O termo
“ex-voto” é a versão coloquial, objectificada, de uma expressão
latina mais longa: ex voto suscepto, “em busca de um voto”.
Esta última palavra descende de votum, que pode ser
interpretada como “aquilo que é prometido”, usualmente a uma
figura divina, em benesse de algo que se procura adquirir, ou como
gratulação de algo já alcançado. É portanto um movimento
paradoxal, centrífugo e centrípeto, de dar e receber, para fora e
para dentro, estabelecendo um elo, uma liga, uma ligação (uma
religião) entre
aquele que pede e a entidade a quem é pedido. Acto solene, mescla
dádiva e desejo. Se num momento poderia estar
associado a um acto verbal – ode, dedicação, prece, canto –,
estes votos ganhariam corpo material sob as mais diversas formas em
objectos tornados ex-votos. Estes não têm necessariamente
que surgir ou “nascer” como tal, podendo ser capturados do mundo
ordinário e transformados, ou ressignificados, através da dedicação
e/ou sacrifício dele mesmo à divindade em questão. Existem,
todavia, objectos materiais criados como tal.
Estas
práticas existem em muitas religiões por todo o mundo, e em vários
momentos históricos, não sendo de forma alguma um exclusivo da
Cristandade, independentemente do nome que empregamos. É um acto
antropológico multifacetado e complexo. Mas importa compreender que
se trata de um objecto materialmente existente – um círio, uma
pintura, um “milagre”, um registo, uma medalhinha, uma placa ou
tábua, ou até um objecto mundano que, consagrado, se transpõe
desse mundo mortal para um outro palco.
A mais
recente publicação de Miguel Carneiro, numa edição limitada a 100
exemplares, quer entrar numa linha de desenvolvimento da produção
de imagens que se associa a essas mesmas práticas religiosas, ainda
que num contexto secular, mas não por isso menos crente. Os
trabalhos que subjazem esta publicação são uma série de pinturas
que Miguel Carneiro havia desenvolvido entre 2019 e 2022, tendo sido apresentadas no espaço Verão, em Lisboa em 2021, e depois no Mira, no Porto, em 2022. O artista explica que estes
trabalhos são um “reenquadramento da tradição dos ex-votos no
século XXI”, expondo “quais as maleitas de que sofremos e quais
as entidades a que pedimos por intervenção” (comunicação
pessoal). Mas o objecto em si, este fino caderno, é fruto de uma
colaboração entre a Oficina Arara e o colectivo Matrijarsija, de
Belgrado, na esteira de muitas visitas, residências artísticas,
colaborações, remixes e combates que esse colectivo de
impressão, sobretudo serigráfico, do Porto, tem vindo a cumprir ao
longo dos anos. A publicação em si é em risografia que, como
sabem, mima em parte alguma da preparação de uma serigrafia, por
planos separados de cor, procurando depois as suas combinações na
impressão. A combinação foi de entre 4 a 3 cores, criando efeitos
cromáticos bem distintos. A costumeira – ainda que controlável –
falha de registos (isto é, do acerto entre os planos, o estar
“dentro das linhas”) resultante, neste caso, cria uma espécie de
acréscimo luminoso, de pátina de distância das imagens, legível
menos como deficiência de impressão do que hipótese de citação
histórica do substrato imagético a que Carneiro procura responder.
A pintura votiva em madeira, portuguesa ou de outras paragens, alguma
pintura de cariz religioso-decorativo com funções soteriológicas,
miniaturas, etc. encontrar-se-ão como substrato deste trabalho.
Pode
acrescentar-se ainda que, em parte, esta prática de pintura de
Carneiro (cuja formação é precisamente dessa área disciplinar, e
uma fase imediatamente pós-universitária parecia colocá-lo no
caminho certeiro da mais usual “carreira das artes visuais) é
influenciada ou pelo menos informada por um interesse, já várias
vezes levado à prática em colaborações, trabalhos editoriais,
visitas, diálogos e lavra própria, com aquelas artes de “artistas
sem formação” e que são conhecidas por nomenclaturas
problemáticas. Com efeito, a utilização de termos tais quais
“outsider art”, “art brut”, ou outras tentativas equivalentes
têm tão-somente um papel: o de policiar, a um só tempo, a
inscrição dessas produções num relato regido pelas elites do que
se constitui ou não enquanto “arte”, “arte maior”, e
consequentemente toda a dimensão social que lhe está associada
(escrita, recepção crítica, circulação social, monetização,
cachet cultural, integração em colecções, etc.) e, por
outro lado, a potencialidade do seu significado. As mais das vezes,
“outsider” acaba por servir como um sinónimo flexível de
“alienado”, “louco”, etc., providenciando uma clara chave de
interpretação da obra. Uma espécie de circuito fechado, “x pinta
assim porque é louco” ou “x é louco, por isso pinta assim”.
