30 de dezembro de 2023

Vale dos Vencidos. José Smith Vargas (Chili Com Carne)

O título do primeiro capítulo, “Brumário”, é todo um programa. Não apenas se refere à época do Outono, de acordo com o calendário da Revolução Francesa, como necessariamente recorda igualmente o livro de Karl Marx sobre o golpe que veria a emergência do Segundo Império, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, e que no fundo poderá ser lido como uma aplicação da teoria da luta de classes mas igualmente a análise da construção de figuras salvíficas e quase-messiânicas a contrapelo a realidade social, económica e política das acções dessas mesmas figuras. Se no caso de Marx se refere a Luís Bonaparte, em Vale dos Vencidos essa figura é a de António Costa. Quer dizer, parece o António Costa, enquanto Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mas não é o António Costa. É “Pedro Gomes, Presidente da Câmara de Merídia”. E no centro de Merídia há um bairro muito antigo, popular, que foi sempre ocupado pelos mais pobres e marginalizados, subitamente tornado apetitoso em termos de real estate para, palavra que me causa cortiçonite no céu da boca, “empreendedores”. Esse bairro é o Vale dos Vencidos, e este livro é a crónica da sua gentrificação.

21 de dezembro de 2023

"Webs of Self, Webs of Meaning" (artigo na RLEC)

Serve o presente post para indicar tão-somente que um artigo académico meu acaba de ser disponibilizado no último número da Revista Lusófona de Estudos Culturais, da Universidade do Minho. Um número dedicado à representação das mulheres na banda desenhada ibero-americana, há dois artigos dedicados à produção nacional, um sobre a antologia Nódoa Negra, sobre o qual também havia escrito (ver aqui) e o meu.

Intitulado "Webs of Self, Webs of Meaning. Three Female Fragmentary Portraits in Post-Digital Print Comics" (em português, "Teias do Eu, Teias do Significado. Três Retratos Fragmentários Femininos na Banda Desenhada Impressa Pós-Digital"; não adoram títulos académicos?), é uma leitura de trabalhos das autoras Ana Margarida Matos, Ana Matilde "Hetamoé" Sousa e Joana Mosi, utilizando um foco argumentativo muito específico - as "contra-estratégias" de Peter Wollen - para auscultar os modos distintos de cada uma delas, mas igualmente o que as une e diferencia de outros autores (homens e mulheres, aqui pouco importa o género), nacionais e internacionais. 

Foi escrito originalmente em inglês, e depois traduzido para português. 

Ficam os agradecimentos às editoras, tradutora e revisores, que ajudaram a que o texto ficasse muito mais legível. 

Poderão aceder directamente aos artigos aqui, carregando depois os pdfs.

13 de dezembro de 2023

Damasco. Lielson Zeni e Alexandre Sousa Lourenço (Brasa)

Se considerarmos a banda desenhada como não somente nos mostrando um mundo (diegético) mas a própria forma como esse mundo é construído (a formação discursiva) e a materialidade deste é tornada opaca – isto é, não se trata somente de uma plataforma transparente para a diegese mas a própria superfície que se torna significativa –, que estratégias de constructibilidade (constructedness) são visíveis em Damasco? A resposta é dada por uma grande diversidade de estratégias visuais e de composição. Alterações do registo do desenho, a cor diminuta, a variedade da composição das páginas (criando como que “secções”, como veremos), a remediação de outros modos gráficos (videojogo, jogo de tabuleiro, manual de instruções, infografia, etc.). Mas qual a razão para tamanha des/estruturação? 

5 de dezembro de 2023

Cthulhu Sadino. Pedro Moura, Marco Gomes, Daniel Maia, et al.

Serve o presente post para dar notícia da existência e disponibilidade do Cthulhu Sadino. Agora que a exposição chegou ao fim, a publicação passa a ter uma existência própria. Este é um projecto de banda desenhada deste vosso amigo, para o qual contou com a camaradagem, paciência e talento dos artistas Daniel Maia e Marco Gomes. É um projecto leve, bem-humorado, espero eu que divertido, e que conta com duas linhas artísticas bem distintas mas espectaculares, complementares e que são justificadas pela narrativa.

Que é Chtulhu Sadino? Bom, descrevi como "paretimologia", em primeiro lugar, porque no fundo responde àquela pergunta que nunca ninguém fez mas tinha no fundo da mente: quem e porquê se desenvolveu a receita do choco frrito em Setúbal? Se reza o mito que essa terra foi fundada pelo neto de Noé, Túbal, haverá alguma relação? Que segredo se esconde na felicidade desse aparentemente simples mas magnífico prato? E é mesmo apenas uma receita? Só? Ou está relacionada com algum ritual antigo? A calçada de Setúbal mostra mesmo ondas, ou serão antes tentáculos misteriosos? No brasão de Setúbal, são mesmo peixes no campo do mar? O tamanho em relação ao castelo não bate certo? Serão monstros marinhos? E aquela vieira em cima, é mesmo uma concha ou é um polvo estilizado com um tentáculo a mais? Muita coisa por explicar, este pequeno compêndio tem as pistas todas... Quando Túbal e os seus intrépidos companheiros chegam à baía do rio Sah-Dom, vieram para ajudar a população de uma ameaça dos fundos dos mares, cuja origem remonta ao avô Noé, no Dilúvio...

4 de dezembro de 2023

Resposta a Ilan Manouach.

Nota brevissima. Uma vez que lancei a presença do texto de Manouach sobre "machine learning" ou "cognição sintética" e a banda desenhada, no site Bandasdesenhadas, eis a resposta de Hugo Almeida:

30 de novembro de 2023

Volta. O Despertar dos Gigantes de Gelo. André Oliveira e André Caetano (Polvo)

A amnésia do protagonista, Campeão, é possivelmente um mecanismo ben trovato para esta saga em particular, uma vez que permitirá que haja uma significativa diferença de tom e géneros de volume para volume, quase até ao ponto da incoerência, mas que depois num cômputo final e global se subsume de novo a uma lógica interna claríssima. Este segundo volume tem a vantagem de poder estar ancorado nos elementos partilhados no primeiro, que podem ou não ser herdados como pequenas pistas esclarecedoras, mas ao mesmo tempo tem a desvantagem de aumentar a incertidude dessa mesma visão global, ainda não atingida aqui.

