Por mais que Júlia, a protagonista deste livro, insista e google, o mangusto não é um mamífero da família dos herpestidae, ordem dos carnívoros, cujo habitat se espalha por várias zonas temperadas e tropicais do planeta, e que em particular na Península Ibérica podem representar uma peste e dor-de-cabeça para criadores de galináceos ou pequenos agricultores. Os mais populares “saca-rabos” têm uma vida perene e consequente em Portugal, fora das zonas mais urbanas, mas o mangusto é de uma outra ordem de existência na vida de Júlia. Não é que ela não o saiba. Mas Júlia move-se numa proverbial “fuga para a frente” para que essa mesma consciência não a alcance.
Há recente, mas no momento deste artigo, não publicado ainda, escrevi um artigo de natureza académica no qual faço um estudo comparativo entre Hetamoé, Ana Margarida Matos e Mosi, não criando uma espécie de hierarquia em que estas autoras se destacavam por um princípio de superioridade a um outro corpo de trabalho, mas antes identificando elementos comuns na maneira como elas respondem à criação expressiva e material da banda desenhada numa época pós-digital, e em que alguns traços do feminismo estão presentes, ainda que de modo subtil (e, talvez por isso, mais eficazes de um ponto de vista poético contemporâneo), mas jamais sendo redutor a esse traço identitário. Nesse sentido, sublinhava sobretudo no caso de Mosi como esta autora “questiona sempre as mais usuais estratégias da banda desenhada no que concerne à figuração, composição, narrativa, poética, colorização, assim como às suas bases culturais”. Convido a lerem mais tarde esse trabalho, e retrospectivamente procurarem os elementos balizados e discutidos neste novo livro, que não está incluído por razões óbvias, e entenderem o grau da sua continuidade ou, como veremos, alguma distância.
Um dos problemas inerentes à recepção popular de um criador é a aporia de ora “ser sempre o mesmo” ora “ser demasiado diferente”, apontando para a impossível tarefa de agradar a gregos e troianos, sobretudo quando ambos estão menos interessados em ler (no sentido da fruição total de uma obra de banda desenhada, que aprecia a matéria verbal, a organização da intriga, a prestação do desenho, os segredos da composição, as escolhas expressivas, etc.) com atenção o que o autor nos providencia do que criar filtros predeterminados com as suas próprias expectativas. Estamos em crer que Mosi é uma autora que tem burilado uma forma de trabalhar bem diversa mas que sempre espelha uma fascinante preocupação própria em escavar o acto criativo no momento em que age sobre ele. Noutras palavras, há sempre pensamento no seu trabalho. E se O mangusto nos parece algo mais convencional do que algumas prestações anteriores, isso não pode ser um ecrã que nos faça tresler a obra.
Em primeiro lugar, e ao contrário de alguns dos trabalhos mais recentes da autora, criam-se aqui suficientes referências à realidade portuguesa actual, apesar de não haver aqui qualquer tipo de exploração “tópica”, ou que pretenda dialogar socialmente com a contemporaneidade. De resto, esses outros trabalhos são bem menores (uma peça apenas exposta no Festival da Amadora no ano passado, o seu pequeno volume The Apartment para a Kuš, e a curtíssima sem título para a publicação Limoeiro Real de 2023), e procuravam criar um ambiente mais emocionalmente, poeticamente concentrado e permitindo-se a um maior grau do que chamo, no tal artigo, de “contra-estratégias”, na esteira do crítico Peter Wollen, estudando-se modos de criação de significados mais experimentais. Em O mangusto, por força de se tratar de um livro a entrar num circuito mais massificado, é natural que a autora procure modos mais aristotélicos, naturalistas e lineares. Daí que possamos ancorar de forma mais simples nessa realidade – ainda que de uma forma bem mais oblíqua do que a clara frontalidade jornalística de Altemente, primeira aposta da Comic Heart na autora, que agora recupera neste novo volume.
