1 de janeiro de 2023

A Rainha dos Canibais. Miguel Rocha (A Seita)

Vivemos num tempo em que a sofreguidão da oferta e a imediatez do acesso acabam por dissipar a compreensão do esforço que a produção de uma banda desenhada implica, sobretudo num contexto em que a sua recompensa é quase nula, seja sob a forma mais baixamente material de benesse financeira, fama mediática, novas oportunidades, conquista de públicos, menos que alargados, adequados, e outros aspectos, seja sob a forma da sua recepção balizada e ancorada numa avaliação informada. Isso muitas vezes repercute-se pela dificuldade em que autores, de fartos currículos e competências artísticas e/ou literárias comprovadas, têm em encontrar vazão para darem uma maior continuidade ou celeridade a este território criativo. Por isso, sempre que um autor se ausente das prateleiras com novidades por um período igual ou maior que, digamos, três, quatro anos, subitamente parece ter-se “eclipsado”, e no momento em que surja algo novo, se fale de “regresso”. Miguel Rocha, um dos mais significativos auteurs da cena nacional (não apenas nas décadas em que esteve activo, arriscar-me-ia a destacá-lo em toda a história do meio) jamais se “eclipsou” da cena, e este não é um seu “regresso”. Pura e simplesmente não tínhamos um seu livro há mais de dez anos, e agora temos a oportunidade de ler cerca de 200 páginas de uma espécie de devaneio por um seu imaginário fantasmático, falsamente nostálgico e febril, alimentado pelas leituras de uma infância sedenta em aventuras.
Digo “nostálgico”, amaciando com “falsamente”, por razões que espero sejam claras. A Rainha dos Canibais é populado por ingredientes (localizações, personagens-tipo, situações e tropos, ou mesmo citações directas) e marcas estilísticas (certos enquadramentos, a ultra-estilização do preto-e-branco de alto contraste, os diálogos e a linguagem, muitas estratégias visuais) que recordarão toda uma massa da literatura e banda desenhada de “aventuras” que ditaram o imaginário ocidental desde sobretudo o último quartel do século XIX até à recente período. Todo um manancial de histórias de teor “colonial”, do intrépido europeu vasculhando os cantos mais recônditos dos mundos “selvagens” do Outro, onde se escondiam resistências terríveis à grande missão civilizadora europeia. De formas muito diferentes, por vezes politicamente progressistas, outras mais conservadoras, mas infelizmente contribuindo quase sempre para uma “história única” e monolítica (cf. Chimamanda Adichie) de África (mas igualmente outras paragens, não nos esqueçamos da noção de Orientalismo), falamos de um campo alimentado pelas ficções de Verne, Salgari, Conan Doyle, Meadows Taylor, Rudyard Kipling, Pierre Loti, Rice Bourroughs, Henrique Galvão, entre tantos outros, e que teria repercussões sem fim no cinema, jornais ilustrados infantis e na banda desenhada (consulte-se o trabalho de Mark McKinney, por exemplo, para estudar essa questão no campo da banda desenhada franco-belga). Pratt, como talvez não deixasse de ser, é um fantasma permanente, mesmo a nível de composições, cenas específicas, tratamento de cenário, e até os breves momentos de surrealismo e dúvida quanto ao realismo do registo (prática que também Hergé explorava), ainda que acreditemos estar “presente” para se cumprir uma maneira crítica, ainda que velada. Poderemos ler, então, A Rainha dos Canibais como uma ode, ou antes uma cantiga de escárnio, ao imaginário euro-colonialista, paternalista, imperalista e chauvinista que tanto tempo pautou estas produções (e, se formos atentos, ainda pauta, inclusive em autores portugueses da contemporaneidade).

Em suma, o livro de Rocha vasculha todo um corpo de ficções que foram eficazes na construção daquilo que Edward Said chamou de “geografias imaginárias” e que nutrem muitas das ideias feitas ou distorcem a percepção dos factos mesmo nos dias de hoje. A Rainha não é uma “revisitação” tão-somente, “homenagem” ou “recuperação”, mas antes um gesto de desmontagem sarcástica desse mesmo imaginário através de uma estrutura quase absurda. Se sinopse for possível, diríamos que seguimos os passos de uma mulher branca, acabada de chegar a “África”, a qual, depois de ser perder acidentalmente na selva, caminha em companhia de uma mulher africana, atravessando as mais díspares
vivências e culturas locais, que actuam quase como “cromos” dos estereótipos das ficções colonialistas. Acima de todos, a obcessão na classificação dos povos e a constante comparação entre aquilo que é visto como “cru” e “cozido”, “selvagem” e “civilizado”...


