28 de setembro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 73 - CULINÁRIA


Com alguns problemas técnicos que não nos largam, como a sarna, pelo menos o episódio veio mais rápido que o costume. Por isso, apesar de problemas de som, ligações entre os carecas, cortes, etc., tentámos navegar pelo tema, mas mais uma vez sem grande linearidade. E o tema era a culinária, a cozinha, a comida, os alimentos, os menus, a degustação, o gosto, a memória, o ritual, tudo o que for à volta desse universo, contado aos quadradinhos... Esperamos ter lançado pistas para pôr os pontos nos garfos e os pratos em limpo. 


12 de setembro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 72 - RUBEN ÖSTLUND


Após um hiato de alguns meses, tal como hiatos anteriores, eis-nos a relançar e re-tentar a nossa terapia de dia. O encontro de hoje foi dedicado ao realizador sueco Ruben Östlund, o qual tinha surgido nas nossas conversas. Houve alguma ordem na discussão, e suficientes excursos, como sempre. A programação regressa, e conta convosco.


24 de agosto de 2023

Entrevista na Fábrica do Terror.

Serve o presente post para dar conta de uma entrevista que nos foi gentilmente feita pela Sandra Henriques para a plataforma Fábrica do Terror. A conversa incidiu sobretudo sobre o último livro, Como flutuam as pedras, com João Sequeira, mas também a curta "As brasas e a lenha", com Marco Gomes, na Umbra no. 4, dado que ambas, de uma forma ou outra, tocam os temas centrais do interesse daquele site e hub de informação. Mas isso permitiu pensar algumas questões mais abrangentes. Espero que seja do vosso agrado.

Podem lê-la aqui.

Um obrigado à Sandra e à Fábrica.

23 de agosto de 2023

Terror na Montanha. Jumpei Azumi et al. (Sendai)

Há uma excelente colecção da British Library dedicada a contos e novelas de temáticas aparentadas como o horror, o terror, o fantástico, o estranho, o insólito, etc., intitulada “Tales of the Weird”. Para além do aspecto visual e material, e o exímio trabalho editorial dos autores antologiados, a maioria dos quais britânicos, o que me fascina mais é a possibilidade de, dada a fonte imensa de material literário, poderem compor cada volume sob a égide de um tema, que tanto pode revelar de um ambiente comum nas histórias – o castelo, a floresta, jardins, as vilas piscatórias, o alto mar, –, como de uma época específica do ano – o Natal ou o Halloween - , como ainda géneros determinados por personagens, estruturas, ou objectos – a novela detectivesca, a ciência amaldiçoada, os vampiros, histórias passadas no metro, meios de comunicação assombrados, envolvendo tatuagens. Isto cria quase uma espécie de guia extremamente estimulante para pensar na criação literária, aberta aos mais díspares cruzamentos. Todavia, logo à partida, reconheceremos que a história em si revelar-se-á tanto mais eficiente quanto não apenas a sua intriga central, a sua premissa de fantasia e surpresa, como a compreensão e verossimilhança que emanar do contexto proposto.

15 de agosto de 2023

Cartas inglesas. Francisco Sousa Lobo (Chili Com Carne)

Tal qual em Deserto/Nuvem, mas também o poderíamos dizer de alguns outros projectos do autor, as circunstâncias do fabrico deste pequeno volume são expostas de forma clara na sua própria textualidade, tornando-se tópico, matéria e enquadramento do que ele oferta ao leitor. Fruto de uma residência associada ao legado literário de Eça de Queiroz, o título Cartas Inglesas difunde desde logo um elo intertextual que se pretende o mais transparente possível. Diria que de tão transparente que a rima estrutural – Eça escreveu uma meia-dúzia de crónicas para o jornal A Actualidade, do Porto, em 1877, sobre a vida social, cultural, política e relações diplomáticas de Inglaterra enquanto foi membro do consulado português naquele país, Lobo providencia-nos como um número similar de ensaios a partir da sua posição também enquanto emigrante no Reino Unido – desvanece-se de imediato pelas atitudes distintas. O território de Lobo não é o da pequena observação mundana pautada pela ironia, que tenta corrigir um mar de ignorância através de descobertas inesperadas para os seus leitores, mas bem pelo contrário remolda todo um rol de sentidos de familiaridade variada para criar reflexões incisivas. 