Não significa isto que seja “menos arrojado”, “normativo”, “penda para o convencional”, etc. Simplesmente aquelas “contra-estratégias” de Wollen estarão aqui presentes – a título de exemplo, a intransitividade narrativa que multipla os planos de construção de significado, a mudança (breve) de estilos de desenho para criar uma posição crítica em relação à ilusão da realidade pelos sistemas de representação, etc. - mas de uma maneira mais esbatida. Isto não significa tampouco que Mosi ponha de lado totalmente certas “assinaturas” que já se lhe pode reconhecer. Vejam-se os usos das composições ou “interrupções” à narrativa com as fotos, por exemplo, de forma isolada e arrumada, para focar num pensamento específico. Mas também nos momentos em que as escolhas de composição permitem a entrada de um jogo vídeo, ou uma atenção particular a uma perspectiva externa sobre um espaço, ou as distribuições menos comuns de uma prancha, com espaços “vazios” espraindo-se, etc. “Interrupções” merece aspas porque não se efectua propriamente uma suspensão da narrativa, como um intervalo da sua prossecução. Essas mudanças, que se poderiam entender como drásticas há uns anos, são na verdade parte integrante da própria forma de narrar da autora, é a sua marca distintiva. Não é possível narrar a história de Júlia, o seu luto, o seu esforço, sem essas matérias friáveis que ainda assim compõem as suas memórias e experiências e reflexões da vida.
Joana Mosi cria banda desenhada, e não uma plataforma de narrativa visual que sirva tão-somente de um contentor de um suposto “conteúdo” que poderia ser vertido noutra forma (vulgo, “bd-IP para adatapçaõ cinematográfica”). Ao lermos O mangusto, não podemos estar apenas sensíveis aos “eventos diegéticos”, ou ao que “acontece visualmente”, mas como acontece visual e em termos de composição. Uma mtáfora de uma cama a colapsar sobre si mesma, como uma estrela antes de supernova, apesar de ser uma estratégia que não se repete, num trabalho sobretudo representativo, deve ser entendida como um relançamento do ânimo de Júlia, uma marca de etapa. Uma cena recorrente da protagonista a verificar os seus olhos, num close-up, não é uma trama de intriga dramática, mas uma constatação, a um só tempo, da materialidade do corpo, um ritual de busca de memórias, um mecanismo de despertar acções. Os silêncios devem ser lidos. Os espaços em branco devem ser lidos. A ausência de vinhetas no que parece ser um substrato de uma grelha regular devem ser lidos. Enfim, toda e qualquer matéria final na superfície das pranchas é uma escolha de significado (quer seja consciente da parte da autora quer não, propositada ou não, intencional ou não – a emergência do sentido não cabe apenas à parte a montante).
Seria por demais ridículo criar uma constelação de “influências” ou mesmo “famílias” para tentar inscrever este livro. Mosi é uma autora que tem um domínio das linguagens e estruturas da banda desenhada, e um conhecimento da sua história, que a faz lançar mão dos mais distintos domínios, mesmo aqueles que se poderiam julgar incompatíveis, fôssemos adepto de espartilhos disciplinares. Todavia, há, em termos muito genéricos, uma clara inclinação em O mangusto para ombrear obras em que um desenho superficialmente esquemático, e escolhas de composição e perspectiva parecem por vezes não-humanas, está ao serviço de emoções complexas, profundas e consequentes, mas sem que se lance em melodramas. Pensamos em Chris Ware, cuja referência deve ser hoje basilar, mas igualmente o Richard McGuire de Here, e o Minetarô Mochizuki de Chiisakobé.
Trata-se mesmo de um livro que, explorando questões que se poderiam prestar ao mais banal dos dramatismos, se escusa de neles mergulhar, para que nos permita a nós, leitores, exercer um pouco de mais inteligência a interpretar as tensões internas em todas as personagens. Quase todas elas têm o seu momento alto de disputa com Júlia, mas não descamba num pico histriónico. E, acima de tudo, tampouco isso sucede à própria Júlia, que acaba por resolver a questão da sua consciência de uma forma tranquila. Por outras palavras, ela caba por perceber o que é o mangusto.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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