Um estudo de Rita Chaves, sobre a literatura colonial portuguesa, e o modo como ela exercia um poder de construção de hierarquias de poder social e simbólico, sublinha a “tensão centralizadora entre o homem e a terra”, e o marido da protagonista, o primo Armando, é o epítome caricatural do colonizador. Não há frase, gesto, atitude ou consideração que faça que não queira demonstrar a superioridade do branco europeu face a toda ontologia “africana” (não é por acaso que não temos uma coordenada precisa de onde todo este livro tem lugar). Ele é a representação da exclusão biopolítica de África. Não é, então, inocente que o autor escolha como protagonistas da sua história uma mulher branca e uma mulher africana, “forçadas” a aventurarem-se juntas ao longo de inúmeras paragens e antagonistas. A protagonista branca tem nome, Bárbara (pensem na etimologia do nome, neste contexto!), mas é raras vezes chamada por ele, ora reduzida a um “prima” (falsa) pelo marido, ora ao termo “M'Zungu”. A amazona negra, K'Merit, se a dado momento captura Bárbara, rapidamente progride para uma solidariedade de género. De certa forma, é tal qual um Thelma & Louise replantado num género e contexto distintos. Juntas, discutirão não apenas as paisagens, fauna e flora, numa compreensão do entorno, mas também debaterão questões de fé e religião, liberdade e sexualidade, e de dezenas de aspectos sobre o relacionamento entre humanos, animais, o corpo e a terra. Existem momentos, mesmo que breves, de diálogos, que são de uma forte compreensão, ternura, e de descobrimento mútuo.

Rita Chaves elenca ainda alguns dos títulos do seu corpus, demonstrando como “para o sentimento de desafio que se pretende valorizar concorre o impacto do desconhecido”. Daí que as obras proclamem uma “África portentosa”, “África misteriosa”, “Terra conquistada”, “Terra da promissão”, “Terra ardente”, “Terra do feitiço”, etc., etc. (v. “A literatura colonial e o confisco do imaginário”, Portuguese Cultural Studies, vol. 7). Rocha cria um mecanismo paradoxal nesta sua ficção. Se por um lado, des-historiciza e des-localiza o locus desta aventura – não estamos a endereçar uma verdade histórica, e as paisagens, vilas, aldeias, cidades, savanas visitadas são ficcionais e espelham o imaginário estereotipado – por outro mima as preocupações de catalogação redutora próprias do colonialismo para “identificar” e “classificar” (mas jamais garantir agência ou autonomia política) as pessoas que retrata.



Veja-se a cena (pg. 41), que é todo um programa político concentrado, em que Armando cataloga “uma rara colecção dos mais extraordinários hominídeos das terras selvagens” (sublinhado no original), que a personagem ainda identifica como sendo “demonstração viva dos princípios da evolução das espécies”, portanto reforçando a ideia de uma hierarquia de valorização, mostrando depois, qual zoo humano (nada de diferente das práticas “antropológicas” da época, inclusive na Exposição do Mundo Português, em 1940) o “homem-macaco”, a “rainha amazona”, o “canibal”, o “feiticeiro voudu”, o “homem-leopardo” e o “pigmeu”, tudo tropos ou personagens-tipo, independentemente da sua ancoragem histórica, do imaginário indicado. Um episódio, iniciado na página 104, por exemplo, segue alguns dos princípios “didácticos” de muita da banda desenhada das décadas de 1930 a 1960 cujo propósito era naturalizar e domesticar o conhecimento da “azáfama colorida” daquelas paragens junto aos seus jovens leitores.

Mas a ficção de Rocha estende ainda essa febril catalogação, quer empregando termos retirados da literatura antropológica, quer enunciando nomes de povos e tribos, alguns dos quais citando fontes fidedignas, alguns outros usando línguas como as bantu, o suaíli, crioulos e até esperanto ou afrihili. Se existem termos claramente históricos – “Mangiapatate” vem de um termo derisório para designar colonos alemães, “come-batatas” – outros são claramente provocações, mas que obrigam a compreender a sua razão de ser – o uso de “Bombokas”, por exemplo, serve menos como humor num primeiro nível, do que uma chamada aos contínuos usos, hoje, de marcas comerciais claramente racistas em produtos, ou imagens, originários “das colónias” (Mokambo, Conguitos, O Pretinho do Japão, o francês Banania, etc.).

