Depois de termos falado dos ex-votos de Miguel Carneiro numa ocasião anterior, eis que nos chega às mãos uma colecção de outros tantos contributos a essa tipologia imagética, pelo mesmo autor, numa estratégia diferente. Este é um conjunto do que poderemos chamar de oito “postais”, os quais imaginaremos poderiam ser colocados num lugar propício e dedicado nas nossas casas, junto à estatueta do Santo Padre Cruz, um crucifixo de plástico ou num plinto decorado com uma renda macramé com o cálice ou a hóstia sacramental. Para além do formato da impressão, a diferença está na feitura das imagens, que utiliza a colagem, relativamente simples, no sentido em procurar menos um efeito de ilusão realista do que uma forte impressão gráfica de sobreposição simbolicamente verosímil, para as quais as cores, por vezes berrantes, e a qualidade de impressão, granulosa, contribui sobremaneira.
A parte de trás dos postais contém uma pequena oração. Variação a partir da passagem de João 10:11 (“Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas”), parece-nos que se trata de uma canção escrita e composta por um padre brasileiro contemporâneo. Nessa oração-poema-canção, o protagonista revela-se ovelha de Nosso Senhor, vai confessando a sua natureza volátil, e implora a Deus que ele exerça a sua autoridade para que jamais a abandone. Uma maneira de não nos tresmalharmos é termos um bom mapa de conduta, e eis como estas imagens poderão manter-nos no bom caminho. Só que o rebanho é bem outro, e a pastorícia exerce-se na fuga.
Na história iconográfica dos santos e mártires, é chave que possamos compreender de forma clara os atributos que os identificam – por vezes podem ser os instrumentos que os torturaram ou as consequências desses martírios, por outras a presença do próprio Jesus, identificando-se a lenda ou episódio bíblico. O substrato destas imagens pode ser mais ou menos identificável, mas o autor cria uma camada extra com os objectos que neles interpola. Por vezes, a operação é quase minimal – um retrato renascentista de um Papa (julgamos nós) apresenta a personagem com uma cara de lampreia, ou uma fotografia do Papa João Paulo II com cabeça de lagarto, de longa língua azul. Outras vezes, a composição é mais complicada – um São Miguel Arcanjo [falei de S. Jorge, mas não há lança] ganha a cabeça de Maria, inverte o braço para em vez de uma espada inverter uma cruz branca, e três porquinhos de barrete e lenço, estilo pastor da Beira litoral circa 1917 cirandam à volta da figura central. Outras, é até quase expectável pelo humor negro – uma fotografia do Padre Cruz citado acima torna-o um velho lascivo, rodeado de querubins barrocos e modernos, outro padre vê a cabeça explodida pela pomba do Espírito Santo e vários bracinhos de crianças roliças saem-lhe da batina... É quase uma animação de Terry Gilliam, congelada numa só imagem, mas provocando um súbito momento de horror. Talvez não de forma tão explícita, orgânica e revoltante como o trabalho de Fredox, mas no fundo querendo revelar as mesmas sombras da história.
A história dos sentimentos anti-cristãos e anti-católicos é complexa, e atravessa vários momentos, circunstâncias político-sociais e de equilíbrios de poder. A atitude do final Império Romano não é a mesma que a dos Protestantes, séculos mais tarde, e as conspirações dos puritanos norte-americanos não coincidem com aquelas tecidas por certos sectores do Islão. Naturalmente, o que está aqui em causa é uma diatribe, secular, contemporânea, politizada, ancorada no nosso próprio cadinho social e educacional: nós – uma certa classe de portugueses – herdámos esta cultura, e apesar de (nem todos) nos termos libertado da sua canga, não foi nem totalmente incólumes que o fizémos, nem temos, talvez, a certeza absoluta de termos atingido essa libertação. A instigação da “culpa” é talvez o maior pecado da Igreja sobre todos nós, e serão precisas vagas de outra aculturação ao longo de décadas para nos vermos livres dela. Ovelhas, seremos, desejando a nós próprios que nos tresmalhemos desse rebanho terrível, para mais à luz dos seus crimes históricos (ou presentes). Estes postais, portanto, bem podem ser visto como ex-votos eficazes nessa busca. Um exercício espiritual de exorcização desta instituição.
Nota final: um agradecimento ao autor, pela oferta dos postais.
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