23 de novembro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 76 - HERMÉTICO (?)


O título deste programa leva ponto de interrogação, pois tudo se inicia com mal-entendidos e depois uma tentativa de esclarecimento do propósito do tema. Dessa forma, inevitavelmente, foi um "slalom" expedito e vivaço. De que serve? Olha, para fazer mais perguntas...

17 de novembro de 2023

Ilustrações de Isabel Baraona para Toda a ferida é uma beleza, de Djaimilia Pereira de Almeida (Relógio D'Água)

Queremos partilhar aqui umas breves considerações sobre as imagens que Isabel Baraona teceu para acompanharem as páginas de um longo conto, quase novela, da escritora Djaimilia Pereira de Almeida. Com pouco mais que cinquenta páginas, este caderninho oferta-nos uma narrativa acompanhada por 19 imagens que com ela estabelecem o que podemos chamar de harmonia enigmática. “Harmonia”, pois a combinação entre um e outras não é apenas física – por mais bem arranjado graficamente que o livro esteja, e está – mas por fundarem uma concordância justa e profunda. Porém, “enigmática”, cujo sentido grego original significa “falar obscuramente”, e há uma trama de invisibilidade, de indecibilidade, que não nos permite naturalizar a sua relação...

16 de novembro de 2023

Balada do Desterro. Zeca Afonso. Teresa Moure e Maria João Worm (A Central Folque/Tradisom)

Não estamos perante uma biografia de José Afonso. Nem tampouco um livro de memórias pessoais, que poderiam passar pela experiência de convívio com o homem, no seu tempo, ou pela encurtada distância que se permitira nutrir através da escuta contínua, íntima e transformadora das suas canções. Não é uma reportagem, reconstruindo-se essa vida a partir dos fragmentos possíveis, de documentos, de partes “favoritas” ou menos centrais. Não é uma hagiografia, que procure transformar um homem, falho como todos os humanos, num ícone que arraste consigo uma utopia que não chegou a ser sequer explicada, quanto mais semeada mesmo. Nem é um acerto, colocando a fragilidade da carne e do quotidiano à frente. 

11 de novembro de 2023

Artigo de Ilan Manouach em "defesa" do uso de I.A. em banda desenhada.


Na esteira de uma relação contínua com o artista Ilan Manouach, de colaboração criativa a inquirições académicas, traduzi um artigo da sua autoria que agora tem vida no site Bandasdesenhadas.com, a quem agradeço desde já a, também contínua, abertura a propostas por vezes fora do escopo do seu trabalho.

O artigo é da total responsabilidade do artista mas, devo dizer, trata-se de algo que me interessa particularmente escavar e compreender, com a maior transparência e o esforço dedicado que lhe conseguir dedicar, limitado todavia pelos meus conhecimentos e até capacidades de compreensão técnica. Regra geral, agrada-me em particular o rigor intelectual de abordar o tema no seu alcance holístico, implicado e multifacetado, que vai muito mais além de um basilar, senão mesmo primitivo e até ridículo posicionamento "contra" ou " favor" - por outras palavras, nem cair numa posição "ludita" nem numa de crente no "solucionismo tecnológico" [cf. Evgueni Morozov] -, sem a necessária discussão de quais facetas estaremos a falar: técnicas, culturais, económicas, políticas, até geoestratégicas, e, acima de tudo, éticas. Pois essa é a questão fundamental: combater o chamado "desalinhamento", e, a questão da "caixa negra" (a.k.a. "blackbox"; a opacidade da construção dos algoritmos que presidem a estes programas). Como escreve Diogo Queiroz de Andrade, "Isto implica ter sempre quadros de tomada de decisão que privilegiem respeito pela dignidade humana, obrigar à não-discriminação e à transparência" (Algoritmos. Uma revolução em curso, pg. 53).

Com efeito, não fui, até ao momento, testemunha de qualquer discussão séria, informada e balizada sobre as potencialidades, impactos e vertentes em que a dita "inteligência artificial" (um termo muito erróneo e problemático) se permite entrosar na criação desta disciplina que tanto apreciamos. Discussão na nossa esfera, sejamos precisos, pois ela é algo parca de equilíbrio e argumentação. Vejo apenas respostas passionais e automáticas, sem demais, julgamentos imediatos, uma muito baixa curiosidade intelectual, e, para mais, presos aos exemplos mais superficiais do seu uso, através de plataformas públicas, gratuitas e em regime das tais "blackboxes" dos prompt-generators disponíveis até à data - de que eu próprio, como é sabido, fiz uso, num trabalho pioneiro na Cais.

Neste momento, encontro-me a escrever um artigo, de natureza académica, que toma precisamente o volume Fastwalkers, de Manouach, como ponto de partida, para tentar compreender que natureza de poeticidade é possível de emergir deste tipo de textos assistidos pela "cognição sintética" (um termo mais certeiro do que i.a.; veja-se o excelente volume Chimeras, editado pelo próprio Manouach), e que nascem de, não apenas de acervos específicos e tratados de dados para treino (o chamado"dataset") mas de algoritmos (protocolos) construídos com exactidão. E que, provavelmente, fundarão não apenas novas imagens mas uma nova maneira de ver, tal qual sucedeu com muitos outros instrumentos óptico-científicos ao longo da história humana. 

Para ver, é preciso trabalhar. E pensar. 

Poderão aceder directamente ao artigo, aqui.

9 de novembro de 2023

Metasandman. Ana Rosa Gómez Rosal (Jot Down Books)


Não sendo o primeiro livro de natureza mais académica dedicado a Sandman (e muito menos primeiro texto, artigo, etc.), nem como poço de interpretação ou revelador de pistas (veja-se o Companion de Hy Bender) este pequeno volume é, porém, um gesto inédito, verdadeiramente poiético, no sentido de estar a inaugurar uma espécie de ensaio pouco comum, uma senda de especulação de pensamento muito estimulante. Tanto de revelador do complexo filosófico que a autora arrola através dos símiles e ficções de Gaiman et al., como de iluminador sobre essa mesma obra de banda desenhada através dos instrumentos rigososos das noções filosóficas convidadas a ser empregues. De resto, algo desde logo previsto a partir dos anos 1960 com a emergência dos Estudos Culturais, que permite interrogar “textos” (num lato sentido semiótico) das ditas “culturas populares” com instrumentos transdisciplinares do mais alto rigor, e a que a banda desenhada tardou, não obstante alguns pontos brilhantes isolados, mas acabou por realmente conquistar.

