o seu Bach, é The Idea of North (de 1967, e chamá-la-ei de “peça musical” sem desculpas, apesar de ser oficialmente um documentário radiofónico). Trata-se de uma composição concreta que constrói uma paisagem sonora a partir da gravação de várias vozes de entrevistados que dão a conhecer as suas impressões de vida do “Grande Norte”, i.e., territórios de tundra usualmente inóspitos e duros. Enfim, temos acessos aos entrevistados e às suas “ideias do Norte”. A ressonância desta obra sobre George Sprott tem menos a ver com a estrutura narrativa, de vozes sobrepostas, uma forma contemporânea do moteto medieval, mas que mostra uma coincidência na forma da polifonia, na multiplicação das vozes para criar um cristal multifacetado que nunca é a simples soma das partes e cuja impressão necessariamente diferirá entre os leitores. É difícil seguir apenas uma das vozes na peça de Gould, mas também o é em George Sprott, pois apesar de existirem em unidades individuais (as pranchas, mormente na sua publicação original), o seu propósito é virem a ser integradas no livro em si, nessa rede de associações, num emaranhado e entreleçamento final, perdendo o valor individual, talvez, mas ganhando a vertente de... vertente propriamente dita, de uma figura maior. A qual serve para iluminar ou dar a ver George, de modos diversos. Repare-se como a decisão sobre a personalidade de Sprott muda conforme os testemunhos. Tratava-se de um homem interesseiro ou interessado? Um crápula calculista ou um amigo extremado? Um homem genuíno para com a vida ou alguém que apenas mereceria a nossa reprovação? No fundo, o que Seth pretende não é que os seus leitores tomem uma decisão, mas se apercebam da incomensurável multidimensionalidade do ser humano. Como afirmaram Gaiman e Pratchett no seu romance conjunto (Good Omens), o que define o ser humano não é o facto de se ser intrinsecamente bom ou intrinsecamente mau, mas intrinsecamente humano. E este George é-o.

The Gleaming Armament of Marching Genitalia [MdC no. 21]. João Maio Pinto (Mmmnnnrrrg)


