28 de julho de 2008

Noitadas, deprês e bubas. Marcos Farrajota - (Chili com carne)

Em várias ocasiões no passado, quer em momentos privados quer públicos, por escrito ou oralmente, e nos limites minúsculos que consigo alcançar, avisara ou recordara a existência desta saga de Marcos Farrajota, publicada nos anos 90, como uma marcante experiência da banda desenhada autobiográfica, a qual, não obstante ser uma tendência certa e crescente noutros países (nos Estados Unidos mais vincadamente a partir da década de 60 com os underground comix e em França depois da década de 70 com autores tão díspares como Gotlib e Moebius), e contemporaneamente consolidada, em Portugal acabou por não medrar do mesmo modo. As razões desse, digamos, desequilíbrio serão melhor exploradas e explicadas por métodos de sociologia. A mim importar-me-á re-indicar que, nesse panorama débil em autobiografias, Marcos Farrajota, em consecutivos Mesinha de Cabeceira (entre 1995 e 1997, com mais um “episódio inédito”) avançou uma obra que se destacava dessa ausência (nem o poderemos considerar “percursor”, pois não se seguiriam novas experiências análogas, idênticas ou aproximadas). É certo que existiram outros companheiros, assinalados no prólogo de Daniel Lopes, anteriores como o Relvas do L123 (mas aqui estamos no domínio da auto-ficção), contemporâneos como Pedro Brito e Miguel Falcato, mas também Nuno Saraiva, João Fonte Santa, Alice Geirinhas... Poderíamos ir mesmo a Bordalo Pinheiro... Posteriormente surgiriam novos autores, ligeiramente mais jovens e também sob novos signos da banda desenhada internacional – aquela que Farrajota, em parte, introduziu nos circuitos através dos seus workshops, encontros, etc. – e que dela partiriam para experiências semi-autobiográficas, em que transformam experiências de vida em matéria reutilizável nas suas ficções, etc., mas há como que um ecrã de vergonha que impede trabalhos mais vincadamente do “eu” que identifique directamente autor, narrador e protagonista. Mais recentemente, e de um modo directo, descomplexado e divertido, temos a experiência de Marco Mendes. Cada um destes artistas trabalha ou trabalhou separadamente, como autor individual, e não pertencem a nenhuma escola ou corrente que se possa entender como unificada em Portugal, o que está em perfeita consonância com o modo de funcionamento usual da banda desenhada no nosso país. Seja como for, continua a mostrar-se dessa maneira que não se pode falar de uma autobiografia em banda desenhada musculada em Portugal.
Seja como for, essa resistência ao género parece ser repetida também pelos leitores e até leitores críticos da banda desenhada, o próprio Daniel Lopes dando conta de algumas ideias que se generalizam em torno deste tipo de banda desenhada. por exemplo, e simplificando em muito, os seus detractores empregam muitas vezes a fórmula de que “uma autobiografia só é boa na medida em que o autor tem algo de interessante para contar”. Mas o problema aqui está em colocar todo o onús no “que” (no quid) em vez de no “como” (o modo). Caso contrário, bastaria querer falar de leucemia, do pai homossexual, da morte dos avós, de um interrail particularmente regado a álcool e experiências sexuais, sem qualquer esforço autoral, de domínio dos instrumentos e estratégias do seu meio, para atingir esse fim (claro que cada uma destas experiências se tornaria mais interessante para com uma predisposição do leitor). Todavia, as coisas não podem funcionar assim. Muitas vezes somos surpreendidos precisamente por uma autobiografia em banda desenhada por nos falar de experiências que nos são totalmente alheias e quiçá indesejadas, mas a força do seu autor, a motriz da sua linguagem, tornam essas obras incontornáveis no seu território. A lista é enorme de autores que atingiram esse domínio, sendo depois diferenças de grau aquelas que aproximam dois leitores diferentes de uma mesma obra, e os afastam de outra. Como disse Proust em Contra Sainte-Beuve, "a beleza da pintura não depende do que representa".
Outra crítica relativamente constante é o egocentrismo da autobiografia. A própria frase já deveria revelar o caricato paradoxo que se levanta: como não ser egocêntrico numa autobiografia? Mesmo que exista uma maior procura pela distinção, como em David B., ou mesmo um apagamento, como em Dominique Goblet, do que uma auto-derisão total (como em Joe Matt, que Marcos Farrajota cita e com quem se deseja encontrar) ou uma assunção das crises pós-adolescência (J. Brown) ou a busca pelo amorável caseiro (Liz Prince), há sempre, sempre uma busca pela centralização do autor/protagonista: é ele ou ela o filtro segundo o qual e organiza o mundo. De resto, é isso o que sucede nas nossas vidas, diariamente. O meu mundo gira em torno de mim. Um autor que opte pela autobiografia não pretende fazer desviar esse eixo para o mundo do Outro de um modo acabado (discutível, mas poder-se-ia falar de ficção), mas mantê-lo organizado nesse eixo. São portanto as estratégias de descentralização (parte do modo, não do quid) o que torna mais ou menos interessantes os trabalhos deste género em particular. Nesse caso, Seth leva a palmatória em It's a good life if you don’t weaken, por exemplo.
Quanto a Marcos Farrajota, existe um equilíbrio bem feliz entre essa possível auto-derisão, uma genuína busca por um sentido de se explicar e justificar perante o leitor, uma preocupação em perceber os limites do que pode dizer (os nomes dos amigos, a sua figuração – como quando surge Astarot, personagem da saga de Loverboy, com João Fazenda) e o final (pelo menos aparente) abandono desse trilho (seguir-se-á um próximo volume com mas trabalhos desta mesma “veia”). É preciso contextualizar estas histórias na sua altura exacta. O autor era (e é) extremamente atento aos movimentos internacionais da banda desenhada (e não só, uma vez que o domínio musical é uma constante na sua produção, como neste encontro perfeito entre as letras dos Einstürzende Neubauten e o seu estado emocional), de uma verve criativa pouco comprometida com expectativas e “sabores da moda”, e muito pouco dado a derivativos. Quando estas histórias foram criadas, vivia-se num tempo a autobiografia ainda não tinha explodido totalmente no “mercado” internacional (podemos dizer que a responsabilidade na Europa pertenceu, ainda que não exclusivamente, à L’Association), e muito menos em Portugal, como vimos (aparte algumas experiências fanzinísticas obscuras). Nesse sentido, Marcos Farrajota não deve nada, por exemplo, a Craig Thompson, a J.-C. Menu, ou a Joe Matt. Se bebeu, bebeu das fontes mais recuadas, como Crumb, Pekar, ou de experiências mais recentes e que com ele partilhavam uma certa cultura, a que se pode dar o nome (sempre temporário) de underground: pensamos em Julie Doucet, trabalhos na World War III, etc. A ligação directa com Relvas, feita por Daniel Lopes, é exacta nesse sentido de justiça e acuidade da sua inscrição.
Quando havia feito as chamadas de atenção à obra de Marcos Farrajota, na verdade enganara-me sistematicamente a citar o título, falando de Bebedeiras e Duprês, esquecendo-me do terceiro elemento, aliás o primeiro no título correcto, que surge com uma espécie de complemento circunstancial de lugar e tempo e modo e meio todo embrulhado: as noites. E é necessário tomar em conta que os acontecimentos retratados nestes pequenos episódios, alguns solitários – a própria criação dos trabalhos, a masturbação, as migalhas, as paranóias dos charros, as fantasias mentais, as reflexões sobre a vida – outros colectivos – saídas à noite, festas, concertos, passeios, férias, conversas – vivem em torno de uma cultura noctívaga, de um certo grau de rebeldia em relação à imposição da “normalidade social”, de uma ansiedade em relação ao futuro e àquilo a que nos parece obrigar, que se revela no próprio modo de trabalhar a banda desenhada: os traços nervosos, a flutuação dos estilos, as complicadas ou grotescas composição de página, as inclusões de material alheio (aliás, como muitos dos autores europeus de banda desenhada autobiográfica, Marcos inclui também trabalhos de outras bandas desenhadas como forma de se agregar a elas enquanto tradição criativa – Grant Morrison/Phillip Bond com Kill Your Boyfriend, o Madman de Mike Allred, o trabalho de Julie Doucet, etc.; também cita Ramba, de Marco Delizia e Rossano Rossi, mas por razões diferentes, mais mundanas), as diatribes contra a “normalização” aventada acima, etc.
O desenho de Marcos Farrajota dá lugar a discussões extremamente vivas e interessantes. A banda desenhada, enquanto um meio visual e uma linguagem devotada em grande parte ao entretenimento, cria uma massa crítica mais afeita às paixões fáceis e redutoras do virtuosismo dos estilos, da espectacularidade da figuração e acções representadas, e até mesmo dos elementos de titilação mental mais imediatos (sexo, mulheres belas, violência gratuita, seja ela heróica ou antiheróica, etc.), do que um pensamento mais estruturado em torno do visual agenciado em narrativa, mais próprio desta arte. No entanto, se é verdade que a dimensão visual é o caminho de mais fácil conquista na primeira das abordagens – quantos de nós decide comprar um livro de um autor que não se conhece folheando o livro em pé e baseando toda a primeira impressão nas imagens? -, a banda desenhada não se reduz de qualquer modo a isso. Acima de tudo, é uma escrita: não apenas do texto em si, das palavras com que se preenchem os balões e as legendas, mas sim o agenciamento, a estruturação das imagens, das acções, das contínuas impressões, da organização do tempo diegético, das estratégias políticas que residem no que se dá a ver e no que se reserva invisível... E nisso, não pode perder-se de vista que Marcos Farrajota domina.
Se me permitem a auto-citação, repesco aquilo que havia escrito na revista flirt, e que se encontra na capa de trás de Noitadas, deprês e bubas. A propósito dos desenhos de Marcos Farrajota, que são “maus” no sentido de “bruto”, de não se entregarem à “beleza normalizada” – desculpem a nota pessoal, mas se houve colaboração na Mesinha de Cabeceira/Crica, com a “História de Deus”, foi porque encontrava em Farrajota o poder de uma inscrição caligráfica apropriada a essa saga conturbada – disse: “o que move Farrajota não é a estética – forma de conhecimento pelos sentidos – mas a estésica [há uma gralha no original, deveria ser esta a palavra] – forma de conhecimento pelos sentimentos”. E é descobrindo como com estes parcos instrumentos Marcos Farrajota constrói um vincadíssimo e forte modo, que o quid se torna significativamente pessoal. Mas transmissível, através da sua leitura.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, pela oferta do livro.