7 de agosto de 2023

O novo preço da desonra, e outros títulos. Hiroshi Hirata (Pipoca & Nanquim)

Apesar deste texto ser escrito a propósito da recentíssima publicação deste volume em particular, a verdade é que a sua valência cobrirá toda a edição deste autor pela plataforma brasileira, que se tem tornado nos últimos anos uma das mais significativas editoras daquele país, quer em termos de traduções de importantes obras internacionais (Larcenet, Ito, Cloonan, Sampayo, etc.) quer de autores nacionais (Jefferson Costa, Igor Frederico e Patrick Martins).

30 de julho de 2023

O mangusto. Joana Mosi (Comic Heart/A Seita)

Por mais que Júlia, a protagonista deste livro, insista e google, o mangusto não é um mamífero da família dos herpestidae, ordem dos carnívoros, cujo habitat se espalha por várias zonas temperadas e tropicais do planeta, e que em particular na Península Ibérica podem representar uma peste e dor-de-cabeça para criadores de galináceos ou pequenos agricultores. Os mais populares “saca-rabos” têm uma vida perene e consequente em Portugal, fora das zonas mais urbanas, mas o mangusto é de uma outra ordem de existência na vida de Júlia. Não é que ela não o saiba. Mas Júlia move-se numa proverbial “fuga para a frente” para que essa mesma consciência não a alcance.

28 de julho de 2023

Sonhonauta. Shun Izumi (Conrad)

Este é um projecto narrativa, temática e simbolicamente ambicioso. Com mais de 300 páginas, com uma trama densa, Sonhonauta recupera um tema antigo da literatura ocidental (e outras), com novas roupagens gráficas, para nos ofertar uma obra que revela mais do seu autor do que de uma centralidade da própria história. Originalment
e publicada online, cuja estrutura episódica se mantém visível em mais que um nível, a sua publicação em papel vem confirmar uma ideia constante – a de que muitos ditos “webcomics” necessitam ainda da cultura do impresso para uma mais longa e substanciada sobrevivência –, além de que uma leitura completa pode insuflar uma dinâmica distinta daquela que os leitores de então experimentaram. 

26 de julho de 2023

Porra... voltei! Álvaro (Insonia)

A fantasia central não é nova. Jesus Cristo, que os cristãos acreditam ser o Messias, Filho de Deus, e sacrifício pelos nossos pecados, não está morto, pois ressuscitou, mas na Ascensão deixou de pertencer ao plano terreno e o seu regresso fica prometido, no momento de maior justiça sobre a Terra. Mas são aqueles outros, menos crentes e fiéis de igrejas em particular, inclusive ateus, que testemunhando a iniquidade das próprias instituições religiosas, nutrem os sonhos, de tantas variações, de que, regressasse o Cristo, ele voltaria a expulsar os vendilhões do Templo, e descobrir-se-ia então que eram as próprias igrejas os saduceus a serem castigados. No fundo, são como os antigos “Tementes a Deus”, os quais, não participando dos rituais ou de certas pertenças comportamentais-culturais daqueles inscritos formalmente na religião, sentiam um profundo apreço e interesse pelo entendimento de que os ensinamentos de Cristo, e o amor paternal de Deus, poderiam ser distribuídos livre, universal e desinteressadamente.

14 de julho de 2023

Louca-A-Deus. Miguel Carneiro (Oficina Arara/Gabinete Paratextual)

Depois de termos falado dos ex-votos de Miguel Carneiro numa ocasião anterior, eis que nos chega às mãos uma colecção de outros tantos contributos a essa tipologia imagética, pelo mesmo autor, numa estratégia diferente. Este é um conjunto do que poderemos chamar de oito “postais”, os quais imaginaremos poderiam ser colocados num lugar propício e dedicado nas nossas casas, junto à estatueta do Santo Padre Cruz, um crucifixo de plástico ou num plinto decorado com uma renda macramé com o cálice ou a hóstia sacramental. Para além do formato da impressão, a diferença está na feitura das imagens, que utiliza a colagem, relativamente simples, no sentido em procurar menos um efeito de ilusão realista do que uma forte impressão gráfica de sobreposição simbolicamente verosímil, para as quais as cores, por vezes berrantes, e a qualidade de impressão, granulosa, contribui sobremaneira.