7 de novembro de 2023

Neon. Rita Alfaiate (Escorpião Azul)

Graças às redes sociais, portfólios online, e aos novos modos de muitos autores criarem expectativas, posts, teasers, trailers, w.i.p.s, etc., Neon tornou-se um daqueles objectos que se ia consolidando como algo merecedor desde logo de uma atenção redobrada. Pessoalmente, graças à oportunidade que tive em manipular arte original de Alfaiate (na Flexágono de 2022), inclusive algumas aguarelas magníficas, associadas à versão final de Tangerina, e o acompanhamento da peça curta que a artista co-criou com André Oliveira para o último número da Umbra, pude testemunhar alguns dos processos de trabalho que revelam um domínio exímio da dimensão artesanal do fabrico de imagens, em termos de composição, enquadramento, diversidade de estratégias visuais, flutuação de registos visuais, que aqui ganham um nível mais vincado ainda.

3 Graus de Carequice - Episódio 75 - BOXE


Proposto pelo André Oliveira, cultor, amador e praticante de boxe, é precisamente esse desporto que é o objecto de atenção deste episódio. Menos história do que devaneio por exemplos conhecidos, tentamos pôr o dedo na ferida do que é próprio às narrativas de boxe, sobretudo na banda desenhada, mas com fugas ao cinema. Provavelmente falhámos, porque doíam os dedos de dar socos no ar.

5 de novembro de 2023

Lesma Vida. Rita Mota (auto-edição)

Um dia voltarei à carga sobre a economia da atenção dos circuitos mais usuais dedicados à banda desenhada, e o quão presos estão a uma visão quase pré-moderna de (quase) todas as artes e, por consequência, desta em particular, quase que a impedindo de se metamorfosear nas suas potencialidades mais díspares, ora selvagens ora poéticas. E quando esses circuitos mimam – e de forma defeituosa – os discursos aparentemente legitimadores, de actualização ou de abertura à sua própria liberdade, são os primeiros obstáculos quando não forças castradoras desses mesmos movimentos. Mas ficará para outra ocasião. Não me ilibo, todavia, de contribuir sobremaneira para esse desequilíbrio, quer nos momentos em que consigo obter tempo para me exprimir sobre novas produções quer, e talvez sobretudo, e não o digo sem uma soberba tremenda, quando este silêncio particular prolongado significa silêncio tout court sobre essas obras. 

19 de outubro de 2023

"Boring, uncomfortable and mutated" - Artigo académico sobre a Chili Com Carne.

Enquanto não angario as forças suficientes para regressar à escrita (mais ou menos) regular de resenhas críticas sobre banda desenhada e/ou outros objectos, aproveito para dar acesso directo a um ensaio escrito há um par de anos para uma publicação académica cujo foco era a cultura DIY, e a sua ética e escopo social. Associado ao trabalho que igualmente havia desenvolvido nas investigações mais académicas, o foco foi dedicado à editora Chili Com Carne, cuja faceta é burilada perfeitamente para esse foco.

Boring, uncomfortable and mutated : Chili Com Carne at the nexus of the contemporary portuguese independent comic press” foi escrito para o livro Independent DIY Publications and the Underground Urban Cultures, editado por Paula Guerra e Pedro Quintela  (Universidade do Porto. Faculdade de Letras: 2021).

Podem aceder ao artigo aqui.

Mesas-redondas da "Flexágono" 2023

Serve o presente post para recordar os leitores que está patente em Óbidos, integrada no Festival Literário Fólio, a exposição Flexágono. Banda desenhada, narrativas gráficas e desenho, hoje, no Museu Abílio de Mattos e Silva. Mostrando obras de Amanda Baeza, Daniela Viçoso, Dora Sidorenko, João Sequeira, José Feitor, Marco Mendes, Matilde Feitor, Ricardo Baptista, Rita Mota e Sofia Belém, é uma oportunidade única de ver estes trabalhos apresentados de uma forma contemporânea, adulta e esteticamente informada, sem algum do ruído usualmente associado aos certames que lhes dão atenção.

Flexágono é uma faceta já consolidada do Festival Literário Fólio, ainda que se apresente de forma mutável em todas as suas edições. Enquanto espaço de divulgação e reflexão sobre a criação de banda desenhada e outros objectos de narrativas gráficas e territórios contíguos, o seu propósito será sempre o de chamar a atenção para com uma produção contemporânea, cuidada, que responde a muitos dos desafios formais e conceptuais destas artes perante o mundo.

A banda desenhada é não apenas uma arte com uma história social e estética próprias, como tem uma natureza viva que se vai transformando, mesmo que isso nem sempre seja acompanhado por um número de pessoas que as mereceria, e são muitas as surpresas que esperam os novos leitores, se estes apenas se prenderem às expectativas do que conhecem da sua infância ou das esferas do entretenimento. O ensaio, a autobiografia, o desenho de campo, a exploração da memória, o gesto de resistência, a refabricação das tradições ou até de identidades são todos campos passíveis de visitação desta tarefa artística.

Sempre tivemos oportunidade de, nas edições anteriores, criar um distinto e específico diálogo com os espaços onde nos apresentamos, e este ano não é excepção. O Museu Abílio de Mattos e Silva alberga não apenas o espólio de um artista multifacetado, que se expressou nas ditas Belas-Artes mas igualmente em variados campos das artes aplicadas, e em materialidades múltiplas, como também demonstra a vontade da designer Maria José Salavisa, que foi uma pioneira no entendimento e cruzamentos entre os espaços interiores e a luz, a vivência quotidiana informada pela beleza e o conceito, o equilíbrio entre as formas. Todos esses princípios presidiram à selecção de um grupo de artistas, entre veteranos e novos valores, que precisamente colocam em acção essas potencialidades do desenho, da narrativa visual, da expressão gráfica ao serviço da ideia.