26 de julho de 2008

Brian Cronin. 25 anos de desenho (Ar.Co/Casa da Cerca)

Este post centrar-se-á nas duas exposições apresentadas em conjunto na Casa da Cerca, Almada, numa co-produção com a escola Ar.Co, nomeadamente o seu Departamento de Banda Desenhada e Ilustração. Essas exposições são uma retrospectiva dos cerca de 25 anos do ilustrador irlandês, mas radicado nos E.U.A., Brian Cronin, e uma colectiva de quinze autores portugueses, em torno de um tema ou matéria central. As oportunidades de encontrar gestos desta natureza fora dos grandes certames é rara, por isso, logo desde a partida, são não só produtivos como merecedores da nossa atenção. Não significa isso, porém, que sejam depositários de todo o nosso entusiasmo ou entrega.
Vejamos primeiro Brian Cronin. Este ilustrador tem uma carreira consolidada e erguida nas mais prestigiantes plataformas da ilustração editorial dos Estados Unidos, começando pela Rolling Stone, passando pela Time, a Reader’s Digest, e muitas outras publicações, ora generalistas ora especializadas, terminando no acme dos ilustradores (pelo menos na metade do mundo anglófila), a New Yorker, a qual, de quando em quando volta às bocas do mundo graças às suas controversas – política e humanamente – capas.
Cronin é um daqueles artistas que cai na categoria dos “ilustrador dos ilustradores”, isto é, um artista mais imediatamente apreciado e discutido pelos seus colegas do que por um público mais geral e mais inclinado a trabalhos de uma maior espectacularidade, seja esta do domínio do virtuosismo técnico ou dos grandes efeitos especiais do político e do social. No entanto, a força de Cronin, a meu ver, não é assim tão poderosa que o coloque num qualquer domínio único ou de singularidade fulgurante. Se alguém ocupa esses limiares, falemos de Steinberg, de Saul Bass, de Al Hirschfeld, para ficarmos sensivelmente num intervalo de tempo que parece estar na mira do trabalho de Cronin em termos de fonte estilística de inspiração. Pois o que se sente é que todo o trabalho de Cronin escapa um pouco da maior parte da produção dos seus colegas dos mesmos anos - cada vez mais apaixonados pelo computador mais enquanto ferramenta de efeitos, decoração e filtros do que de auxílio de descoberta e pensamento – para ser devedor de um design retro que mergulha as suas raízes no design inglês moderno, com artistas como Tom Eckersley, por exemplo, se bem que com mais “ruído”, intervenções de elementos visuais não-representativos sobre o espaço de representação, e a figuração vogue num figurativismo (passe o pleonasmo) quase icónico, estilizado. Algumas das suas opções e estratégias visuais podem tanto remeter ao design de propaganda militar das duas grandes guerras mundiais, como às capas da New Yorker de Sempé, como à publicidade oriental, etc. Há uma coadunação, natural, de cada um dos trabalhos à imagística empregue, sem nunca de se deixar de reconhecer as características comuns. A qualidade artesanal e conservadora a que nos referíamos é visível nas informações encontradas no catálogo e na visita à exposição, notando-se que a esmagadora maioria dos trabalhos expostos, para além de serem desenhos em aguarela, acrílico e a tinta-da-china sobre papel, parecem fazer parte de trabalhos em serigrafia, ou em outras técnicas mistas de impressão, com intervenção de instrumentos vários, colagens (alguns desenhos parecem feitos por módulos), papéis rasgados, puzzles de papéis de várias cores marchetados numa figura, posteriores ingerência com lápis ou outros materiais, etc. Mas há algo que fica aquém no trabalho de Cronin...
O catálogo em si tem alguns problemas, mas pode ser que sejam apenas uma impressão superficial minha. Inclui-se uma entrevista ao autor, mas mergulha tanto em pormenores íntimos, diria mesmo obscenos da sua vida, que a torna incómoda de ler, se não mesmo enfadonha e impertinente no que respeita à possível apreciação do seu trabalho. É pouca a matéria que revela um pensamento profundo sobre o trabalho de ilustração, como o que se descobre em Ben Shahn ou num director como Steven Heller. Enfim, uma escolha péssima. Das imagens incluídas, em uma mão-cheia delas surge uma intervenção de texto, em português e inglês, com palavras tais como “sentimento” e “naufrago” (sem acento) colocadas por sobre a imagem original (que se pode consultar, assim como o seu ano, origem, material e até o texto com que se relaciona, se for caso disso). Estamos em crer que esta opção foi tomada em consonância com o próprio artista, mas mesmo assim paira a pergunta de qual sua a mais-valia, uma vez que impede uma apreciação global e límpida da imagem em si, e o domínio que adivinhamos poético não é sobejamente vincado. Finalmente, uma vez que o catálogo não apresenta na totalidade as imagens que compõem a retrospectiva exibida, existe uma mão-cheia de trabalhos que constituiriam não apenas uma outra escolha (todas as opções têm a sua validade) como um desenho diferente, uma perspectiva diversa do trabalho de Cronin... Por exemplo, porquê a integração das ilustrações dos rostos humanos sem grandes características icónicas, informativas ou estruturais diferenciadoras, para deixar de fora a máquina de escrever/cemitério, a bandeira-caveira, a cruel mas real injunção ao voto...? Algumas destas imagens podem ser encontradas nas fotografias (de péssima qualidade) encontradas no fim deste artigo.
No seu texto de introdução, Manuel Castro Caldas indica como uma das características do trabalho de Cronin o uso, ou melhor, a instauração, de “poderosas metáforas visuais”. Este é um tema complexo, termo que já atravessou discussões variadas e mesmo direcções opostas nas decisões de como definir, pensar, aplicar essa figura da metáfora visual. Por via de várias razões, seguimos a lição de Noël Carroll (Beyond Aesthetics) para entender aquilo que uma dessas figuras possa ser. Carroll indica que a característica necessária para a existência de uma metáfora visual é a homoespacialidade, “a qual incorpora visualmente elementos díspares (relembrando categorias díspares) numa só entidade espacialmente homogénea”, representando “um estado das coisas fisicamente compossível”. Ou seja, os dedos dobrados de uma mão podem ser também os cubículos de um empregado, o braço do corruptor pode ser o mesmo braço do corrupto, o capacete do soldado de “paz” pode ser o traseiro de quem “baixou as calças”. Estas características, meramente formais, ocorrem no trabalho de Cronin, e são empregues de facto para os fins alegóricos (de cariz sobretudo político, económico, social) dos artigos que ilustravam. Para mais, as metáforas nunca são proposicionais, logo não são susceptíveis de falsidade ou de verdade, logo tudo pode ocorrer, sendo elas apenas apreciáveis por serem mais exactas ou mais profundas. Não obstante, se as metáforas têm como fito a explicitação de um elemento a partir do seu cruzamento com um outro, isso não significa que possa ser esse fito cumprido por uma infiltração do estranho na esfera do habitual. Mais: quanto mais surpreendente e inesperado for esse grau de estranhamento, mesmo que leve a um intervalo de tempo maior no seu desvendamento (mais do que de descodificação, pois se por um lado não há código, a chegada ao sentido global não é analítica e cumulativa, mas súbita – só retrospectivamente é que se reconstrói a sua assunção), maior é a sua eficácia e força. Ora o grau desta operação em Cronin é fraco, tal qual o da sua ordem de autonomia dos seus trabalhos. Se existem alguns rostos e retratos que têm uma valência própria, e alguns dos trabalhos que apresentam estas metáforas, como se costuma dizer, “falam por si”, a esmagadora maioria dos trabalhos não parece poder sobreviver em autonomia dos textos com os quais se relacionam. Basta ver a quantidade de imagens cuja leitura do título do artigo que acompanhavam ilumina e explicita o sentido da imagem, arrancando-a de uma pouco clara nébula de significado. Podem ser belas e até virtuosas, mas não possuem, muitas vezes, a sua própria língua (neste sentido, os rostos criados nas colagens de Hanoch Piven são bem mais eficazes e eloquentes).
Não obstante, há de facto a criação daquilo que se chama em inglês, “body of work”, no sentido de facto de “corpo”, algo que é organizado e reconhecível enquanto tal. Um grau de diversidade considerável mas que é elaborado no interior de um espaço autoral que lhe é próprio. Competência, sim. Mas não génio.
Nota: as duas imagens que se seguem, tal como a capa, são do catálogo. As restantes são fotografias da exposição. Perdão pela falta de qualidade das mesmas. Agradecimentos ao Ar.Co pela oferta do catálogo.