É preciso ser-se cuidadoso e atentar ao facto de que esta pseudo-mimese de Miguel Rocha não procura fazer favores a certas expectativas sociais e políticas bem-pensantes, em que o discurso embadeirasse de forma explícita a acusação dessas situações. Tal como havia explorado os crimes do Estado Novo em As Pombinhas do Sr. Leitão através da sua repetição sem fantasias de redenção (se me permitem, algo que analisei ao longo do estudo em Visualising Small Traumas) também em A Rainha o autor explora directamente os crimes e preconceitos do nosso passado colonialista, histórico e imaginário/cultural, de modo directo, sem dó nem piedade, deixando à responsabilidade dos leitores entenderem onde e como se encontram (e combatem, corrigem, apagam). Talvez alguns leitores caiam na esparrela de entender tratar-se dos mesmos mecanismos de mimese acríticos que se escudam no humor ou nos géneros explorados, mas desenganem-se.


Um dos domínios importantes a atentar é a estrutura do livro. Note-se como o autor cria um ritmo constante em que cada página, oblonga, pode ser lida como um capítulo a termo inteiro, como se se tratasse de um episódio que tivesse sido publicado num jornal ou publicação regular, diário ou semanal, numa espécie de
serial. Mais, a aparente fragmentação da narrativa serve dois propósitos, mais uma vez. Um deles estético, reforçando o mecanismo de reflexo nostálgico das leituras antigas, e outro do programa político já discutido. Em primeiro lugar, notarão os leitores que existem saltos por vezes drásticos de um momento para o outro, como se “faltasse” um episódio. Recordem-se que, apesar de alguns pontuais exemplos de banda desenhada coligida sob a forma de álbum, sobretudo no espaço francófono, e algumas primitivas colecções de tiras no norte-americano, aquela tendência a que chamámos há mais de uma década “recuperação da memória” apenas ocorreria de forma sistemática e sustentada a partir do final dos anos 1990, ou mesmo 2000 (e mesmo assim com muitas tentativas e erros). Isto significa que o mecanismo dos arquivos, edições integrais, colecções completas, não eram de todo garantidas aos leitores. A esmagadora maioria das produções eram serializadas e quase exclusivas para uma leitura imediata, com o seu consequente descarte. Há notícias de leitores a título individual a montarem scrapbooks coligindo o que podiam, mas haveria falhas. Pois bem, no caso deste volume é como se tivéssemos nas mãos uma colecção não-institucional, mas pessoal, dessa putativa série, e nos faltassem algumas peças. Todavia, e eis a maravilha da arte da banda desenhada, que tira partido de forma inigualável das elipses, é como se essa ausência, ou perda, não prejudicasse de forma alguma a sua emergência como história, como texto passível de impactar o imaginário. O próprio autor afirma, em comunicação pessoal, que essa perda “alimenta até o interesse pelo enredo”.

Por outro lado, e regressando à questão da catalogação, desta feita territorial (e actancial), sublinhe-se o uso constante de títulos cambiantes - “Lakuta”, “Terra-Nulius”, “Pepo Malkia”, “Aka-Aka. A borboleta que bebe nos sonhos”, “Safari Khaki”, “Gata-Goto”, etc.), quer perfeitamente integrados numa vinheta, quer separados numa página titular, e sempre mudando o tipo de letra, criando uma divertida confusão em relação a que tipo de divisão estamos a ver: mudança de territórios?, diferentes episódios ou capítulos?, aventuras distintas?, explicações específicas de algum aspecto da diegese?

O autor não parece muito interessado, nesta tessitura quase superficial de colagem, em desenvolvimentos psicológicos romanescos, tal como tampouco deseja estruturar um discurso demasiado programado sobre a sua temática central. É contra – num sentido lumínico, comparativo e literário – aquele imaginário colonialista que Miguel Rocha cria esta tessitura sarcástica, mesmo que não se revele como tal. Mesmo assim, as personagens feminimas enquadram todos os eventos em seu torno de uma maneira interessante e vivaz, ultrapassando de longe o dito “teste Bechdel” (por mais patético que este possa ser), e garantindo-lhes uma agência que ultrapassa até a própria mecânica da narrativa – a própria noção de “aventura”. Elas vivem, e é só. Estamos em crer que Miguel Rocha, tal como Filipe Abranches o cumpriu com o semi-onírico e metatextual Selva!!!, e como outros autores parecem preparar (Nuno Saraiva), utilizam estes mecanismos para “coçar” essa visão nostálgica da banda desenhada lida na infância ou juventude (a Falcão, o Mundo de Aventuras, etc.), mas deixando as pistas para um seu abandono em nome de um crescimento presente e atento às transformações sociais dos nossos tempos. Falámos de “ devaneio”, e essa palavra quer dar conta de uma atitude que espelha, não tanto uma maneira de eleger e tratar o tema através da sobreidade ensaística, mas antes um mergulho na barbárie dessas ideias fantasmáticas que persistem.