Jan e Aleida Assman consideram que “cada geração transmite cultura à próxima, não através de um legado genético, mas antes pela conservação e repetido reexame ou reutilização de objectos culturais e rituais – formações culturais (textos, ritos, monumentos) e comunicação institucional (recitação, prática, observância) – que constituem a cultura objectivizada de uma sociedade”. Os diálogos entre o fundo do Museu, os artistas de várias gerações, e um público diversificado, mas também entre o gesto monumentalizador de um museu e alguma natureza de efemeridade de uma exposição temporária de objectos gráficos de uma temporalidade e de um espaço de atenção frágeis, entre substratos que se vão mantendo e consolidam uma identidade cultural (nacional?, internacional?, artística?, linguística?, humana?) e de textos de uma magnífica diversidade de assinaturas e expressões, são apenas algumas das facetas deste cristal que poderá ser lido de formas distintas e todas estimulantes, como espalhar de maneira diversa as práticas da nossa própria leitura.

Organizaram-se duas mesas-redondas, que terão lugar nestes dois próximos dias. 

Hoje, dia 19, pelas 16h00, terá lugar o painel Como as imagens leem: relações entre imagens e narrativas, com Daniel Lima, ilustrador e autor de banda desenhada, e Catarina Alfaro, coordenadora da Programação e Conservação da Casa das Histórias Paula Rego /Fundação D. Luís I.

E amanhã, às 15h30, é a vez de Como as imagens pensam: materialidade, forma e presença, com os artistas e autores Lord Mantraste, Maria João Worm e Biakosta.

Ambas têm lugar no mesmo museu. 


18 de outubro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 74 - FORMATOS


Um programa dedicado à questão dos formatos na banda desenhada: tamanhos, materialidades, arranjos, continuidades, tradições e desvios. Fugimos ao tema? Então, não conhecem já o programa?


28 de setembro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 73 - CULINÁRIA


Com alguns problemas técnicos que não nos largam, como a sarna, pelo menos o episódio veio mais rápido que o costume. Por isso, apesar de problemas de som, ligações entre os carecas, cortes, etc., tentámos navegar pelo tema, mas mais uma vez sem grande linearidade. E o tema era a culinária, a cozinha, a comida, os alimentos, os menus, a degustação, o gosto, a memória, o ritual, tudo o que for à volta desse universo, contado aos quadradinhos... Esperamos ter lançado pistas para pôr os pontos nos garfos e os pratos em limpo. 


12 de setembro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 72 - RUBEN ÖSTLUND


Após um hiato de alguns meses, tal como hiatos anteriores, eis-nos a relançar e re-tentar a nossa terapia de dia. O encontro de hoje foi dedicado ao realizador sueco Ruben Östlund, o qual tinha surgido nas nossas conversas. Houve alguma ordem na discussão, e suficientes excursos, como sempre. A programação regressa, e conta convosco.


24 de agosto de 2023

Entrevista na Fábrica do Terror.

Serve o presente post para dar conta de uma entrevista que nos foi gentilmente feita pela Sandra Henriques para a plataforma Fábrica do Terror. A conversa incidiu sobretudo sobre o último livro, Como flutuam as pedras, com João Sequeira, mas também a curta "As brasas e a lenha", com Marco Gomes, na Umbra no. 4, dado que ambas, de uma forma ou outra, tocam os temas centrais do interesse daquele site e hub de informação. Mas isso permitiu pensar algumas questões mais abrangentes. Espero que seja do vosso agrado.

Podem lê-la aqui.

Um obrigado à Sandra e à Fábrica.

23 de agosto de 2023

Terror na Montanha. Jumpei Azumi et al. (Sendai)

Há uma excelente colecção da British Library dedicada a contos e novelas de temáticas aparentadas como o horror, o terror, o fantástico, o estranho, o insólito, etc., intitulada “Tales of the Weird”. Para além do aspecto visual e material, e o exímio trabalho editorial dos autores antologiados, a maioria dos quais britânicos, o que me fascina mais é a possibilidade de, dada a fonte imensa de material literário, poderem compor cada volume sob a égide de um tema, que tanto pode revelar de um ambiente comum nas histórias – o castelo, a floresta, jardins, as vilas piscatórias, o alto mar, –, como de uma época específica do ano – o Natal ou o Halloween - , como ainda géneros determinados por personagens, estruturas, ou objectos – a novela detectivesca, a ciência amaldiçoada, os vampiros, histórias passadas no metro, meios de comunicação assombrados, envolvendo tatuagens. Isto cria quase uma espécie de guia extremamente estimulante para pensar na criação literária, aberta aos mais díspares cruzamentos. Todavia, logo à partida, reconheceremos que a história em si revelar-se-á tanto mais eficiente quanto não apenas a sua intriga central, a sua premissa de fantasia e surpresa, como a compreensão e verossimilhança que emanar do contexto proposto.

15 de agosto de 2023

Cartas inglesas. Francisco Sousa Lobo (Chili Com Carne)

Tal qual em Deserto/Nuvem, mas também o poderíamos dizer de alguns outros projectos do autor, as circunstâncias do fabrico deste pequeno volume são expostas de forma clara na sua própria textualidade, tornando-se tópico, matéria e enquadramento do que ele oferta ao leitor. Fruto de uma residência associada ao legado literário de Eça de Queiroz, o título Cartas Inglesas difunde desde logo um elo intertextual que se pretende o mais transparente possível. Diria que de tão transparente que a rima estrutural – Eça escreveu uma meia-dúzia de crónicas para o jornal A Actualidade, do Porto, em 1877, sobre a vida social, cultural, política e relações diplomáticas de Inglaterra enquanto foi membro do consulado português naquele país, Lobo providencia-nos como um número similar de ensaios a partir da sua posição também enquanto emigrante no Reino Unido – desvanece-se de imediato pelas atitudes distintas. O território de Lobo não é o da pequena observação mundana pautada pela ironia, que tenta corrigir um mar de ignorância através de descobertas inesperadas para os seus leitores, mas bem pelo contrário remolda todo um rol de sentidos de familiaridade variada para criar reflexões incisivas. 