Cor. AAVV (Casa da Cerca/Ar.Co/Centro Português de Serigrafia)

Este projecto consiste num convite feito pelo Ar.Co a um grupo de 15 ilustradores portugueses – a maior parte afecta a essa escola, mormente ao Departamento de Banda Desenhada e Ilustração, enquanto professores e alunos – para criarem cada um uma ilustração associada a uma só cor, tendo como objectivo uma edição limitada de serigrafias pelo Centro Português de Serigrafia. O projecto contou ainda com João Paulo Cotrim como mentor e prefaciador, tendo contribuído ele mesmo com um belíssimo e poético texto sobre o modo de comportamento das cores, para além da sua dimensão perceptiva.
Aliás, no fim do catálogo – que por razões óbvias não pode dar conta da riqueza táctil das próprias serigrafias expostas na Casa da Cerca, onde também se apresentou a obra de B. Cronin, e as reproduções neste post ainda tornam mais problemática essa tradução – surge uma definição científica, a qual demonstra, para surpresa do inscinte, que a cor é aquela que não está lá, quer dizer, é aquela que é devolvida pelo objecto, que não é por ele aceite. Ora o problema nesta junção e produção particular está precisamente naquilo que é recusado, e não na força que poderia ser criada. Apesar de João Paulo Cotrim alertar que este é um grupo de “desenhadores radicais livres”, os quais “querem contar histórias, e começaram a criá-las”, esperaríamos que existisse uma gravidade mais ciente que estruturasse todas estas ilustrações em torno de um centro coeso, que as iluminaria como um todo coerente.
O que acontece é vermos uma simples agregação de, de facto, desenhos livres, e em que cada uma das cores atribuídas e cumpridas por cada um dos artistas poderia praticamente ser permutada por uma outra qualquer, sem se perder qualquer da força dessa mesma ilustração. Ou seja, as forças que elas possuem não derivam da cor com que se reveste. Tiago Manuel, com o azul petróleo, apresenta uma esquemática e icónica apresentação de contornos ecológicos bastante claros, Daniel Lima monta uma breve cena de taberna em torno de álcoois que imaginamos plasmados ao roxo ameixa (infelizmente a reprodução no catálogo corta uma das personagens precisamente na zona do olho, levando a uma pobre percepção e devolução do mesmo), e Filipe Abranches mostra um homem que arrancou um olho do seu corpo enquanto é observado por um cacho de olhos sem corpos, talvez como quem deseja se desfazer de uma melancolia, a qual, como o mais alheado passado, é sépia [um efeito freak muda a cor do jpeg que aqui tenho]. De resto, nenhuma das outras ilustrações parece seguir os trilhos exactos das cores que têm.
Num tempo em que a esmagadora maioria destes autores, quer no que diz respeito às ilustrações e às bandas desenhadas, publica a preto e branco por razões que se prendem não tanto com sobretudo com circunstâncias económicas, mas antes traduzindo-se num gesto político, de oposição em relação às “expectativas do mercado”, como recusa de uma espectacularidade visual superficial, como independência, esperar-se-ia que esta oportunidade, vincadíssima, em explorar a cor, se tornasse mais explícita (é claro que há excepções, Miguel Rocha e Maria João Worm sempre exploraram a cor nas suas bandas desenhadas, e significativamente, André Letria desenha com elas antes de desenhar com o lápis...). Diniz Conefrey, num dos episódios do Verbd, afirmou “usar a cor não como um complemento da narrativa - um complemento que até poderá ser secundário mas que acompanhe harmoniosamente a narrativa - não, [mas em] que a cor tenha uma expressão narrativa em si”. Conefrey, tal como Sfar, e Breccia, e Mattotti (cada um com as suas diferentes valias e naturezas), são exploradores tão exímios do preto e branco como do trabalho a cor, mas tornando-a como que uma personagem por direito próprio. Uma atitude inversa, mas igualmente válida, é a utilização psicadélica da cor pelos autores afectos ao Fort Thunder, mas os quais trabalham antes um uso quase aleatório das cores disponíveis para um excesso crítico da linguagem que empregam. Claro que existe depois o banalíssimo emprego das cores dos mais normalizados trabalhos do “mercado”.
No que diz respeito a este projecto, estamos mais próximo de uma aleatoriedade não-significativa do que qualquer outra coisa. Todavia, dessa expressão, e mais, associada à expressividade específica permitida pela serigrafia, apenas parecem tê-la seguido Maria João Worm – que é quem mais abdica da criação de um gérmen narrativo para criar uma sugestiva imagem dialogante entre o violeta (a cor que lhe pertence) e um rosa – e André Letria – com uma cabeça composta por tubos/esparguete/tripas a bordeaux, como que prometendo mas ao mesmo tempo sustendo o sangue que deseja expelir-se.
Nada disto quer dizer que não existam desenhos que, em si mesmos, sejam pejados dos seus valores próprios. Susa Monteiro (lima) continua na sua exploração de momentos que têm tanto de oníricos como de melancólicos, Nuno Saraiva apresenta uma variação de um famoso personagem através do seu conhecido humor sexual, André Carrilho presenteia-nos com uma brevíssima mas intensa cena urbana em Lisboa. No entanto, o que parece estar ausente é esse elo férreo e indissolúvel entre a figura e a sua cor. Não, há antes uma relação ténue. Por outro lado, alguns autores – sobejamente conhecidos e com um trabalho magnífico e regular em várias plataformas – apresentam aqui alguns dos seus trabalhos individualmente menos fortes, o que não abona a favor do gesto colectivo.
É como se um prisma tivesse separado o raio em todas as cores, mas estas se esquecessem de ter pertencido a uma mesma e unida origem...
As serigrafias tiveram uma edição, de 100 exemplares cada ilustração, e prevê-se que venham a ser comercializadas pelo Centro Português da Serigrafia. Colocamos aqui apenas as imagens que conseguimos colher, esperando que possamos acrescentar as restantes num futuro próximo.