Dificilmente conseguiremos catalogar facilmente The Gleaming Armament of Marching Genitalia. Mais rapidamente conseguimos dizer o que não é, do que o que é. Não é um livro de banda desenhada, não é um catálogo de trabalhos, não é uma colecção de ilustrações, não é um um portfólio de desenhos. Pode até passar-se por potencial livro de colorir, de gigantesco que é, mas seguramente que serão poucos aqueles que encontrarão o humor dessa potencialidade, e deixar aos lápis de cor a complementarização do que ele já encerra... quantos tons de verde escuro será possível executar?
João Maio Pinto é uma espécie de respigador cultural, sobretudo visual, mas não só. Procura instituir uma dimensão multisensorial com os seus desenhos. A ideia de floresta não está somente presente em termos representacionais (a esmagadora maioria das imagens aqui presentes tem motivos vegetais, as mais das vezes selvagens e combinando aspectos mórbidos, tenebrosos), como em termos conceptuais, se nos recordarmos da expressão de Umberto Eco sobre os “bosques da ficção”, onde dá vontade nos perdermos. A aproximação do seu estilo visual ao de Charles Burns (sobretudo do magnífico Black Hole), é bastas vezes repetido, mas poderíamos colocá-lo lado a lado a, de modos diversos, Gary Panter, Michael Kupperman, e mesmo José Feitor num determinado modo de construção das suas imagens e histórias, que tem a ver com uma citação tão ampla e tão complexa, que os elos às fontes se rompem para criar um novo texto totalmente autónomo. Também poderíamos dizer ser respingador, já que está menos interessado na devolução de um texto acabado, sem aparas, de consumo e digestão facilitados, mas antes cuspido de modo contundente e expressivo, apesar do aparente controlo gráfico.
A citação inicia-se no próprio título, partilhado com uma canção dos The Flaming Lips, na capa que recordará um poster para um sabão dos anos 50, com uma tipografia cuidada e apelativa, com as composições internas que tanto recordarão cenas in media res (de uma história que jamais será revelada) como as composições de toda uma escola de ilustradores de capas de discos de vinil, quando havia muito espaço para trabalho manual, e sobretudo de um sinal de rock. Aqui poderíamos vogar de Roger Dean com as capas dos Yes e dos Uriah Heep a Aaron Horkey, com a capa de Altar, dos Sunn O))) & Boris, com a qual o trabalho de Maio Pinto tem grandes afinidades, apesar de ter surgido bem depois de algumas das imagens reunidas neste volume, passando pela miríade de capas de discos de heavy metal, como as dos Iron Maiden – com Derek Riggs - e dos Slayer – com Larry Carroll.
Mário Moura explorou certeiramente no seu texto a propósito do trabalho e exposição de Maio Pinto no último festival de Beja da instância daquilo a que dei, noutras ocasiões, o nome de “promessa narrativa”, isto é, a ideia fantasmática que as imagens criam para coalecerem numa história na mente dos espectadores. A parte que se segue entra em diálogo com esse texto do autor do Ressabiator. Um dos passos mais surpreendentes de Alice no País das Maravilhas é quando o texto nos diz que Alice e a sua companhia se cruzam com um grifo, e se abrem parêntisis para dizer: “se não sabes o que é um grifo, vê a imagem”. Esta relação profunda e íntriseca entre um texto que voga para fora de si mesmo, conduzindo-nos não à complementaridade da imagem mas ao modo como esta completa o texto, é rara na história da ilustração, e é o que torna o trabalho de Carroll com os seus ilustradores de uma sofisticação nem sempre apreciada, sobretudo pelos seus editores contemporâneos, inclusive os portugueses (que primam, porém, pela tradução).
Talvez um outro exemplo seja o “isto” antes do desenho do elefante engolido pela cobra em O Principezinho, de Saint-Exupéry. Mas as imagens coligidas em Marching Genitalia não provêm de quaisquer textos, dirão, o que leva à fraqueza dessa associação. No entanto, estou em crer que a questão reside numa forma que Maio Pinto consegue conquistar precisamente por apresentar trabalhos fragmentados, projectos inacabados, troços de destroços, imagens soltas, projectos de outras paragens, num objecto final como esta publicação, fazendo com que ultrapasse aqueloutra questão da “promessa narrativa” – que reside antes na transitoriedade fantasma entre um conjunto de imagens entre as quais o espectador estabelece relações de parentesco ancoradas num qualquer elemento narratológico (ou pseudo-narratológico) como um espaço ou personagem comum, um tema, etc. O que acontece é que estas imagens parecem providenciar um “isto”, uma chamada de atenção concreta para algo que as completa mas que se encontra fora das imagens. Caberá ao espectador, subitamente consciente de que é afinal um leitor, adivinhar – ou formar – essas mesmas histórias. E nada disto tem a ver com o jogo que, por exemplo, está previsto desde logo no livro de Chris Van Allsburg, The Mysteries of Harry Burdick. Neste caso (que é irmanável com a longa tradição dos emblemata), a imagem, em conjunto com o título e a legenda, leva a uma referencialidade demasiado estreita, espartilhada (mas não de somenos interesse noutros aspectos). Maio Pinto permite que a sua estratégia de respigador seja devolvida a quem o lê, reconstrução tornada possível apenas àqueles que possuam a mesma capacidade de respigar, definindo essa leitura, a todo o instante, como infinita e perenemente potencial.
Nota final: agradecimentos adicionais a Joana Batista, cuja tese de Mestrado, Implicit narrative and endless reading, ajudaram nalguns pontos de leitura.

Chine. Regards Croisés. AAVV (Casterman)