Rui Cardoso Martins sobre "Como flutuam as pedras", de Pedro Moura e Joã...


A propósito do lançamento em Lisboa de Como Flutuam as Pedras, romance gráfico de Pedro Moura e João Sequeira (A Seita/montesinos: 2023), o escritor Rui Cardoso Martins deu-nos a honra de um pequeno depoimento por vídeo. Tínhamos previsto um encontro presencial na livraria Palavra de Viajante, em Lisboa, no dia 15 de Julho, mas por força das circunstâncias isso não se tornou possível, daí o vídeo. Os nossos agradecimentos ao Rui e à Palavra de Viajante, pela simpatia e amizade.

31 de maio de 2023

Artigo em "Identity and History in Non-Anglophone Comics"

Serve este outro post para vos informar que tenho um novo texto académico publicado na antologia Identity and History in Non-Anglophone Comics, editada por Harriett E. H. Earle e Martin Lund, acabadinha de ser publicada pela Routledge.

Este projecto começou de uma forma bem distinta, em que a palavra "translation" era o principal termo operativo, não no seu sentido de transposição de linguagens, mas antes no seu sentido político de passagem de uma cartografia cultural para outra, e todas as operações que isso implica de distorção, aceitação, negociação, etc., e sobretudo a ausência dessa mesma tradução, que encurralam muitas produções - como a da banda desenhada portuguesa - a um espaço diminuto de circulação, mesmo que toque assuntos, intensidades ou experimentações formais que interessariam a leitores noutros palcos.

Assim sendo, este volume abre a oportunidade a discussões de banda desenhada polaca, grega, holandesa, checa, etc., que muitas vezes nem sequer tem direito a levantar voo suficiente para entrar no proverbial radar crítico. Fazendo parte de um ciclo de outros livros (Global Perspectives in Comics Studies), é um contributo decisivo ao alargamento da atenção à banda desenhada como um mundo diverso de produção.

Da minha parte, contribui com uma análise exclusivamente dedicada ao objecto mutante, heteróclito e politizado da revista Buraco # 4, de que demos conta aqui (há mais de dez anos!, o tempo não perdoa...). Intitulado "Dissent and Resistance in Contemporary Portuguese Comics: The Case of Buraco #4 and Porto’s Es.Col.A. Movement", aproxima aquele gesto colectivo e ancorado no tecido histórico do seu momento ao conceito de dissidence de Jacques Rancière.

Ficam os agradecimentos aqui aos editores e aos revisores do texto, que em muito melhoraram a prestação.

Prémio "Melhor BD Curta editada em Antologia" do Bandas Desenhadas


É com imenso prazer que recebemos a mensagem de que havíamos ganho o prémio de "Melhor BD Curta editada em Antologia", no concurso recorrente do site Bandas Desenhadas, para as obras de Inverno de 2022. 

Trata-se de uma curta de 14 páginas, publicadas na antologia Pentângulo # 4, que criámos no seio do trabalho na escola Ar.Co, com os então discentes Catarina César, Ana Dias e Simão Simões, numa experiência similar de co-criação e mistura de desenhos como se havia tentado no primeiro número dessa mesma revista. 

A bd é dada como inominada, mas trata-se de um erro imperdoável da parte deste autor, que não entregou o título a tempo, que é "Horrorscópio". Mas bem vistas as coisas, sem título fica muito melhor...

Obrigado aos artistas envolvidos!
Nota: o desenho mostrado é um dos estudos de cor feitos por Ana Dias.