17 de julho de 2008

AAVV. 4 fanzines (Stratégie Alimentaire)

Estes quatro fanzines são todos editados pela mesma casa, sendo todos da colecção “33/2”, de um mesmo formato, sob os auspícios de Guillaume Soutlages e amigos, projecto agora descontinuado mas que viverá seguramente sob outras máscaras. Os trabalhos de cada um destes fanzines percorre um estilo e uma estratégia muito diferentes, mas julgamos ser possível encontrar algumas características comuns que fazem adivinhar uma comunidade de, pelo menos, uma vontade. A desconstrução dos corpos humanos (e outros) é uma constante, assim como a exploração das várias violências possíveis de exercer na cidade dos homens, uma permanente angústia sob o peso de um inimigo não-identificável, a utiliazção da linguagem com um fim ora irónico (apropriando-se do jargão publicitário, por exemplo) ora melancólico (uma poesia simples, de uma enunciação de uma perda, um desvio, uma distância), e a implícita crítica à normalidade expectável pela sociedade. Cada um, como dissemos, de modos distintos, acabam por querer fazer convergir nessa direcção comum os seus gestos.
Vague à larmes. Noémie Barsolle. Apesar deste ser o volume, dos quatro, que podemos afirmar mais narrativo, sem grandes titubeações, não estamos porém próximos a uma história absolutamente linear. Entendemos existir uma personagem principal, uma mulher, que sofre os ataques de uma outra personagem, e que esse ataque se desdobra ou faz sentir de múltiplas maneiras, mas todas descritíveis como as da dissolução do corpo. O rompimento dessa violência pode vir de fora (arrancar o coração, excreções fisiológicas, abertura do crânio) mas também interior (súbitos desejos, um peso insuportável da memória) ou em comportamentos abjectos (a queda num consumismo desenfreado, de álcool, de comércio). Pequena parábola da condição feminina, enformada pela e presa numa “onda de lágrimas”? Ideia circular esta, a de chorar a própria onda que nos transportará e, por isso, nos faz chorar. A limpeza, o enxugamento é, sempre, impossível.
Happy End. Samuel Mann. Depois de um pequeno texto (poema) introdutório, segue-se uma procissão de personagens díspares, todas elas sofrendo violências indizíveis, algumas delas com nome – o sado-masoquismo, a conformação, o desporto, a uniformização – outras novas – cabeças desaparecidas, monstros que saem do interior do corpo, escoriações a céu aberto, deformações únicas. Muitas destas personagens ostentam sorrisos exagerados, como se não notassem, ou quisessem disfarçar, ou não se apercebessem mesmo todas essas violências em seu torno e até mesmo dentro de si. Há mesmo um casal que se beija, alheio ao vórtice que os consome e às restantes personagens. Este vórtice surge, estilizado, noutras páginas, mormente na do centro, adivinhando-se assim um exercício curioso e circunscrito ao livro de tressage, uma união dos motivos visuais de um livro que, mesmo nesta instância, nos aproxima de uma qualquer ideia de narrativa, de princípio organizador. O título promete que, seja qual for o caminho percorrido, o fim está garantido.
L'École de la terreur. Maji Monoï. Também neste livrinho o título ajuda a construir um fundamento no qual colocamos cada uma das imagens do seu interior, que parecem ser autónomas. Numa primeira sequência, claríssima, numa apresentação icónica e como que retirada de um manual de instruções, vemos alguém a pelar uma batata, e depois a integrar nela teclas de uma calculadora. Depois corpos humanos em diagrama, preenchidos no interior por batatas-bactérias. Surge a primeira instrução: “Escolha. Depois valide”. Então dá-se início a uma sequência aparentemente ilógica de imagens, algumas com graus de associação débeis mas seguros, outras trazendo à tona todo o estranhamento possível. Famílias felizes em frente ao televisor, dedos cortados como batatas em palito, uma catástrofe de uma multidão numas escadas rolantes, a pulseira electrónica de um criminoso ligada à central da polícia e a promessa de “tolerância zero”. Que escola é esta? A de toda a França contemporânea? A das nossas cidades modernas? Aquela onde somos treinados até ao ponto de julgar estes comportamentos abjectos, estas aberrações, como parte normal e integrada nas nossas vidas? A contabilidade do tempo humano absolutamente regrada pela máquina, seja esta evidentemente policial ou mais abstractamente “natural”, “feliz”, é, ou parece-nos ser, o mote deste livro. O terror não está na representação, mas no que fica depois da sua digestão.
Litiére. Guillaume Soutlages. Curiosamente, este é um livro nostálgico, funéreo, dedicado a Miette, “esteja ela onde estiver”. Talvez seja uma gata perdida, ou morta. Deste gesto, Soutlages apresenta variações sobre cuidados a ter com os animais de estimação, apropriando-se de material publicitário ou manuais de instruções, desenhos que parecem ter sido “ao vivo” frente a uma panóplia de animais, corpos deformados que parecem ter saído de uma enciclopédia médica medieval, medalhões com close-ups a acções sobre corpos mas inidentificáveis, e ainda pequenos textos que parecem lidar com uma qualquer angústia e a consequente esperança, mas sobre algo que nunca é finalmente identificável. O que fica? Uma “liteira” literal, um espaço de imundície e coisas deixadas para trás, como se se tratasse de um pequeno e rápido luto, sem quaisquer necessidades de narrativizar essa perda ou de impor maior significado onde o próprio ser é suficiente.

