A fantasia central não é nova. Jesus Cristo, que os cristãos acreditam ser o Messias, Filho de Deus, e sacrifício pelos nossos pecados, não está morto, pois ressuscitou, mas na Ascensão deixou de pertencer ao plano terreno e o seu regresso fica prometido, no momento de maior justiça sobre a Terra. Mas são aqueles outros, menos crentes e fiéis de igrejas em particular, inclusive ateus, que testemunhando a iniquidade das próprias instituições religiosas, nutrem os sonhos, de tantas variações, de que, regressasse o Cristo, ele voltaria a expulsar os vendilhões do Templo, e descobrir-se-ia então que eram as próprias igrejas os saduceus a serem castigados. No fundo, são como os antigos “Tementes a Deus”, os quais, não participando dos rituais ou de certas pertenças comportamentais-culturais daqueles inscritos formalmente na religião, sentiam um profundo apreço e interesse pelo entendimento de que os ensinamentos de Cristo, e o amor paternal de Deus, poderiam ser distribuídos livre, universal e desinteressadamente.
Este novo livro de Álvaro, que já havia enfrentando anteriormente matéria religiosa, na companhia de José Pinto Carneiro, num registo de maior hilaridade bombástica, não deixa também de conspurcar a matéria sagrada do Cristianismo aqui, mas pretende explorar essa possibilidade de uma maneira mais articulada e, mais importante, em diálogo com uma inscrição na nossa paisagem social mais realista. No fundo, entrando em diálogo com dezenas, senão centenas de criadores e pensadores que enfrentaram, de modos tão distintos, este território.
É mais que expectável que, nas nossas sociedades ocidentais, pós-Revolução Francesa, de democracias representativas com plena separação de poderes e de um laicismo cada vez mais alargado, que quaisquer sinais de atavismo caciquistas e de parolices beatas, como se tem verificado recentemente no país, instile uma espécie de furor, e que se expressa, no caso de autores dedicados ao humor, a um corrosivo e virulento ácido que se espalha nas tintas das obras. Porra... voltei! é clara tradução desses sentimentos, e mais que bem-vindos. Todavia, a sua patina de fantasia coloca-o um ou dois passos atrás do que poderia ser uma mais directa e eficaz crítica da moleza social que subjaz a esses sentimentos, que por sua vez informam todos os pontos que o autor toca ao longo do livro: a questão da emigração, a beatífica “boa vontade” do cidadão comum, mas que apenas se atasca na mais miserável das inércias, indiferenças e desentendimentos voluntários, a podridão das instituições religiosas, a complacência senão cumplicidade mórbida das instituições políticas, policiais e sociais em geral, etc. Mas também é conhecido que muitas vezes o humor, e até a derisão, procura soluções mais fáceis, por clichés mais rápidos na construção e distribuição dos papéis morais. E assim chegamos rapidamente a uma metáfora menos feliz com os “escravos contemporâneos”, o tráfico de órgãos, os abusos sexuais da Igreja sobre os mais desprotegidos, a falência espiritual abjecta do que pareceriam os seus agentes principais, algumas piadas linguísticas, a televisão como vomitório e emburramento cerebral (permitindo, por sua vez, breves “perninhas” sobre as mais diversas topicalidades), etc. Já para não falar de um “Jesus” que pragueja e fornica, é inerte e irascível (durante um período em que isso não é nem “produtivo” nem “justiceiro”). Quer dizer, subtrai-se alguma subtileza e, por aí, creio, alguma maior eficácia no fito central.
Estamos mais perto, portanto, no que diz respeito à banda desenhada, de um Jesus símio à la Preacher do que uma interpretação intelectualmente estimulante como o projecto interrompido de Chester Brown em adaptar os Evangelhos de Marcos e Mateus. Mas nem mergulhamos numa exploração do mais profundo espírito humano, como no famoso romance de Kazantzakis, nem tampouco se explora o mais vil escárnio de um sketch de Stewart Lee (procurem por “"vomiting into the gaping anus of Christ” sob vossa exclusiva responsabilidade).
Se bem que a cena “incongruente” da nave espacial em A vida de Brian tem aqui um papel crucial de semente temática e narrativa, sem dúvida, escusaremos aqui de elencar as obras com que partilha a matéria, pois são demais, tal como os jogos de intertextualidade. Não estando, em suma, no campo do humor desabrido, também não há uma exploração equilibrada da crítica: Porra... voltei! quer ficar numa espécie de corda bamba entre as duas atitudes: vai criando o que poderia ser uma visão sustentada dos podres a debater, mas depois escusa-se com um humor mais trauliteiro, ou começa a explorar um humor mas depois corrige-se para manter o tom acusatório.
Apesar de ser o mais longo livro de Álvaro até à data, estamos em crer, não há propriamente uma grande transformação nas características visuais da construção das suas personagens. Já havíamos debatido, num momento anterior, como o autor é detentor de um traço que o leva a ter uma espécie de galeria de personagens recorrentes, que podem assumir personagens distintas de título em título, como os “actores de papel” de Tezuka ou outros autores. Todavia, até por força das circunstâncias, há uma necessária variedade na solução da composição de página, com uma maior fragmentação aqui e ali, instilando sequências de maior calmia, uma das magias particulares da banda desenhada. Há também soluções gráficas de maior arrojo, como páginas rasgando-se para revelar uma cena “por trás”, estulizações “a grafite” para simular texturas distintas, e estudos de alto contraste que fazem imaginar caminhos alternativos para o autor.
A sua gestão de silêncios, pausas, e momentos tensos de espera estão num momento alto, mas os acabamentos, em termos gerais, mantêm-se naquela “suficiência” que aproximam a sua lavra mais de uma cifra em função dos significados imediatos do que quer contar do que propriamente de uma beleza expressiva de cada prancha. Sente-se a necessidade do autor, quem sabe se muito premente, em dar esta espécie de “grito furioso”, mas não o tempo aturado que lhe teria dado uma mais trabalhada melodia e, assim, chegar mais além.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do volume.
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