19 de maio de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 71 - SENDAI


O ponto de partida deste programa é o trabalho que tem sido desenvolvido nos últimos tempos pela relativamente nova editora Sendai, especializada em banda desenhada japonesa, de um cariz mais alternativo, adulto, underground, ou outros adjectivos que a destacam de uma escolha mais usual (shonen, aventura, adolescente, etc.). Estamos num momento em que temos algumas editoras, especializadas (e.g., Devir, A Seita) ou não, com uma oferta variada, mas essa diversidade é multiplicada exponencialmente pela Sendai. A partir daí, podemos falar da presença da mangá, a aprendizagem da sua produção diversa, um pouco da história do seu acesso, e importância de estar atento a outros mercados, etc. Genki des!

13 de maio de 2023

Como flutuam as pedras - Pedro Moura & João Sequeira


Booktrailer para Como flutuam as pedras, um romance gráfico de Pedro Moura e João Sequeira, publicado pela A Seita/montesinos, com lançamento oficial previsto para o Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, no primeiro fim-de-semana de Junho (e na semana seguinte, no MaiaBD 2023). Neste mesmo certame, encontrarão a exposição dos originais deste projecto, e outros materiais, assim como os autores, em sessões de apresentação, conversa e autógrafos. Como flutuam as pedras é uma viagem de Constança a um local misterioso (uma cidade, uma ilha, um outro local?), para um encontro que pode significar um reencontro ainda maior, entre a comunidade humana. Este booktrailer foi tornado possível graças ao trabalho de animação, e consequente montagem, da arte original de João Sequeira feito por Tomás Casanova Pereira. O som foi criado por Carlos Neves, Cristiana Serra, Diogo Silva, Guilherme Lameira, Miguel Valentim, José Bragança e Gonçalo Vidigal (compositor e intérprete da música original), todos alunos de Design de Som, com o Professor João Cordeiro, do Instituto Politécnico de Portalegre. Fica aqui o sentido agradecimento a todos, por esta trabalho magnífico. Design da capa provisório, por Playground.

8 de maio de 2023

Estátuas vivas. Samuel Jarimba e Magda Pereira (Cadmus)

Fruto de uma encomenda da parte do festival Madeira Street Arts, cuja primeira edição foi dedicada à prática de “estátuas vivas” (pessoas imobilizadas durante um determinado período e incorporando elementos que as transformam em personagens teatrais), este pequeno livro de 23-25 pranchas de banda desenhada, mais material extra, é um ponto de encontro entre a banda desenhada enquanto estrutura comunicativa, passível de ser empregue em relações pedagógicas, de divulgação, de publicitação até, e palco próprio de transformações poéticas e expressivas. Samuel Jarimba, com o apoio de Magda Pereira na parte conceptual e da lavra das palavras, parte de uma situação real – um “retrato” do festival e dos seus intervenientes – para criar uma espécie de poema gráfico sobre a convergência de mundos narrativos paralelos, os quais espelham os intervenientes.

29 de abril de 2023

Anguesângue. Daniel Lima (Chili Com Carne)

Vou fazer três coisas durante esta apresentação.*

A primeira é irritante, que é falar da minha própria tarefa, mais do que do livro em si. Só aos poucos nos aproximaremos da sombra de Anguesângue. Não subiremos ao seu cume, pois estou preso nas lamas cá em baixo. Para isso, terão de ter paciência, talvez recompense.

A segunda é estranha, que é chamar o Daniel Lima de alpinista, e um alpinista ao avesso. Para isso, terão de calçar botas de montanha.

A terceira é chamar-vos a atenção de que Anguesângue pode ser antes, não um livro, mas um espelho, e um espelho que devolve algo que possivelmente preferíamos não ver devolvido. Para isso, serão temerários.

Isto não é uma parábola, mas desenharemos uma curva parabólica.

12 de abril de 2023

Mar Negro. Ana Pessoa e Bernardo Carvalho (Planeta Tangerina)

O novo livro e parceria entre Pessoa e Carvalho retoma alguns dos ingredientes básicos de Desvio, mas relança-os de um modo distinto. Também aqui temos uma história concentrada num período curto, o “fim do Verão”, que em si mesmo serve de sinal a uma transição temporal a vários títulos. Também temos, como protagonistas, naturalmente, adolescentes, na recta final e difícil da primeira idade adulta, cujo cruzamento os obriga a procurar, através de acções e de diálogo, o que existirá em comum que os aproxime de alguma maneira, e o que essa mesma aproximação dirá de forma a acentuar e consolidar as suas próprias individualidades.