Nota: agradecimentos a André Lemos, pelas ofertas e empréstimos.

15 de julho de 2008

Reticências. AAVV do Ar.Co (Instituto Superior Técnico Press)

Serve o presente post para informar que a publicação/projecto Reticências, do Instituto Superior Técnico, em colaboração com o Departamento de Banda Desenhada e Ilustração do Ar.Co, apresenta vários trabalhos de alguns dos alunos desta última instituição, sobretudo ilustrações, apesar de um ou outro exemplo de banda desenhada (numa ligeira fronteira entre ambas as áreas). Conta-se com Oscar Martinez, Joana Silvestre, Tiago Martins, Maria Imaginário e Vasco Costa Martins.
Além do mais, tive o prazer de ser convidado para escrever um pequeno texto para essa mesma publicação. Uma vez que o tema de trabalho era a Utopia, escrevi umas "Notas tópicas sobre ideias utópicas", que pode ser consultado na íntegra aqui.
O desenho aqui mostrado é da Maria Imaginário. A capa é apenas a uma cor, mas com um acabamento num verniz diferente, o que impede um scan de qualidade. Espero que a foto seja suficientemente clara para desvendarem o título e o trabalho de design geral...
Boa leitura.

13 de julho de 2008

Cabeça de Ferro. AAVV (Imprensa Canalha)

Ao contrário das grandes editoras que rapidamente descobrem qual o nível de homeostase em que desejam ficar – a que se dizem obrigadas pelas “leis do mercado”, a “fixação de públicos”, as “responsabilidades sociais” – e de que na esfera da banda desenhada e ilustração em Portugal se pautam sobretudo pela mediocridade (no seu sentido exacto, algo feito a meio), é sobretudo em alguns dos projectos das esferas ditas alternativas, independentes ou seja o nome que se lhes desejar dar que se encontram crescimentos exponenciais a cada um dos seus gestos editoriais. A Imprensa Canalha, sob o comando de José Feitor, é um desses exemplos. Creio numa democracia e numa acessibilidade e numa necessidade de apreciar todas as esferas e todos os níveis de produção e proficiência da banda desenhada. Noutras palavras, “cada macaco no seu galho”, e existem tantos bons exemplos de produção mainstream como de esferas menos comuns. Todavia, apenas de vez em quando surgem publicações que podem, e devem, ser cobertas por um entusiasmo visível. Cabeça de Ferro é um projecto que irradia desse entusiasmo e, em todo ele, até mesmo enquanto objecto-livro, merece o nome de soberbo.
Cabeça de Ferro é um livro que reúne o trabalho de dezasseis ilustradores e criadores de banda desenhada que respondem ao desafio de Feitor em ilustrar, da forma mais livre e aberta possível, a ideia da Revolução Industrial. Alguns contribuem com apenas um ou dois desenhos (Richard Câmara, Joana Rosa Bragança, Júlio Dolbeth, Pedro Burgos, José Cardoso, João Maio Pinto, Pedro Lourenço, Rui Vitorino Santos, Rosa Baptista), outros com uma série deles, mas individualizados e não organizados sob algum princípio (Filipe Abranches, André Lemos, Bruno Borges, e o próprio José Feitor) mas com exemplos de excepção (em termos materialistas): Luís Henriques com um corpo de duas unidades irmanadas (uma grua a vapor e uma carruagem de carregamento sobre carris, intituladas com títulos e versos de uma cultura espiritualista, desenhos sujos de carvão, quer o representado quer o do próprio desenho: o que se imiscuiu no quê? A cultura sobrevivendo na vida maquinal, ou as máquinas evolando-se graças à força dessas frases? Ou as frases tornando-se fórmulas empacotáveis pela indústria?), Jucifer com uma banda desenhada curiosamente equilibrando um desenho e narrativa claros como um sentido hermético e o Dr. Orango com uma história sobre o automobilismo contada sob dois caminhos paralelos, um com silhuetas das ruas que foram sendo paulatinamente invadidas pelos automóveis, espalhando um caos muito particular e a possibilidade do acidente, o outro com desenhos mais estilizados visitando as várias facetas da indústria automóvel no que têm de mais avançado e ridículo, de nostálgico e de apocalíptico.
Tal como o texto introdutório do arqueólogo Luís Luís - que prima menos por uma aproximação historicamente engravatada e mais por um entendimento mítico do advento da tecnologia (no sentido de mito como uma história capaz de criar imagens sugestivas de uma verdade para além das dos meros factos) – implica, a Revolução Industrial não apenas teve um papel de alteração das condições sócio-económicas e políticas sobre os países em que se sentiu (e graças ao poder desses países, sobre a dita civilização global), mas “uma alteração radical da vida humana”, cujos frutos são sobretudo a grande submissão a toda a cultura electrónica em todos os seus avatares. O facto de estarem a ler estas linhas neste blog são parte integrante desse imenso fenómeno, em tudo o que ele tem de distância e de aproximação.
Os autores convidados tentam responder as essas mesmas questões de modos muito diversos, em termos de tons, humores ou matérias. Há um desenho de Pedro Lourenço que representa uma respigadeira colhendo umas plantas, observada por um coelho. Sobre as costas dobradas dela ergue-se uma plataforma industrial e os longos pescoços de guindastes. Qual dos elementos impera aqui? Será o peso da indústria que a faz vergar as costas, ou será ela o rochedo necessário para sustentar a fábrica? Ou serão antes ambos os elementos parte de um todo indissociável? Estas ambiguidades e cruzamentos de esferas que se julgariam antagónicas são repetidamente visitados pelos artistas aqui agrupados. Muitos deles mostram fases e processos das chamadas indústrias de transformação, mas nalguns casos não se percebe muito bem o que é transformado em quê – como nos casos de alguns desenhos de André Lemos e Rosa Baptista – e uma ciborguização incipiente ou o assalto das máquinas ao corpo humano (ou o corpo bestializado pela indústria) é patente em muitos dos desenhos. Desde a intricada colagem gráfica de Richard Câmara que preserva os rostos dos animais no gesto mais comodificador da indústria às mínimas construções de Bruno Borges que dão conta da redução ad absurdum possibilitada cada vez mais pelas novas tecnologias (vejam-se as febres cíclicas, ilustradas pelo mais recente iPhone e a prevista dependência existencial que Kirby desenhou entre os seus “novos deuses” e a “mother box”), a experiência total da leitura (há um texto composto por estes desenhos, estas ideias) de Cabeça de Ferro leva a esse balanço entre dois pólos que, no fundo, estão presos ao mesmo espaço: aquele das condições de possibilidade do mundo maquínico, industrial, modernizado, enfim, de ferro.
Tal qual o projecto de que falámos anteriormente de Turley, Abranches e Mocho, este livro vem acompanhado ainda de uma “Amálgama Sonora industrial”, um CD de colagens sonoras (algumas delas de outras colagens sonoras anteriores), de Filipe Leote (e um remix de Distimia) que deve acompanhar a fruição do livro. De um modo claro, os fantasmas que observaram os gestos dos artistas nos seus desenhos impera por sobre as escolhas dos elementos captados por Leote e o modo de ele os juntar num contínuo.
Tratar-se-á de uma tendência, moda, afinidade? De uma mera coincidência? De um espírito comum em querer estabelecer intertextualidades e cruzamentos entre artistas e vontades? Não haverá apenas uma resposta, e nenhuma delas certamente final. Mas o seu cotejamento leva-nos a poder indicar uma leitura. se nesse projecto debatido havia uma preocupação em ancorar cada desenho e cada canção nos poemas de Turley, criando-se assim um ciclo de unidades que compõem um quadro final, aqui trata-se antes de um contínuo que deseja fazer antes fazer emergir uma ambiência, como uma neblina subrepticiamente surgindo. A sua maior fragmentação de elementos – um maior número de desenhos e de participantes, logo de individualidades, mas também de aspectos comuns – leva a um ritmo maior e, por isso, de uma fluidez diferente.
José Feitor consegue mostrar aqui – o que se adivinhava de projectos anteriores, e de outros que se anunciam – as suas capacidades de maestro harmonizador. O tema não serve como mera desculpa de agregação, mas como semente organizadora, maquínica, orgânica, de convergência de todos estes artistas num propósito que, mesmo que o não tenha sido de partida, é, na chegada, comum .
Nota: sem apelo desta feita, remeto a quem deseje ver imagens do interior deste livro a clicar os links ou a visitar o blog oficial do livro. Todas as imagens procedem de lá, ou dos blogs dos artistas, excepto a da capa, feita da cópia adquirida.