Regresso que haja, é ao papel. Miguel Rocha domina aqui um desenho livre, vigoroso, célere, a pincel ou outros marcadores que se lhes aproximem, moldando a assinatura gráfica deste livro junto à escola do alto contraste, que não lhe é comum ou constante. O autor já havia experimentado esta natureza, diluída noutras práticas, ora em Beterraba (com acrílicos e a cor, mas com a mesma verve) ou em “Miúra”, mas aqui ganha maior urgência. São muitas as vinhetas de fundo branco em que as personagens surgem de um aglomerado de uma mão-cheia de traços, mas também aquelas ocupadas por centenas de acumulações que vão densificando a paisagem, o ambiente ou a noite mostradas. As páginas ora surgem arrumadas e regulares, ora mais dinâmicas, mas a composição é sempre inteligente e servindo a força do momento retratado (uma favorita é a página 197). Existem momentos de grande acção, e outros de contemplação. Silêncio absoluto, e fartos diálogos. Falámos de Pratt acima, mas a verdade é que as citações, ou ecos gráficos, são muitos devido à longa e gloriosa história do alto contraste, inclusive nestes géneros, de Caniff a Muñoz. A página 31 é quase abstracta, e quase parece destacar-se do restante trabalho, mas reforça a filiação do estilo de desenho, por mim tentada. E se há momentos em que as paisagens ganham uma vida própria como o Coconino de Herriman, mantém-se a mesma linha. Mas Rainha não é, de todo, um mero repositório de formas históricas ou citações. O domínio de Rocha é total, e veja-se a página 196, a partir da qual seria possível criar uma magistral lição, mostrada acima sem texto.

O autor tirará partido de muitas piadas e citações pessoais (que não saberei identificar por completo), que adensarão o humor, ou outros sentimentos. É o caso do emprego de um capitão de barco a vapor, subindo o rio à Charles Marlow ou Charlie Allnut, protagonizado por uma figura que recordará o amigo e co-autor saudoso, João Paulo Cotrim. Um pequeno relampejo de reconhecimento melancólico e poético para quem, com Rocha, criou Salazar. Mas o rio não cessa, e voltamos à célere acção das protagonistas. Arriba.

No fecho do livro, os habitantes da caverna, estranhamente formados pelos princípios da Igreja Católica Apostólica Romana, incessantemente citando frases em latim (macarrónico), tentam imolar a protagonista, e gritam “ecce finnis”. Mas não é verdade, pois não apenas a capa do livro indica ser o “tomo 1” como no seu fecho anuncia-se “a seguir”. Há de facto planos para a continuidade do livro e destas aventurosas mulheres? Ou terminará assim, e Rocha joga com essa expectativa? Não é o “a suivre” ou “continua” uma assinatura estrutural dos textos que está a mimar, afinal, e que seria obrigatório como ponto estilístico mesmo que não esteja a “declarar a verdade”? Logo na primeira cena em flashback no início do volume, duas amazonas montadas em zebras discutem a chegada da protagonista, e uma diz, “isto não começa nem acaba aqui”, respondendo a outra “Mas, as histórias têm princípio ou fim?”. Algumas têm, não tivesse Aristóteles razão, mas mais uma vez essa é uma estrutura eurocêntrica. Em algumas tradições africanas, a relação do acto de contar histórias têm uma relação profunda com o fogo (o “trazer a lume” no mundo das publicações de papel), sendo ele a fonte incessante das histórias, dele sendo retiradas, a ele regressando... Tendo em conta a natureza metatextual claríssima de A Rainha do Canibais, não nos surpreenderia que fosse um ciclo fechado sobre si mesmo, surgindo então como se estivéssemos a ler algo que vem de um passado, felizmente, interrompido.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela partilha do projecto e algumas impressões, e aos editores, pela oferta do volume.

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