29 de março de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 70 - ÓSCARES 2023


Quem não tem nada para falar, fala p'raí. Como se não tivesse bastado a conversa ininteligível sobre o Tenet e depois a algaraviada sobre o Decisão de Partir, eis que nos pomos a esmiufrar todos os Óscares deste ano e mais um par de botas. A ocasião era falar de The Whale e de Ice Merchants, mas perdemo-nos na estrada da Bobadela. Bem-hajam, por ouvirem.

28 de fevereiro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 69 - PET PEEVES


E pronto. Chegámos ao fim. Ao fim da macacad... da carequice. Sem tema, sem energia, lá nos reduzimos a três marretas a queixarem-se de uma série de maleitas. É a idade. Começámos por falar de "mitos", mas são queixas, e depois lá me lembrei que o Domingos Isabelinho já lhes chamava "pet peeves". Ora, arejemos as nossas.

2 de fevereiro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 68 - DECISÃO DE PARTIR


Este episódio, mais moroso mas igualmente mais interrompido e incompetente tecnicamente, é dedicado a um filme. "Decisão de partir", de Park Chan-Wook (2022). Mais uma vez, oportunidade para falarmos de cinema, narratividade, construções emotivas e os melhores momentos para se usarem luvas de malha de aço. Não passamos da cepa torta.

24 de janeiro de 2023

The End of Madoka Machina. André Pereira (Massacre)

Provavelmente será o proverbial “fugir com o rabo à seringa”, mas uma vez que havia discutido este título anteriormente, sob forma de série, sinto-me perfeitamente no direito de me abster de considerações mais alargadas sobre o “conteúdo” deste volume. Falámos de Madoka Machina mal foi lançada no final de 2015, alertando sobretudo para os modos formais e heteróclitos com que se propunha contar a história, e depois no seutérmino, em 2018, já nos abalizando das formas como aborda assuntos das relações entre labor e capitalismo, a (falsa) desmaterialização dos meios digitais e a sacralização/tribalização da sociedade pelas suas inscrições sociais. Este volume, intitulado The End of Madoka Machina, colige todos os seis números originais dos comics, então publicados pela Polvo, com algumas alterações cosméticas, textuais e de menor monta sobre o material édito, e agrega-lhe a curta que havia saído na colectiva All Watched Over By Machines of Loving Grace, sobre a qual conduzimos uma entrevista com os editores, e ainda mais umas 30 e tal páginas inéditas, intercaladas ao longo da narrativa. E ainda contém um largo posfácio do autor, que se reveste de uma importância crítica substancial, já que tem laivos de ensaio e reflexão sobre a própria matéria abordada no livro. Nesse texto, explicam-se raízes, influências, contextos, escolhas, progressos e retrocessos.

21 de janeiro de 2023

Ex-Votos para o século XXI. Miguel Carneiro (Matrijarsija)

O termo “ex-voto” é a versão coloquial, objectificada, de uma expressão latina mais longa: ex voto suscepto, “em busca de um voto”. Esta última palavra descende de votum, que pode ser interpretada como “aquilo que é prometido”, usualmente a uma figura divina, em benesse de algo que se procura adquirir, ou como gratulação de algo já alcançado. É portanto um movimento paradoxal, centrífugo e centrípeto, de dar e receber, para fora e para dentro, estabelecendo um elo, uma liga, uma ligação (uma religião) entre aquele que pede e a entidade a quem é pedido. Acto solene, mescla dádiva e desejo. Se num momento poderia estar associado a um acto verbal – ode, dedicação, prece, canto –, estes votos ganhariam corpo material sob as mais diversas formas em objectos tornados ex-votos. Estes não têm necessariamente que surgir ou “nascer” como tal, podendo ser capturados do mundo ordinário e transformados, ou ressignificados, através da dedicação e/ou sacrifício dele mesmo à divindade em questão. Existem, todavia, objectos materiais criados como tal. 

19 de janeiro de 2023

Fazer Isto & Assignar. Banda desenhada, autografia e memória gráfica em Rafael Bordalo Pinheiro.