Café Budapest. Alfonso Zapico (Astiberri)

Alfonso Zapico cria esta história num tempo em que já não se coloca a questão da dúvida da possibilidade da banda desenhada retratar e dedicar-se a temas controversos, lamacentos e moral e politicamente dúbios como o da questão da Jerusalém dividida, e das suas imeditas origens e consequências. Há todo um caminho de convergência já cumprido por obras de arte em torno de temas análogos, desde os filmes O Pianista de Szpilman/Polanski e Munich de Spielberg a um batalhão inteiro de livros (Arendt, Steiner, Levi como marcos e estrelas centrais), mas passando igualmente pela banda desenhada: Spiegelman, Sacco, Sfar, Squarzoni, o colectivo Actus Tragicus, Katin... Numa ocasião em que se discutiu a obra Palestina de Joe Sacco, as discussões mais vivas desviavam-se de uma proximidade exclusiva dos livros em si para nos perdermos nos labirínticos e pedregosos meandros da dita “questão palestiniana”. É impossível não querer tomar partido, é impossível não procurar um esforço de equilíbrio, é impossível a serenidade absoluta. A ficção, e a mormente a banda desenhada (por empregar um meio ainda confundido com o seu todo, e por obrigar a uma proximidade estranhamente familiar da parte do leitor), que passe de um modo ou de outro por estes temas criará sempre um desconforto profundo. Não é propriamente uma distracção de entretenimento que aí se encontra, mesmo que não se a buscasse desde logo. E ou há uma colagem, simpática, ao que se desvela no livro, ou uma aversão, antipática, ao proselitismo político que nos impõe.
Preferimos acreditar que é possível atravessar Café Budapest com alguma neutralidade (ligeiramente inclinada para um lado), e acreditar igualmente que o autor pretende ser neutro para com uma questão histórica, política, económica e, em última instância, religiosa, que de tão longa acumula mais zonas cinzentas e de dubiedade do que de claras distinções de “bons” e “maus” e ainda de “soluções”.
Café Budapest acompanha o jovem húngaro, Yechezkel, um virtuoso violonista, sobrevivente da II Guerra Mundial, e a sua mãe, sobrevivente de Birkenau, na viagem que os leva a Tel-Aviv para se juntarem ao tio Yosef, sobrevivente das lutas sociais do advento da República Soviética. Mas estas três sobrevidas serão aproveitadas de modos bem diferentes, algumas delas mais sofridas que as outras. O jovem Chaskel (diminutivo familiar) descobrirá aí, no café do seu tio, que é possível trabalhar e conviver com goyim e até com árabes, o que o surpreende muito. Mas essa surpresa de sobrevivência e convivência aumentará ao longo do tempo, quando ele próprio cria afinidades com um médico, Hassan, que toca violoncelo e, mais, quando se enamora, apaixona, envolve e chega mesmo a unir a sua vida a uma jovem muçulmana, árabe, palestiniana, Yaiza. Estas relações não são construídas numa curva ascendente suave, mas ante através de sacões, recuos, dúvidas, sombras, medos, e são esse o sal que tempera a melodia humana que Zapico vai fazendo discorrer ao longo das mais de 150 pranchas deste livro.
Todos esses elementos que interrompem o que poderia se uma simples curva desenhada pelo amor provêem de todas as direcções que levaram ao aparecimento de um novo Estado, o de Israel, numa terra em que, não obstante a vontade uns, tinha já outras pessoas a lá viver com vontades próprias. A série Le Chat du Rabbin, de Joann Sfar, é um exemplo de uma banda desenhada que quer mostrar os espaços de aliança e amizade existentes entre um espaço partilhado por religiões diferentes. Palestina, de Joe Sacco, quer dar o retrato da face da Intifada, dos cansados de uma guerra sem quartel e à qual respondem com outra guerra. Café Budapest quer retratar a crux do momento de viragem. Os precisos momentos em que de uma resolução votada nas Nações Unidas, passa a dividir-se aquilo que já existia unido. Uma das personagens do livro, Hassan, emprega um símile forte: “Imagina dois irmãos que vivem na mesma casa, cada um com o seu quarto e que continuam convivendo: isso, sim, é partilha. Mas se andam de quarto em quarto arrancando a pele um ao outro às dentadas e sujando as paredes com o seu sangue, isso não é uma partilha, é a barbárie!”. E são os primeiros passos dessa barbárie, no momento em que um dia para o outro vizinhos se deixam de cumprimentar e a trocar acenos para passarem a sentir ódio, que enquadram a vida de Chaskel e os seus.
Uma vez que é esta a personagem principal, há uma focalização que inevitavelmente apresenta um grau de proximidade e simpatia maior para o lado judeu, ao qual se tornava possível retornar à terra à tanto tempo perdida. Mas como se afirmou anteriormente, as alianças e aprendizagem de Chaskel junto aos árabes e ingleses reequilibra essa simpatia, tenta minimizar o eventual sectarismo, pacifica através do doce açúcar do amor (mesmo que ficcional) a barbárie que tudo fecha. O objectivo não é tomar um partido, por assim dizer, nem apresentar a história, nem explicar ou contextualizar nada, mas antes iluminar com essa luz da guerra as vidas ficcionais destas personagens.
Como explica o prólogo de José Cuervo, este é o primeiro livro do asturiense Zapico a ser directamente apresentado aos leitores espanhóis (e agora, por aqui, portugueses), mas o autor teve experiências anteriores quer no mercado editorial e jornalístico quer no francófono, com La guerre du professeur Bertenev. Em comum aos dois livros está um interesse nas fronteiras entre os conflitos (esse outro livro passa-se na Guerra da Crimeia), quer aquelas que se salpicam de sangue quer aquelas que descansam à sombra de alianças improváveis mas férreas. As duas imagens-bandeira que se escolheram para este post mostram como o autor opta tanto por mostrar através de pranchas livres, de figurações curvilíneas, sem separação de espaços e personagens, as associações possíveis de uma comunidade livre (pela harmonia da música, da amizade, onde ambos os personagens, de olho fechados, se olham profundamente um no outro) como opta pela união no chão da morte, e a quadrangular e militar divisão entre cada uma das facções sanguinárias e fundamentalistas e odiendas e fanáticas (mesmo de olhos bem abertos, não vêem nada além do ódio e da sua satisfação). Os seus desenhos estilizados inscrevem-nos nesta linha leve da banda desenhada franco-belga contemporânea que procura criar grandes narrativas desta arte: falou-se de Sfar, pensamos igualmente em Blain, Guibert... Nalguns momentos, as passagens entre estados emocionais é demasiado rápida (como nesta prancha em que a alegria entre Chaskel e Yaiza dá subitamente lugar ao medo pelos acontecimentos em seu torno), mas podemos enventualmente aceitar essa rapidez, essa falta de intervalos maiores como a força das circunstâncias que chocalha as emoções de todos de um modo acelerado, violento, mesmo que apenas dentro das almas de cada uma das personagens. Jamais tempo acesso directo aos pensamentos das personagens (através de legendas ou balões), mas as acções a que se entregam, os diálogos, atitudes e até mesmo a figuração dos corpos é eloquente o suficiente para que possamos entender essas flutuações. São legíveis.
Apesar de não o citar directamente, Cuervo parece seguir a lição de Lyotard a propósito do advento do pós-modernismo, no qual se inscreveria este livro, como uma ultrapassagem das grandes (meta) narrativas. A escolha da representação de Zapico recai não sobre os grandes acontecimentos geopolíticos que servem de paisagem (não apenas de fundo como estruturante) às suas personagens mas sobre as vidas destas, as quais querem “viver a única vida de que se dispõe colocando a igualdade humana sobre as diferenças culturais”. Todavia, comos e aventou atrás, com essas “vidas humanas” procuram-se compor narrativas grandes, em termos de género diegético, na banda desenhada.
Mas, no fundo, o peso dessas diferenças, quando destemperadas pelo ferro e o fogo da guerra, são mais fortes e, ainda que não lancem estas personagens numa irreversível tragédia, força-as a pequenas crises, momentos de indecisão e a uma fuga final que resolve a questão premente da sobrevivência ainda que não a da existência, mais profunda.