7 de agosto de 2023

O novo preço da desonra, e outros títulos. Hiroshi Hirata (Pipoca & Nanquim)

Apesar deste texto ser escrito a propósito da recentíssima publicação deste volume em particular, a verdade é que a sua valência cobrirá toda a edição deste autor pela plataforma brasileira, que se tem tornado nos últimos anos uma das mais significativas editoras daquele país, quer em termos de traduções de importantes obras internacionais (Larcenet, Ito, Cloonan, Sampayo, etc.) quer de autores nacionais (Jefferson Costa, Igor Frederico e Patrick Martins).

30 de julho de 2023

O mangusto. Joana Mosi (Comic Heart/A Seita)

Por mais que Júlia, a protagonista deste livro, insista e google, o mangusto não é um mamífero da família dos herpestidae, ordem dos carnívoros, cujo habitat se espalha por várias zonas temperadas e tropicais do planeta, e que em particular na Península Ibérica podem representar uma peste e dor-de-cabeça para criadores de galináceos ou pequenos agricultores. Os mais populares “saca-rabos” têm uma vida perene e consequente em Portugal, fora das zonas mais urbanas, mas o mangusto é de uma outra ordem de existência na vida de Júlia. Não é que ela não o saiba. Mas Júlia move-se numa proverbial “fuga para a frente” para que essa mesma consciência não a alcance.

28 de julho de 2023

Sonhonauta. Shun Izumi (Conrad)

Este é um projecto narrativa, temática e simbolicamente ambicioso. Com mais de 300 páginas, com uma trama densa, Sonhonauta recupera um tema antigo da literatura ocidental (e outras), com novas roupagens gráficas, para nos ofertar uma obra que revela mais do seu autor do que de uma centralidade da própria história. Originalment
e publicada online, cuja estrutura episódica se mantém visível em mais que um nível, a sua publicação em papel vem confirmar uma ideia constante – a de que muitos ditos “webcomics” necessitam ainda da cultura do impresso para uma mais longa e substanciada sobrevivência –, além de que uma leitura completa pode insuflar uma dinâmica distinta daquela que os leitores de então experimentaram. 

26 de julho de 2023

Porra... voltei! Álvaro (Insonia)

A fantasia central não é nova. Jesus Cristo, que os cristãos acreditam ser o Messias, Filho de Deus, e sacrifício pelos nossos pecados, não está morto, pois ressuscitou, mas na Ascensão deixou de pertencer ao plano terreno e o seu regresso fica prometido, no momento de maior justiça sobre a Terra. Mas são aqueles outros, menos crentes e fiéis de igrejas em particular, inclusive ateus, que testemunhando a iniquidade das próprias instituições religiosas, nutrem os sonhos, de tantas variações, de que, regressasse o Cristo, ele voltaria a expulsar os vendilhões do Templo, e descobrir-se-ia então que eram as próprias igrejas os saduceus a serem castigados. No fundo, são como os antigos “Tementes a Deus”, os quais, não participando dos rituais ou de certas pertenças comportamentais-culturais daqueles inscritos formalmente na religião, sentiam um profundo apreço e interesse pelo entendimento de que os ensinamentos de Cristo, e o amor paternal de Deus, poderiam ser distribuídos livre, universal e desinteressadamente.

14 de julho de 2023

Louca-A-Deus. Miguel Carneiro (Oficina Arara/Gabinete Paratextual)

Depois de termos falado dos ex-votos de Miguel Carneiro numa ocasião anterior, eis que nos chega às mãos uma colecção de outros tantos contributos a essa tipologia imagética, pelo mesmo autor, numa estratégia diferente. Este é um conjunto do que poderemos chamar de oito “postais”, os quais imaginaremos poderiam ser colocados num lugar propício e dedicado nas nossas casas, junto à estatueta do Santo Padre Cruz, um crucifixo de plástico ou num plinto decorado com uma renda macramé com o cálice ou a hóstia sacramental. Para além do formato da impressão, a diferença está na feitura das imagens, que utiliza a colagem, relativamente simples, no sentido em procurar menos um efeito de ilusão realista do que uma forte impressão gráfica de sobreposição simbolicamente verosímil, para as quais as cores, por vezes berrantes, e a qualidade de impressão, granulosa, contribui sobremaneira.

Rui Cardoso Martins sobre "Como flutuam as pedras", de Pedro Moura e Joã...


A propósito do lançamento em Lisboa de Como Flutuam as Pedras, romance gráfico de Pedro Moura e João Sequeira (A Seita/montesinos: 2023), o escritor Rui Cardoso Martins deu-nos a honra de um pequeno depoimento por vídeo. Tínhamos previsto um encontro presencial na livraria Palavra de Viajante, em Lisboa, no dia 15 de Julho, mas por força das circunstâncias isso não se tornou possível, daí o vídeo. Os nossos agradecimentos ao Rui e à Palavra de Viajante, pela simpatia e amizade.

31 de maio de 2023

Artigo em "Identity and History in Non-Anglophone Comics"

Serve este outro post para vos informar que tenho um novo texto académico publicado na antologia Identity and History in Non-Anglophone Comics, editada por Harriett E. H. Earle e Martin Lund, acabadinha de ser publicada pela Routledge.

Este projecto começou de uma forma bem distinta, em que a palavra "translation" era o principal termo operativo, não no seu sentido de transposição de linguagens, mas antes no seu sentido político de passagem de uma cartografia cultural para outra, e todas as operações que isso implica de distorção, aceitação, negociação, etc., e sobretudo a ausência dessa mesma tradução, que encurralam muitas produções - como a da banda desenhada portuguesa - a um espaço diminuto de circulação, mesmo que toque assuntos, intensidades ou experimentações formais que interessariam a leitores noutros palcos.