Serve a presente nota para anunciar o lançamento de Fazer Isto & Assignar. Banda desenhada, autografia e memória gráfica em Rafael Bordalo Pinheiro.

Trata-se do 5º volume da colecção "Cadernos de Bordalo", coordenados e publicados pelo Museu Bordalo Pinheiro, uma série de monografias temáticas dedicadas às várias dimensões da obra e da vida do humorista finissecular. Coube-me a honra e privilégio de escrever sobre a banda desenhada neste autor, quem quase consensualmente consideramos como a figura tutelar desta disciplina artística no nosso país. 

Na verdade, deve ser encarado mais como um longo ensaio, uma vez que não sou historiador. Existem muitas obras, por mim consultadas e admiradas, onde encontrarão modos mais exaustivos de listar a obra produzida por Bordalo. António Dias de Deus e Leonardo de Sá, em primeiro lugar, naturalmente e sobretudo no que diz respeito à banda desenhada, mas considerando mais alargadamente a obra caricatural, de imprensa, gráfica, também os trabalhos de Irisalva Moita, Carlos Bandeiras Pinheiro, João Medina, Maria Manuel Pinto e Barbosa e Álvaro Costa de Matos foram fundamentais nesta navegação, tal qual a ainda seminal biografia de José-Augusto França. Mais recentemente, o monumental Quase Todo o Bordallo. Obra Gráfica, de Isabel Castanheira, tornou-se um instrumento imperativo e de sistematização, complemento magnífico mesmo com o acesso a toda a obra, pública, inédita e de esboços, que me foi facilitada pelos serviços museográficos. Aliás, o acesso a toda a equipa, através de consultas extemporâneas, perguntas sobre minudências e depois múltiplas leituras críticas tornaram o volume em algo melhor do que seria, caso caminhasse sozinho.

O objectivo, dizia, é o de um ensaio. Não se procura um regime de exaustão ou de listagens, cujo remate poderia ser hercúleo, mas árido e insubstancial. Ao longo de sete capítulos centrais, menos ou mais tematizados, perscruta-se a obra de Bordalo, para entender atitudes, mecanismos, recorrências, preferências e eficácias nos modos artísticos e nas inscrições sociais e políticas do autor. O ponto de partida é o de que possuímos hodiernamente um conceito e campo social da "banda desenhada" que pura e simplesmente não existia no tempo de Bordalo. Ele é, afinal, um dos "inventores" de toda uma série de estratégias formais, modos de publicação e circulação, atitude social, e de potencialidades textuais e materiais que depois seriam seguidas e/ou abandonadas. Bordalo, tal qual outros autores que lhe foram imediatamente anteriores ou contemporâneos,  estava a experimentar esta linguagem, e não se podia recorrer de um corpus de experiência consolidado, tal qual nós hoje podemos fazer, com 150 anos de produção. O que não significa que Bordalo não tenha reempregue princípios, noções ou instrumentos advindos de outras longas "tradições", advindas da literatura, do teatro e,, claro está, da produção gráfica histórica da civilização ocidental (e não só, como é demonstrado no livro!). 

Pondera-se os diálogos artísticos que Bordalo estabeleceu com os grandes "mestres da banda desenhada" - mesmo antes de tal nome! - do seu tempo, como Cham, e através deste Töpffer, Nadar, Caran d'Ache e Wilhelm Busch, para descobrir um autor sempre proteico. Atenta-se às muitas maneiras, graduais, diferenciadas e materializadas, em que o autor procurou soluções editoriais, e como isso influenciaria as suas escolhas de "assunto" mas também de "estilo". Demonstra-se a maneira como o autor explorou a autobiografia em banda desenhada, mesmo antes desta se tornar um consolidado "género" (a partir sobretudo de 1990). Discute-se a maneira como respondeu à realidade bruta dos factos em seu torno, o que o levou por vezes mesmo à reportagem, ao olhar antropológico, mas quase sempre sarcástico e metafórico. Acede-se aos muitos modos em que o teatro - paixão de Bordalo desde jovem - viriam a influenciar a sua produção, a todos os níveis. Acompanhamos, de modo impossível de exaurir, como o artista fundou "typos" e "personagens", que respondiam a perspectivas do seu tempo, mas que viriam a tornar-se herança nacional, e plástica. 