9 de julho de 2008

A vara do açúcar da meia noite e nos bordos dos peixes. Ilan Manouach (Opuntia Books)

Este é o segundo livro da Opuntia lançado na última Feira Laica (o primeiro é este).
De Ilan Manouach já havíamos dado conta do seu último pequeno projecto/catálogo, e da sua participação na D&I, enquanto esperamos pelo seu novo livro de maior fôlego, Frag e ainda um outro projecto em colaboração de que daremos conta no seu tempo devido. Mas no centro da sua intempestiva produção, à margem das linguagens mais contornadas e integráveis em territórios mais balizáveis, Manouach vai participando em publicações colectivas, pequenos trabalhos e zines. Esta é a sua participação na Opuntia. Aparentemente, trata-se de uma colecção de desenhos sem quaisquer ligações de maior entre si, quer dizer, ligações estilísticas ou temáticas ou mesmo narrativas. Uma série de desenhos, não uma sequência. Essa leitura não está errada, de modo algum. Uma sua descrição objectiva seria assim satisfatória. Todavia, há algo mais sob essa superfície, mesmo que essa seja uma superfície difícil de romper e o oceano que ela oculta seja intransponível.
Bastas vezes repetimos a ideia de que não cremos numa dissolução entre uma forma e um conteúdo numa qualquer obra de arte (que se digne desse nome). Se em termos analíticos é realmente possível uma aproximação, titubeante, passo a passo, meio-medrosa - e como convém em certos círculos, como no académico tout court, naturalmente – agora sobre o modo como a apresentação formal é cumprida, agora discutindo os seus temas, matérias, conteúdos, é apenas quando se absorve o sentido holístico da obra é que ela se torna rediviva: ela vive num momento da criação, atravessa o limbo da transposição para o mundo da leitura/contemplação/auscultação/assistência, enfim, fruição, e é aí que ganha vida novamente, ou mesmo cumpre a sua prevista vida. E ao longo das leituras, do tempo, dos confrontos, vai ganhando e reformulando essa vida.
De acordo com o George Steiner de Presenças Reais, nas obras de arte não existe propriamente um movimento cumulativo, de crescendo, dos elementos constitutivos e analisáveis (parcialmente)– digamos, dos fonemas e das frases, das linhas e das manchas – até se atingir a toda a obra. isto é, não há uma ligeira e mapeável mudança de graus, mas uma súbita, inanalisável mudança de natureza, ou na palavras do filósofo citado, o “fosso” entre a análise e o “processo de compreensão”. Fala ele ainda da “incomensurabilidade do semântico”.
A vara do açúcar da meia noite e nos bordos dos peixes é uma dessas obras de arte deste nosso pequeno território invisível no concerto das artes que transporta em si essa incomensurabilidade de um modo tal que, não obstante a sua própria natureza, dá a ver essa invisibilidade. É como um branco intensivamente visível que sublinhasse uma ausência. Não é que haja uma ausência de sentido, mas antes a ausência de uma capacidade em fechar esse sentido.
Ainda segundo o mesmo autor, Steiner, antes das crises acarreadas pelo advento da Modernidade, e da ideia de que o racionalismo tudo explicaria e todas as sombras dissiparia, “o Logos e o cosmos encontravam-se”. Isto é, havia uma qualquer correspondência quase directa entre a palavra que nomeia e o objecto que nomeava. Depois a linguagem começou a imiscuir-se na realidade como entidade independente, passa a tudo discernir e explicar (“tirar as pregas”, tornar o pano liso, visível): “A viagem faz-se na e através da linguagem”. Ilan Manouach parece, contínua e cumulativamente, atravessar ou recuar esse filtro da linguagem para atingir um espaço semântico em que essas correspondências são novamente consolidadas. Em termos históricos, culturais, é impossível fazê-lo de uma maneira inocente, sem que passe pelas ideias pelas quais fomos treinados, sem usar a linguagem como instrumentos de esclarecimento, mesmo quando metafórico (que mais do que um escape, é uma elucidação). Por isso o autor grego fá-lo através de uma desconstrução da linguagem em primeiro lugar, sendo o título o modo extratextual pelo qual nos aproximamos em primeiro lugar ao livro.
Na capa, o que se lê é “AAAOCCRA/EAOENSODS/OPIE”. No interior da capa, vemos uma variação do desenho, e outras letras desconexas, algumas tapadas pela tinta. Ao virarmos para a segunda página, deparar-nos-emos com um segundo título, que lê “VRDAUAD/MINTEOBRO/DSEXS”. Só olhando a ficha técnica, a vermelho, entendemos que todas essas letras se combinarão, nas posições exactas que têm, para soletrar A vara do açúcar da meia noite e nos bordos dos peixes. O título é em português mas há algo que não funciona, não faz sentido, ou pelo menos um sentido no qual possamos todos concordar e compreender. Aí começa um primeiro processo de desconstrução, se não o segundo, uma vez que se trata de um trocadilho ou “tradução selvagem”, que ronda em torno de uma ideia obscena e divertida e que recordará o jogo de Duchamp em L.H.O.O.Q.
O que se segue é a série de desenhos de vários objectos, paisagens, rostos, animais, em variadas técnicas de desenho, de cor, de reprodução, ou variações, como as do “rochedo-nuvem” da capa (reproduzido acima). Existem corpos humanos, banheiras, corpos em banheiras, mas nenhuma das personagens parece repetir-se, nenhuma delas para estabelecer qualquer tipo de contacto entre si, desse modo mais vulgar que a banda desenhada estabelece. Isso não quer dizer que não exista contacto. No centro da publicação, há um desenho (aqui reproduzido), a cores, de uma pernas saindo de uma banheira. Esse desenho está reproduzido num papel transparente, e permite ver os outros desenhos sob essa folha, de um lado um homem (?) com um pano-máscara sobre o rosto, do outro uma mulher sorrindo e fazendo uma festa na queixada do que parece um tapir. O tipo de contacto que essas imagens fazem (cuja reprodução aqui, apesar de má qualidade, dá conta) é análogo ao contacto que é transportado para o resto das imagens: existem linhas ou manchas ou cores ou figuras que poderão parecer ecoar umas nas outras, num diálogo surdo mas directo, que as comprimisse não só no espaço em que se encerram – o livro – mas num qualquer mundo em que o sentido que encerram é total. O oceano a que se aludiu acima. É preciso ir navegando à bolina com Manouach, contra os ventos de um sentido mais literal e imediato, tenta-se (talvez falhando, talvez seguindo-o) acompanhar o movimento de ziguezague que escapa a essa influência de normalização. Esse acompanhamento, como é natural, deixa-nos um pouco mareados, e só depois do fim da viagem é que nos apercebemos de como se conjugam os seus elementos, atravessando o fosso, para nos ofertar a ideia da sua incomensurabilidade semântica. Mesmo que a linguagem verbal falhe em a transpor e explicar.
(Apetece usar a palavra inglesa "awesome", mas não como um surfista da moda, não, no verdadeiro sentido da palavra, que está cheio e traz assombro, maravilha, e até temor. Que nos ultrapassa, um estranho sublime que nos cabe entre as mãos).