Desta forma, quaisquer das escolhas formais, por exemplo, sejam as
estratégias de figuração, composição, ocupação do espaço de
representação, aproveitamento de material, abordagens cromáticas,
etc., são domesticadas nessa nota explicativa, excluindo-as
de outras abordagens mais atentas à potencialidade do artista
individual. Não pertencem à História da Arte, ou se sim apenas a
título marginal, passando a estar numa outra faixa social e
discursiva.
Próximo
do interesse de Miguel Carneiro estará então toda uma história da
pintura votiva popular portuguesa. Como saberão alguns leitores
atentos deste espaço, o artista teve uma travessia pelo mundo da
banda desenhada ao longo dos anos 2000, enquanto cara-metade, com
Marco Mendes, do duo A Mula, e todas as suas publicações, onde
nasceu e viveu largos anos a figura do Monsieur Pignon, alter-ego do
autor, seguramente, e figura de uma complexidade actancial que
misturava a poesia ao arroto, a crua e crítica observação do mundo
em seu torno e um desinteresse irritado. Como discutimos em
Visualizing Small Traumas, Carneiro emprega “formas baixas”
da criação de imagens – os grafitos, as piadas boçais, os
trocadilhos ordinários, a figuração bruta, certos clichés
gráficos, etc. - para “espelhar a problemática de uma autoridade
difusa”. Daí que não haja propriamente “alvos” directos na
sua produção, surgindo representados de forma oblíqua por figuras
de autoridade genéricas e decalcadas de usos populares (o
“Capitalista”, o “Industrial”, o “Militar”, o “Diabo”,
etc.). O autor não está interessado numa mais tradicional
perspectiva histórica para a construção da sua desmontagem social
e política; prefere uma fragmentação da territorialidade para
poder lançar mão de várias tradições, mesmo se vistas como
contraditórias, para endereçar-se a um plano mais abrangente.
Essas
características manter-se-iam em larga medida na prática de
pintura, desenho e gravura do artista no período seguinte, quando
funda a Oficina Arara, cujos 12 anos foram celebrados num monumental
livro que lhe tenta arregimentar a história (Arara X + II).
Há toda uma produção que demonstra, a um só tempo, uma dedicação
às coisas do mundo, uma genuína preocupação e manifestação de
querer intervir, e uma fúria perante a contumácia na mais profunda
estupidez humana. Essa tendência repete-se em Ex-Votos, se
bem que com roupagens bem distintas.
Uma outra
informação extra-textual importante é que, se para Carneiro o uso
de títulos é importante, e informa a imagem em si, para esta
publicação recorreu-se de mais uma recombinação. Os títulos são
das pinturas originais, mas foram baralhados, e passaram a presidir
uma outra imagem, permitindo assim um grau de absurdo, quer a
montante, como se as legendas afinal não tivessem verdadeiramente um
sentido lógico, necessário, genuíno, e pudessem ser vistos como
apenas orações soltas e formulaicas, quer a jusante, abrindo todas
as possibilidades de ressignificações e aberturas. Portanto, em
parte, isto permitirá reler estas figuras, ou lê-las pela primeira
vez de uma forma livre em relação a esses contextos anteriores.
Mesmo que seja uma ficção olhar para esta publicação de forma
desirmanada a essas práticas anteriores.
O livro
apresenta – excluindo somente o verso da capa e contra-capa,
ocupadas por uma frase oracular (“Comeram-me a carne, agora que me
roam os ossos”, e os dentes são ossos, veremos que importância isso tem no fim) - 13 imagens. Número significativo. Dessas 13,
incluindo a capa, 9 são compostas por quadros cujo terço inferior é
ocupado por uma inscrição ou legenda. Apesar do que foi aventado
acima, da recombinação ao acaso, essa matéria verbal continuará a
manter um poder explicativo, não somente pela sua contiguidade
física, mas por partilharem qualidades materiais (ilusórias se
referindo-nos aos quadros originais, factual se pensando na impressão
presente) e por cumprirem aquelas funções previstas por Roland
Barthes, a ancrage (ajudam no foco perante o fluxo infinito de
significados da imagem) e o relais (providenciando uma
informação adicional que permite avançar uma noção de diegese,
storia, narrativa). A articulação entre texto e imagem
existe, e fará parte do (novo) programa de significado. Parte
dessas legendas estabelecem trocadilhos, ora com expressões
portuguesas consabidas (“devagar se vai ao longe” torna-se “de
bagaço se vai ao longe”) ora com fontes mais eruditas (a “nau
dos loucos” de Sebastian Brant torna-se “A nau dos poucos”).
Outras apresentam marcas de temporalidade ou deícticos que as tornam
desarticuladas de circunstâncias, permitindo um seu uso perpétuo
(“Talvez amanhã”, “Quem vier atrás que bata a porta”).