Assim sendo, este volume abre a oportunidade a discussões de banda desenhada polaca, grega, holandesa, checa, etc., que muitas vezes nem sequer tem direito a levantar voo suficiente para entrar no proverbial radar crítico. Fazendo parte de um ciclo de outros livros (Global Perspectives in Comics Studies), é um contributo decisivo ao alargamento da atenção à banda desenhada como um mundo diverso de produção.

Da minha parte, contribui com uma análise exclusivamente dedicada ao objecto mutante, heteróclito e politizado da revista Buraco # 4, de que demos conta aqui (há mais de dez anos!, o tempo não perdoa...). Intitulado "Dissent and Resistance in Contemporary Portuguese Comics: The Case of Buraco #4 and Porto’s Es.Col.A. Movement", aproxima aquele gesto colectivo e ancorado no tecido histórico do seu momento ao conceito de dissidence de Jacques Rancière.

Ficam os agradecimentos aqui aos editores e aos revisores do texto, que em muito melhoraram a prestação.

Prémio "Melhor BD Curta editada em Antologia" do Bandas Desenhadas


É com imenso prazer que recebemos a mensagem de que havíamos ganho o prémio de "Melhor BD Curta editada em Antologia", no concurso recorrente do site Bandas Desenhadas, para as obras de Inverno de 2022. 

Trata-se de uma curta de 14 páginas, publicadas na antologia Pentângulo # 4, que criámos no seio do trabalho na escola Ar.Co, com os então discentes Catarina César, Ana Dias e Simão Simões, numa experiência similar de co-criação e mistura de desenhos como se havia tentado no primeiro número dessa mesma revista. 

A bd é dada como inominada, mas trata-se de um erro imperdoável da parte deste autor, que não entregou o título a tempo, que é "Horrorscópio". Mas bem vistas as coisas, sem título fica muito melhor...

Obrigado aos artistas envolvidos!
Nota: o desenho mostrado é um dos estudos de cor feitos por Ana Dias.

19 de maio de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 71 - SENDAI


O ponto de partida deste programa é o trabalho que tem sido desenvolvido nos últimos tempos pela relativamente nova editora Sendai, especializada em banda desenhada japonesa, de um cariz mais alternativo, adulto, underground, ou outros adjectivos que a destacam de uma escolha mais usual (shonen, aventura, adolescente, etc.). Estamos num momento em que temos algumas editoras, especializadas (e.g., Devir, A Seita) ou não, com uma oferta variada, mas essa diversidade é multiplicada exponencialmente pela Sendai. A partir daí, podemos falar da presença da mangá, a aprendizagem da sua produção diversa, um pouco da história do seu acesso, e importância de estar atento a outros mercados, etc. Genki des!

13 de maio de 2023

Como flutuam as pedras - Pedro Moura & João Sequeira


Booktrailer para Como flutuam as pedras, um romance gráfico de Pedro Moura e João Sequeira, publicado pela A Seita/montesinos, com lançamento oficial previsto para o Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, no primeiro fim-de-semana de Junho (e na semana seguinte, no MaiaBD 2023). Neste mesmo certame, encontrarão a exposição dos originais deste projecto, e outros materiais, assim como os autores, em sessões de apresentação, conversa e autógrafos. Como flutuam as pedras é uma viagem de Constança a um local misterioso (uma cidade, uma ilha, um outro local?), para um encontro que pode significar um reencontro ainda maior, entre a comunidade humana. Este booktrailer foi tornado possível graças ao trabalho de animação, e consequente montagem, da arte original de João Sequeira feito por Tomás Casanova Pereira. O som foi criado por Carlos Neves, Cristiana Serra, Diogo Silva, Guilherme Lameira, Miguel Valentim, José Bragança e Gonçalo Vidigal (compositor e intérprete da música original), todos alunos de Design de Som, com o Professor João Cordeiro, do Instituto Politécnico de Portalegre. Fica aqui o sentido agradecimento a todos, por esta trabalho magnífico. Design da capa provisório, por Playground.

8 de maio de 2023

Estátuas vivas. Samuel Jarimba e Magda Pereira (Cadmus)

Fruto de uma encomenda da parte do festival Madeira Street Arts, cuja primeira edição foi dedicada à prática de “estátuas vivas” (pessoas imobilizadas durante um determinado período e incorporando elementos que as transformam em personagens teatrais), este pequeno livro de 23-25 pranchas de banda desenhada, mais material extra, é um ponto de encontro entre a banda desenhada enquanto estrutura comunicativa, passível de ser empregue em relações pedagógicas, de divulgação, de publicitação até, e palco próprio de transformações poéticas e expressivas. Samuel Jarimba, com o apoio de Magda Pereira na parte conceptual e da lavra das palavras, parte de uma situação real – um “retrato” do festival e dos seus intervenientes – para criar uma espécie de poema gráfico sobre a convergência de mundos narrativos paralelos, os quais espelham os intervenientes.

29 de abril de 2023

Anguesângue. Daniel Lima (Chili Com Carne)

Vou fazer três coisas durante esta apresentação.*

A primeira é irritante, que é falar da minha própria tarefa, mais do que do livro em si. Só aos poucos nos aproximaremos da sombra de Anguesângue. Não subiremos ao seu cume, pois estou preso nas lamas cá em baixo. Para isso, terão de ter paciência, talvez recompense.

A segunda é estranha, que é chamar o Daniel Lima de alpinista, e um alpinista ao avesso. Para isso, terão de calçar botas de montanha.

A terceira é chamar-vos a atenção de que Anguesângue pode ser antes, não um livro, mas um espelho, e um espelho que devolve algo que possivelmente preferíamos não ver devolvido. Para isso, serão temerários.

Isto não é uma parábola, mas desenharemos uma curva parabólica.

12 de abril de 2023

Mar Negro. Ana Pessoa e Bernardo Carvalho (Planeta Tangerina)

O novo livro e parceria entre Pessoa e Carvalho retoma alguns dos ingredientes básicos de Desvio, mas relança-os de um modo distinto. Também aqui temos uma história concentrada num período curto, o “fim do Verão”, que em si mesmo serve de sinal a uma transição temporal a vários títulos. Também temos, como protagonistas, naturalmente, adolescentes, na recta final e difícil da primeira idade adulta, cujo cruzamento os obriga a procurar, através de acções e de diálogo, o que existirá em comum que os aproxime de alguma maneira, e o que essa mesma aproximação dirá de forma a acentuar e consolidar as suas próprias individualidades.