Long Knives through the Grapevine. Les D. Turley, Filipe Abranches e Miguel Mocho (Opuntia Books)

Recordar-se-ão (ou poderão visitar) um post anterior em que falei de experiências que traziam a linguagem da música para a das narrativas ou dos núcleos significativos de imagens. A experiência mais antiga que conheço desta natureza – sempre uma natureza ainda mais compósita que a da banda desenhada e extremamente múltipla, pois faz convergir numa só apreciação durações diferentes e até contraditórias, fruições paradoxais dos seus elementos distinto, e veículos que parecem não poder concorrer num mesmo ritmo – são as Cantigas de Santa Maria, pelo menos seguramente editadas (no sentido contemporâneo e anglófono da palavra) por el-rei Alfonso X, o Sábio, dos reinos de Castela e Leão, lá para o século XIII, e em galego-português: nesse códice (de que existem algumas versões díspares), coleccionam-se várias composições poéticas e musicadas dedicadas à Virgem Maria, e aos seus milagres, canções que se apresentam, portanto, numa dimensão textual e numa dimensão musical (na notação do tempo). Mas para além disso, o que torna esse(s) tomo(s) único – mesmo hoje – é que era acompanhado por iluminuras de uma proximidade às acções e aos textos das canções assombrosa: as páginas eram compostas por uma série de vinhetas organizadas regularmente e consecutivamente, expondo a acção descrita na canção como se de uma banda desenhada moderna se tratasse (ou prevendo-a? ou sendo-a já?), com um espaço reservado a uma citação do texto. Mas o mais importante era a relação implicada que tinha a letra da canção, a sua melodia, e as imagens narrativas, compondo um todo o qual, ainda que decomponível, criava de facto um todo apreciável holisticamente.
Variadíssimas experiências existirão mais ou menos próximas, mais ou menos análogas a essa como as indicadas no post indicado acima. Penso que Long Knives through the Grapevine é uma dessas experiências. Apesar de o nome não se encontrar na capa, nem no título deste artigo, tudo começa e é conduzido por André Lemos, editor dos Opuntia Books. A descoberta deste obscuro mas real poeta norte-americano, Les D. Turley, é dele, a vontade de com ele desenhar também (podem mesmo descobrir alguns dos desenhos feitos por Lemos sob o som dos versos de Turley: procurem nos arquivos entre Junho e Agosto de 2006, ou escrevendo “Turley” na busca interna ao seu blog). Depois, seguiram-se os convites, divididos mas a convergir, a Filipe Abranches para que produzisse os desenhos, e a Miguel Mocho, aqui na vertente de músico multi-facetado mas unificado na excelência, que produzisse um domínio musical. O resultado é este objecto: oito poemas de Turley não original inglês e em traduções portuguesas (de Marta Elias), com oito desenhos de Abranches e um CD com oito faixas de Mocho.
A leitura, observação e auscultação é facultativa e, na verdade, em termos físicos, jamais pode ser simultânea, mas o cumpri-la, voltando atrás, lendo os poemas à medida que Mocho os canta, ou escutando a canção ao mesmo tempo que se percorrem as linhas frenéticas dos desenhos de Abranches, ou saltando de um verso para o texto, é obrigatória. Os poemas de Turley são de 1968, e um especialista saberá identificá-lo, ou integrá-lo melhor, seguramente, mas creio que caem fora daquele contínuo estilo bombástico e musculado que começou em Whitman e que continuou com a beat generation. São todos composições curtas, de verso branco, espaçado, falsamente coloquial, com um equilíbrio muito particular entre o que parecem ser frases absolutamente diárias e metáforas (como todas as felizes, na poesia) inesperadas – “Feeling better/like a recently pumped up tire”). Se há resquícios de algum deus a quem Turley se entrega, é muito menor que os menores do costume (“Pray thee O Lord of triangles”). Alguns são mesmo auto-sarcásticos, o que o coloca próximo de Bukowski:
“Today, when thinking hard
about
my life achievements

I babbled to myself

Dumb
Binaire
Cerebral
Journal
Sweet
Word
Political
Vascular

I thought it was a
pretty good description

of past events

of past failures

and past

poetry.”
As canções, com muitos dos elementos mais imediatamente discerníveis da música norte-americana (blues, folk, rock, bluegrass, Tom Waits, uma voz de bourbon, e até uma drinking lullaby: “Dumbness”), decompostos para encaixarem em aproximações de música independente e até experimental (noise, ambiente, lynchiana e até um aroma de drum’n’bass), são uma tradução correctíssima do espírito dessa poesia descomprometida para com as fórmulas, mas capaz de identificar a épica nos cantos mais hodiernos do que rodeia os dias: “Bang, slap and even a/ crying squirrel”.
As imagens de Filipe Abranches seguem o método de trabalho que o tem ocupado nos últimos tempos, uma certa soltura, como se costuma dizer, magistralmente atingida somente por quem atravessou uma estrita disciplina anterior. São desenhos directos, sem uma planificação dolorosa, e que seguem mais uma intenção de quem sabe que a memória de um bom desenho é anterior ao desenho mesmo, e que reside no pulso e no seu domínio. As ilustrações têm um certo peso em relação aos textos, na medida em que as figuras coincidem num ou outro elemento com o que surge textualmente nos poemas. São como que âncoras. Delas surge a interpretação de Abranches sobre os poemas, num ou noutro caso com maior distância, neste outro com maior proximidade (a imagem escolhida ilustra o poema acima citado na íntegra). A continuidade das vinhas do título por todos os desenhos leva a uma segunda leitura do mesmo, pensando que as “facas” possam ser interpretadas então como o instrumento de Filipe Abranches, se não mesmo o seu gesto, como se a linha, mais do que se inscrever, cortassem um espaço que lhes fosse próprio, independente, para melhor dialogar com tudo o resto.