Muitas das
imagens mostram figuras advindas do reino animal, como aranhas,
serpentes, escorpiões, morcegos, criando uma fauna particularmente
simbólica, ou pelo menos capaz de despertar uma série de
associações que torna clara a natureza tétrica do projecto. Não
se adivinha um século XXI de conquistas de fortuna social e
económica, do mito do “progresso”, mas antes pelo contrário
algo sombrio e sem escapatória. Obliquamente, recorda um dictum
de Walter Benjamin:
“Nunca
houve um monumento
da
cultura que não fosse também um monumento
da
barbárie”.
E como veremos, uma das possíveis interpretações deste livrinho é
a da história de uma catábase do seu protagonista (já sem carne, é
toda a operação de lhe roerem os ossos, neste pequeno inferno de
papel e cores).
Há uma
atitude importante. Ainda que haja um “estilo” reconhecível no
autor, há também uma apropriação de certos modos de inscrição
da imagem, como a absoluta centralidade das figuras, a sua hierática
presença frontal ou de perfil, a simplicidade dos fundos, o burilar
maneirista das letras. Mas não se trata de forma alguma de uma
apropriação irónica que tendesse a uma diminuição das suas
fontes popularizantes. Mesmo os pormenores das figuras, que poderão
remeter para uma espécie de imaginário intemporal (nunca o
seria, mas são aquelas fições da Mitteleuropa que criam essa
ilusão) abrem a essa interpretação: os trajes das personagens
“vivas”, o uso de chapéus pelos homens, de coco para a plebe, a
cartola para o capitalista, a presença dos fantasmas de Hitler e
Mussolini na nau, os mafarricos e a morte de gadanha... Mas bem pelo
contrário, é um empoderamento dessas mesmas formas nos novos
propósitos previstos pelo artista contemporâneo, que parece
relançar os princípios da Dance Macabre (mas também algunas
princípios da caricatura política do modernismo, gravuras da
América Latina, e outras fontes) para os nossos tempos. Sarcástica,
esta prática, é-o. Mas os códigos empregues são revitalizados.
Se
insistimos numa natureza narrativa do livro, não é por uma espécie
de incapacidade em nos vermos livres dessa categoria na apreciação
das pinturas individuais, mesmo que transformadas (e daí...). Nem
queremos indicar que a existência de uma forma como a do códice
traz inerentemente uma organização férrea e inescapável. Trata-se
mesmo de uma atenção à maneira como cada uma das páginas se
articula numa putativa ordem interpretada como tal. Repare-se que a
primeira imagem (após a capa) se apresenta como uma porta
semi-aberta, convidativa, a um espaço obscuro. Recebendo-nos,
enrolada na porta, estende-se uma serpente branca, cega, de língua
bífida estendida. Não começa a história humana precisamente com
um convite de uma figura semelhante? Segue-se uma outra imagem com
outra porta semi-aberta, de onde espreita um esqueleto, declarando a
legenda que “começa” uma nova semana, prometendo algo positivo.
Mas desenganamo-nos logo a seguir, onde se torna patente que essa
esperança “talvez amanhã”... e a primeira figura humana surge
sangrando dos olhos, carregando uma cruz onde se eleva um diabo, e a
morte a fustiga com um chicote. Dos bolsos, cai toda a fortuna
arrecadada. Depois seguem-se imagens que poderíamos entender como as
de potenciais “pecados”, excessos, de álcool e jogo, de
escravaturas e guerras, pois, mais uma vez textualmente confesso, “O
mal nunca vem só”. Por último, fica aquele que bate à porta, sem
a fechar, já que a última imagem no interior do livro é um
escadório que se descerá (reforçando a ideia de catábase), junto
a uma árvore (de novo, do Paraíso de onde se foi expulso?), atrás
da qual se esconde a Morte, sorridente. E este sorriso, aliado a todos
os outros presentes nas caveiras do livro, é fundamental para
entender o cerne do humor de Miguel Carneiro.
A
contracapa apresenta um fantasma moderno (após a descida e encontro
com a Morte derradeira, finalmente?), lençol derretendo-se nas
marcas da pintura, oferecendo um cálice de vinho a quem o vê. Esta
figura recorda-me também o seu reemprego, talvez irónico, talvez
melancólico, mais provável ambos, de A Ghost Story, de David
Lowery (2017), uma comédia existencialista que tem afinidades com a
melancolia permanente de Carneiro. Esse filme, e este livro (e outras
obras) de Carneiro mostram como o ininterrupto e incapturável fluxo
histórico pode, ainda assim, ganhar um breve corpo num objecto
poético. E não haverá maior objecto poético paradoxal do que a
caveira, como professado por Walter Benjamin num anexim de Rua de
Sentido Único: “linguagem
incomparável da caveira [no original alemão, Totenkopfes,
“cabeça da Morte”]: completa inexpressividade – o negro da
cova dos olhos – unida à mais selvagem das expressões – o
sorriso da fiada de dentes”.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação.
Sem comentários:
Enviar um comentário