“Depois da casa roubada, trancas à porta”. No caso da Casterman deve este ditado ler-se, “depois de roubarmos casa alheia e vos roubarmos, trancamos a porta”. É necessário algum peso e medida em aceitar totalmente as palavras que Jean-Christophe Menu dedicou ao facto da Casterman e outras editoras terem “metido a foice em seara alheia” (hoje é dia de ditados) no território das editoras alternativas, mas não é sem total razão que houve uma aproximação dessas grandes casas a experiências editoriais e conceptuais estreadas por outras plataformas mais livres das regras (impositivas, redutoras) do mercado livreiro existente. A colecção Écritures é precisamente o osso de contenção que Menu apresentou em Plates-Bandes, e que agora, depois de uma relativamente interessante oferta de títulos chegou ao fim, anunciando-se porém a sua transformação – tal como, de certa forma, Écritures era uma transmutação de formato das sinergias anteriormente presentes na sua colecção Romans (A Suivre). Dessa oferta, nota-se um drástico menor destaque no que diz respeito à qualidade dos títulos franceses originais e contemporâneos do que as edições em francês de autores estrangeiros: um punhado de autores da Ásia, como os sul-coreanos Kim Dong-Hwa e Park Kun-Woong, vários títulos de Taniguchi, Hideji Oda, outros dos norte-americanos e canadianos Craig Thompson, Chester Brown, Seth, Ben Katchor e as primas Tamaki, a recuperação de vários títulos de Baru e do pulp L’Ombra, de Pratt e Ongaro. A excepção dos títulos contemporâneos franceses pertence, naturalmente, ao La Pluie, colaboração repetida de Lambé e De Pierpont, se bem que Mariko Parade, de Boilet e Takahama, não seja totalmente desprovido de interesse mas parece ser uma espécie de conquista lateral de públicos, uma vez que ambos poderiam estar na colecção Sakka.
Esta estratégia de ter um olho numa certa produção asiática, presente na Sakka e aqui, e a possibilidade de apelar à excelente rede organizacional das intituições políticas e culturais francesas (os serviços culturais das embaixadas e a Alliance Française), levou a que explorassem três momentos de relações internacionais pela banda desenhada: primeiro no Japão, depois na Coreia do Sul e finalmente na China.
Se já o título da Coreia apontava para um decréscimo do interesse dos trabalhos reunidos, por uma questão de se limitarem – quiçá por um menor conhecimento da diversidade local, quiçá por interesses comerciais nos autores que se prevêm editar na editora francesa – a autores de segunda linha, este volume acaba por nos ofertar com trabalhos ainda menos interessantes.
Os autores chineses oscilam muito entre aventuras rápidas com pequenos clichés de acção e humor, ficção histórica ou lições de cidadania, ou incursões numa mangá em segunda mão. As únicas excepções vêm pela mão de Zhang Xiao Yu (com outros títulos traduzidos em França), com uma pequena história que mistura o quotidiano rural chinês com um laivo de fantasia e uma certa ideia de banda desenhada contemporânea que nos fará recordar trabalhos da década de 70 e 80 nas várias revistas italianas e espanholas, e Chihoi, que, num estilo similar ao de Amanda Vahamaki, explora a complexa questão da liberdade nacionalista e democrática do povo de Taiwan, curiosamente apelando à sua herança pós-colonialista inglesa.
Quanto aos franceses, encontram-se exemplos de pequenos relatos da história da cidade visitada a pequenas parábolas, ora mais fantasiosas ora mais de “consciência política”, em torno da “vida chinesa”. Neste grupo de autores, as únicas excepções cabem Anne Simon (herdeira de Sfar), com uma pequena rábula de concubinas e eunucos abjectos, mas cujo estilo gráfico permite criar um estranho ambiente de leveza, e os irmãos Olivier e Denis Deprez, mas cuja história acaba por se tornar igualmente um exercício bastas vezes repetido: a impossibilidade de conhecer um país como a China em pouco tempo, as contradições políticas e culturais patentes, o choque entre as expectativas criadas pela ficção e pela distância e a realidade vista directamente com os olhos.
De facto, talvez o subtítulo da antologia seja mesmo correcto: “olhares cruzados”, mas não encontrados.

Crack On. AAVV (Chili Com Carne/Forte Pressa)

Este brevíssimo texto serve para dar conta de um modo simples a antologia co-editada pela portuguesa Chili Com Carne (pelas mãos de Marcos Farrajota) e a italiana Forte Pressa, por ocasião da participação de um “contigente” português daquilo que passa pela banda desenhada alternativa no festival Crack.
A antologia não é apenas partilhada por autores destes dois países, e encontraremos os sérvios Nina Bunjevac (que vive no Canadá), com uma pequena cena da vida de uma personagem que, pensamos, a autora emprega várias vezes, e o mais famoso Aleksandar Zograf, com uma curta e simples história sobre o seu encontro com a banda The Residents.
A antologia não reune trabalhos particularmente interessantes, sendo a esmagadora maioria deles ou estranhas semi-elucubrações em torna da ilustração “solta” ou da livre associação, e quando há um autor que chama mais a atenção, como Massimiliano Bomba, apercebemo-nos de que aquilo que nos atrai é a sua proximidade a uma qualidade gráfica vista em, por exemplo, Fábio Zimbres. A excepção, neste campo, é o ilustrador profissional Onze, que apresenta um exercício de ocupação das páginas muito interessante se bem que largamente afastado das regras mais comuns dessa área (o seu trabalho parece beber largamente da ilustração de moda e de um design gráfico contemporâneo, urbano).
Os autores portugueses “salvam” a edição, mas também estes contribuíram com trabalhos já anteriormente vistos, como é o caso de Marco Mendes, Miguel Carneiro, João Maio Pinto – se bem que possa ser material inédito, havia sido apresentado noutros locais -, Dos outros, quer os veteranos quer os novos, apresentam trabalhos mais ou menos felizes, mas sem grandes voos ou surpresas de maior: João Chambel, Ricardo Martins, Rafael Gouveia, Lucas Almeida, Sílvia Rodrigues, José Feitor e Pedro Zamith... Joana Figueiredo apresenta-se na capa e com uma história que parece participar nas explorações da banda desenhada alternativa norte-americana no mundo dos super-heróis, tal como em Coober Skeeber ou Bizarro Comics. É bom ver a retornar a uma linguagem mais “contida” de banda desenhada dois artistas como André Lemos e Bruno Borges, sem querer com isso querer dar a entender que é “melhor assim”. É somente uma fonte de um pequeno prazer, o que torna este título uma boa referência arquivística.