29 de março de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 70 - ÓSCARES 2023


Quem não tem nada para falar, fala p'raí. Como se não tivesse bastado a conversa ininteligível sobre o Tenet e depois a algaraviada sobre o Decisão de Partir, eis que nos pomos a esmiufrar todos os Óscares deste ano e mais um par de botas. A ocasião era falar de The Whale e de Ice Merchants, mas perdemo-nos na estrada da Bobadela. Bem-hajam, por ouvirem.

28 de fevereiro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 69 - PET PEEVES


E pronto. Chegámos ao fim. Ao fim da macacad... da carequice. Sem tema, sem energia, lá nos reduzimos a três marretas a queixarem-se de uma série de maleitas. É a idade. Começámos por falar de "mitos", mas são queixas, e depois lá me lembrei que o Domingos Isabelinho já lhes chamava "pet peeves". Ora, arejemos as nossas.

2 de fevereiro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 68 - DECISÃO DE PARTIR


Este episódio, mais moroso mas igualmente mais interrompido e incompetente tecnicamente, é dedicado a um filme. "Decisão de partir", de Park Chan-Wook (2022). Mais uma vez, oportunidade para falarmos de cinema, narratividade, construções emotivas e os melhores momentos para se usarem luvas de malha de aço. Não passamos da cepa torta.

24 de janeiro de 2023

The End of Madoka Machina. André Pereira (Massacre)

Provavelmente será o proverbial “fugir com o rabo à seringa”, mas uma vez que havia discutido este título anteriormente, sob forma de série, sinto-me perfeitamente no direito de me abster de considerações mais alargadas sobre o “conteúdo” deste volume. Falámos de Madoka Machina mal foi lançada no final de 2015, alertando sobretudo para os modos formais e heteróclitos com que se propunha contar a história, e depois no seutérmino, em 2018, já nos abalizando das formas como aborda assuntos das relações entre labor e capitalismo, a (falsa) desmaterialização dos meios digitais e a sacralização/tribalização da sociedade pelas suas inscrições sociais. Este volume, intitulado The End of Madoka Machina, colige todos os seis números originais dos comics, então publicados pela Polvo, com algumas alterações cosméticas, textuais e de menor monta sobre o material édito, e agrega-lhe a curta que havia saído na colectiva All Watched Over By Machines of Loving Grace, sobre a qual conduzimos uma entrevista com os editores, e ainda mais umas 30 e tal páginas inéditas, intercaladas ao longo da narrativa. E ainda contém um largo posfácio do autor, que se reveste de uma importância crítica substancial, já que tem laivos de ensaio e reflexão sobre a própria matéria abordada no livro. Nesse texto, explicam-se raízes, influências, contextos, escolhas, progressos e retrocessos.

21 de janeiro de 2023

Ex-Votos para o século XXI. Miguel Carneiro (Matrijarsija)

O termo “ex-voto” é a versão coloquial, objectificada, de uma expressão latina mais longa: ex voto suscepto, “em busca de um voto”. Esta última palavra descende de votum, que pode ser interpretada como “aquilo que é prometido”, usualmente a uma figura divina, em benesse de algo que se procura adquirir, ou como gratulação de algo já alcançado. É portanto um movimento paradoxal, centrífugo e centrípeto, de dar e receber, para fora e para dentro, estabelecendo um elo, uma liga, uma ligação (uma religião) entre aquele que pede e a entidade a quem é pedido. Acto solene, mescla dádiva e desejo. Se num momento poderia estar associado a um acto verbal – ode, dedicação, prece, canto –, estes votos ganhariam corpo material sob as mais diversas formas em objectos tornados ex-votos. Estes não têm necessariamente que surgir ou “nascer” como tal, podendo ser capturados do mundo ordinário e transformados, ou ressignificados, através da dedicação e/ou sacrifício dele mesmo à divindade em questão. Existem, todavia, objectos materiais criados como tal. 

19 de janeiro de 2023

Fazer Isto & Assignar. Banda desenhada, autografia e memória gráfica em Rafael Bordalo Pinheiro.

Serve a presente nota para anunciar o lançamento de Fazer Isto & Assignar. Banda desenhada, autografia e memória gráfica em Rafael Bordalo Pinheiro.

Trata-se do 5º volume da colecção "Cadernos de Bordalo", coordenados e publicados pelo Museu Bordalo Pinheiro, uma série de monografias temáticas dedicadas às várias dimensões da obra e da vida do humorista finissecular. Coube-me a honra e privilégio de escrever sobre a banda desenhada neste autor, quem quase consensualmente consideramos como a figura tutelar desta disciplina artística no nosso país. 

Na verdade, deve ser encarado mais como um longo ensaio, uma vez que não sou historiador. Existem muitas obras, por mim consultadas e admiradas, onde encontrarão modos mais exaustivos de listar a obra produzida por Bordalo. António Dias de Deus e Leonardo de Sá, em primeiro lugar, naturalmente e sobretudo no que diz respeito à banda desenhada, mas considerando mais alargadamente a obra caricatural, de imprensa, gráfica, também os trabalhos de Irisalva Moita, Carlos Bandeiras Pinheiro, João Medina, Maria Manuel Pinto e Barbosa e Álvaro Costa de Matos foram fundamentais nesta navegação, tal qual a ainda seminal biografia de José-Augusto França. Mais recentemente, o monumental Quase Todo o Bordallo. Obra Gráfica, de Isabel Castanheira, tornou-se um instrumento imperativo e de sistematização, complemento magnífico mesmo com o acesso a toda a obra, pública, inédita e de esboços, que me foi facilitada pelos serviços museográficos. Aliás, o acesso a toda a equipa, através de consultas extemporâneas, perguntas sobre minudências e depois múltiplas leituras críticas tornaram o volume em algo melhor do que seria, caso caminhasse sozinho.