No fundo, tentamos compreender novamente Bordalo à luz do que sabemos hoje da banda desenhada, do ponto de vista histórico e teórico, assim como repensar a banda desenhada de hoje a partir da prática, tão viva ainda, de Bordalo.

Nota final: muitas pessoas há a agradecer, remetendo à página que lhes é dedicada no livro. Este encontra-se, para já, à venda na loja do Museu. Em breve, anunciarei a data da sua apresentação, no próprio Museu. 

18 de janeiro de 2023

3 Graus de Carequice - Episódio 67 - Biografias


Tosse, rouquidão, falta de ânimo? É o dia-da-dia da geriatria bedéfila. Mas que isso não impeça os Marretas de se juntarem para terapias indizíveis. Desta feita, André Oliveira propôs ponderações em torno de "biografias em banda desenhada", utilizando como modelos "Eusébio, O Pantera Negra" (Arcádia 1990), do recentemente falecido Eugénio Silva, e "Morro da Favela" (Barba Negra 2012), de André Diniz, criando uma dicotomia apenas de partida para uma discussão que foi, contra o segundo princípio da termodinâmica, aquecendo, mas terminando em piadas de mau gosto, idiotices e mau cabelo, tudo da parte da jibóia mais velha, que os moços são bons rapazes.

4 de janeiro de 2023

Espelho da água. João Sequeira (Polvo)

É apanágio do artista (escritor, pintor, cineasta) ter a capacidade de olhar o mundanal e destacar-lhe os elementos de tal modo, frente aos quais, ao nos serem devolvidos, remoldados que estarão pelos materiais de eleição do feitor, nos depararemos com o familiar e, ao mesmo tempo, com o que nele existe de extraordinário, obrigando-nos a ver de novo, pela primeira vez, esses mesmos objectos. Espelho da água, tratado fosse com mera sinopse, de elementos narrativos encadeados em descrição fria, surgiria como patética novela. Uma manhã, um corpo de mulher flutua e perde-se ao largo da travessia de um cacilheiro vindo da margem sul para Lisboa, e testemunhamos os gestos da tripulação, a tribulação do capitão, os apoucamentos dos muitos passageiros, as lamentações das gaivotas e o fado dos bivalves. Todavia, é a agulha argêntea do escritor, e depois o fluido e negro esparzir do artista, que torna essa travessia numa pequena jóia. 

1 de janeiro de 2023

A Rainha dos Canibais. Miguel Rocha (A Seita)

Vivemos num tempo em que a sofreguidão da oferta e a imediatez do acesso acabam por dissipar a compreensão do esforço que a produção de uma banda desenhada implica, sobretudo num contexto em que a sua recompensa é quase nula, seja sob a forma mais baixamente material de benesse financeira, fama mediática, novas oportunidades, conquista de públicos, menos que alargados, adequados, e outros aspectos, seja sob a forma da sua recepção balizada e ancorada numa avaliação informada. Isso muitas vezes repercute-se pela dificuldade em que autores, de fartos currículos e competências artísticas e/ou literárias comprovadas, têm em encontrar vazão para darem uma maior continuidade ou celeridade a este território criativo. Por isso, sempre que um autor se ausente das prateleiras com novidades por um período igual ou maior que, digamos, três, quatro anos, subitamente parece ter-se “eclipsado”, e no momento em que surja algo novo, se fale de “regresso”. Miguel Rocha, um dos mais significativos auteurs da cena nacional (não apenas nas décadas em que esteve activo, arriscar-me-ia a destacá-lo em toda a história do meio) jamais se “eclipsou” da cena, e este não é um seu “regresso”. Pura e simplesmente não tínhamos um seu livro há mais de dez anos, e agora temos a oportunidade de ler cerca de 200 páginas de uma espécie de devaneio por um seu imaginário fantasmático, falsamente nostálgico e febril, alimentado pelas leituras de uma infância sedenta em aventuras.