O objectivo, dizia, é o de um ensaio. Não se procura um regime de exaustão ou de listagens, cujo remate poderia ser hercúleo, mas árido e insubstancial. Ao longo de sete capítulos centrais, menos ou mais tematizados, perscruta-se a obra de Bordalo, para entender atitudes, mecanismos, recorrências, preferências e eficácias nos modos artísticos e nas inscrições sociais e políticas do autor. O ponto de partida é o de que possuímos hodiernamente um conceito e campo social da "banda desenhada" que pura e simplesmente não existia no tempo de Bordalo. Ele é, afinal, um dos "inventores" de toda uma série de estratégias formais, modos de publicação e circulação, atitude social, e de potencialidades textuais e materiais que depois seriam seguidas e/ou abandonadas. Bordalo, tal qual outros autores que lhe foram imediatamente anteriores ou contemporâneos,  estava a experimentar esta linguagem, e não se podia recorrer de um corpus de experiência consolidado, tal qual nós hoje podemos fazer, com 150 anos de produção. O que não significa que Bordalo não tenha reempregue princípios, noções ou instrumentos advindos de outras longas "tradições", advindas da literatura, do teatro e,, claro está, da produção gráfica histórica da civilização ocidental (e não só, como é demonstrado no livro!). 

Pondera-se os diálogos artísticos que Bordalo estabeleceu com os grandes "mestres da banda desenhada" - mesmo antes de tal nome! - do seu tempo, como Cham, e através deste Töpffer, Nadar, Caran d'Ache e Wilhelm Busch, para descobrir um autor sempre proteico. Atenta-se às muitas maneiras, graduais, diferenciadas e materializadas, em que o autor procurou soluções editoriais, e como isso influenciaria as suas escolhas de "assunto" mas também de "estilo". Demonstra-se a maneira como o autor explorou a autobiografia em banda desenhada, mesmo antes desta se tornar um consolidado "género" (a partir sobretudo de 1990). Discute-se a maneira como respondeu à realidade bruta dos factos em seu torno, o que o levou por vezes mesmo à reportagem, ao olhar antropológico, mas quase sempre sarcástico e metafórico. Acede-se aos muitos modos em que o teatro - paixão de Bordalo desde jovem - viriam a influenciar a sua produção, a todos os níveis. Acompanhamos, de modo impossível de exaurir, como o artista fundou "typos" e "personagens", que respondiam a perspectivas do seu tempo, mas que viriam a tornar-se herança nacional, e plástica. 

No fundo, tentamos compreender novamente Bordalo à luz do que sabemos hoje da banda desenhada, do ponto de vista histórico e teórico, assim como repensar a banda desenhada de hoje a partir da prática, tão viva ainda, de Bordalo.

Nota final: muitas pessoas há a agradecer, remetendo à página que lhes é dedicada no livro. Este encontra-se, para já, à venda na loja do Museu. Em breve, anunciarei a data da sua apresentação, no próprio Museu. 

18 de janeiro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 67 - Biografias


Tosse, rouquidão, falta de ânimo? É o dia-da-dia da geriatria bedéfila. Mas que isso não impeça os Marretas de se juntarem para terapias indizíveis. Desta feita, André Oliveira propôs ponderações em torno de "biografias em banda desenhada", utilizando como modelos "Eusébio, O Pantera Negra" (Arcádia 1990), do recentemente falecido Eugénio Silva, e "Morro da Favela" (Barba Negra 2012), de André Diniz, criando uma dicotomia apenas de partida para uma discussão que foi, contra o segundo princípio da termodinâmica, aquecendo, mas terminando em piadas de mau gosto, idiotices e mau cabelo, tudo da parte da jibóia mais velha, que os moços são bons rapazes.

4 de janeiro de 2023

Espelho da água. João Sequeira (Polvo)

É apanágio do artista (escritor, pintor, cineasta) ter a capacidade de olhar o mundanal e destacar-lhe os elementos de tal modo, frente aos quais, ao nos serem devolvidos, remoldados que estarão pelos materiais de eleição do feitor, nos depararemos com o familiar e, ao mesmo tempo, com o que nele existe de extraordinário, obrigando-nos a ver de novo, pela primeira vez, esses mesmos objectos. Espelho da água, tratado fosse com mera sinopse, de elementos narrativos encadeados em descrição fria, surgiria como patética novela. Uma manhã, um corpo de mulher flutua e perde-se ao largo da travessia de um cacilheiro vindo da margem sul para Lisboa, e testemunhamos os gestos da tripulação, a tribulação do capitão, os apoucamentos dos muitos passageiros, as lamentações das gaivotas e o fado dos bivalves. Todavia, é a agulha argêntea do escritor, e depois o fluido e negro esparzir do artista, que torna essa travessia numa pequena jóia. 

1 de janeiro de 2023

A Rainha dos Canibais. Miguel Rocha (A Seita)

Vivemos num tempo em que a sofreguidão da oferta e a imediatez do acesso acabam por dissipar a compreensão do esforço que a produção de uma banda desenhada implica, sobretudo num contexto em que a sua recompensa é quase nula, seja sob a forma mais baixamente material de benesse financeira, fama mediática, novas oportunidades, conquista de públicos, menos que alargados, adequados, e outros aspectos, seja sob a forma da sua recepção balizada e ancorada numa avaliação informada. Isso muitas vezes repercute-se pela dificuldade em que autores, de fartos currículos e competências artísticas e/ou literárias comprovadas, têm em encontrar vazão para darem uma maior continuidade ou celeridade a este território criativo. Por isso, sempre que um autor se ausente das prateleiras com novidades por um período igual ou maior que, digamos, três, quatro anos, subitamente parece ter-se “eclipsado”, e no momento em que surja algo novo, se fale de “regresso”. Miguel Rocha, um dos mais significativos auteurs da cena nacional (não apenas nas décadas em que esteve activo, arriscar-me-ia a destacá-lo em toda a história do meio) jamais se “eclipsou” da cena, e este não é um seu “regresso”. Pura e simplesmente não tínhamos um seu livro há mais de dez anos, e agora temos a oportunidade de ler cerca de 200 páginas de uma espécie de devaneio por um seu imaginário fantasmático, falsamente nostálgico e febril, alimentado pelas leituras de uma infância sedenta em aventuras.