É claro que, estando nós - portugueses, brancos, criados num berço católico/cristão, capitalista-liberal, etc. - do lado dos perpetradores, queremos sempre “dourar a pílula”, “pôr água na fervura” ou até, pior expressão, “branquear o passado”, desresponsabilizando-nos da nossa própria herança cultural e histórica. E queremos defender, por vezes com unhas e dentes, aquelas coisas que nos parecem ser não só inocentes como até positivas (os jardins zoológicos, o Paris-Dakar, o programa Príncipes do Nada), mas que no fundo apresentam sempre uma visão perniciosa e única das coisas e das quais muitas vezes é difícil libertarmo-nos. Os livros de Tintin, por exemplo, pertencendo à nossa infância - querida, inocente, nostálgica, plena da insouciance citada pelo autor do livro que trazemos à discussão (pg. 30) - têm de ser defendidos precisamente porque são sinal dela: atacá-los é atacá-la, defendê-los é defendê-la. Só crescendo é que nos percebemos da possibilidade da sua destrinça final.
Os propósitos são claríssimos, sobretudo no poder transformativo do diálogo desses textos e dos instrumentos culturais dos nossos dias: “produzir uma genealogia de temas coloniais na banda desenhada envolve perguntar como é que os elementos coloniais são transmitidos e modificados. Hoje em dia esse processo tem lugar, em parte, através da redistribuição de materiais do arquivo colonial, tornados acessíveis de novo pelos historiadores, e outros, através de debates entre indivíduos e grupos diferentes com elos à era colonial, e através da transformação da França pela imigração pós-colonial” (140, repare-se novamente a premente proximidade com a realidade portuguesa). “Os traços textuais destas questões perturbadoras na banda desenhada merecem uma investigação séria e sustentada, pois elas informam o conteúdo e a arte” (4, sublinhado no original), contrabalançando a falta de críticas a nível ideológico, social e histórico na banda desenhada - sentida sobretudo no circuito da banda desenhada francófona, e até mesmo da sua recepção crítica e académica. É portanto isso que McKinney, pelo menos em parte, corrigirá ou colmatará.
Tendo em conta que, apesar da diversidade contemporânea, a bande dessinée que preenche o corpus principal deste livro é de um tempo em que corresponde à mais presente das culturas populares, “uma área-chave para a disseminação e contestação do imperalismo” (43, sendo estas mais de disseminação do que de contestação, constituindo mesmo uma “pedagogia visual-textual do império”, 49, a qual doutrinava as crianças francesas, 57), o fito é compreender as origens da construção de um determinado imaginário que ainda não foi totalmente abandonado, e que “determina o que se mantém do colonialismo e do racismo na banda desenhada francesa actual, e a partir daí compreender até que ponto a banda desenhada foi descolonizada, e até que ponto se mantém uma formação cultural colonialista” (29).
O autor estuda igualmente o modo como muitos destes clássicos são recuperados e institucionalizados de uma maneira que parece impedir que possam apresentar facetas criticáveis politicamente, desde o uso dos nomes de Alfred e l’Alph’art para prémios maiores às reedições acríticas e descontextualizadas (mas como indicações tais como “clássicos de sempre”, ou coisas quejandas), republicações as quais “levantam questões sobre a disseminação da ideologia e representações coloniais” (27).
Sendo a esmagadora maioria desses livros textos infanto-juvenis, eles tinham necessariamente um papel pedagógico, de transmissão de valores. Não se pode querer defender a sua importância educativa e depois negar as lições, ou querer que exista um entretenimento totalmente desprovido de inscrição ideológica. Estes trabalhos acabam por criar a tal pedagogia do império, com a sua história única: “a representação dos colonizados e dos seus países como exóticos e subalternos, acentuando as façanhas [achievements] imperialistas francesas nos espaços colonizados” (50). O que é que estes livros faziam (e fazem, daí o problema e a necessidade de os debater)? “Traziam (e trazem) Outros exóticos e colonizados para os lares de crianças francesas (e belgas, e americanas [e portuguesas]) - a colecção de banda desenhada agrega e apresenta uma disposição de outros étnicos exoticizados” (64): personagens vindas de locais exóticos como a Índia, o Congo, Vénus ou o Tibete, o país das múmias, ou das orelhas quebradas ou do ouro negro. Mais, não é somente o modo como os livros transmitiam a noção do programa colonial, como ele mesmo era transformado imaginativamente por esse meio e os seus géneros mais habituais. A aventura colonial é sempre uma aventura (associando-se assim ao género da prosa e da banda desenhada sobretudo com um público infanto-juvenil masculino que vem desde o século XIX, se não de antes), ou seja, “o colonialismo experienciado pelos europeus como uma aventura”, cujos avatares ao longo do tempo com muitas bandas desenhadas e temas “ajuda a reabilitar o colonialismo francês enquanto um glorioso épico nacional” (144).
A “genealogia problemática” (104) é-o sobretudo nas estratégicas como construíam as representações dos colonizados. Os estudos específicos e close readings de certas obras mostram como existiam identidades normativas (usualmente parisienses, formando-se mesmo “colonizações internas”, 62) contra as quais todas as outras surgiam como diferentes, por vezes “grotescamente” (vejam-se os estudos dos comportamentos, dos empregos da língua, das representações, das relações criadas entre personagens, e até os próprios nomes das personagens subalternizadas, quase sempre recorrendo a nomes de comida - Coco, Banania, Kokoa, Kacoco, etc., etc.) e necessitando de uma qualquer missão de educação.
O autor dá conta de muitas contra-narrativas na própria época de publicação de muitas destas obras, invertendo assim aquela argumentação, que muitas vezes peca pela falta de informação mais básica, ou talvez até mesmo de vontade em apreendê-la, que as obras “são do seu tempo”, como se nesse tempo todos pensassem da mesma maneira. Citam-se as contra-exposições, os jornais escritos por movimentos anti-colonialistas, alguns dos quais assinados pelos próprios subalternizados (a figura de Ho Chi Minh, por estar presente num dos livros, é largamente estudada) ou até mesmo os escândalos e críticos da época contra o tratamento desumanizante das pessoas, sobretudo aquelas trazidas das colónias para participarem dos “zoos humanos” das exposições (v., p. ex., pgs. 80 e ss.). E a consciencialização desses outros posicionamentos é de uma extrema importância pois fará compreender, infelizmente, que a banda desenhada, sendo um meio subsumido historicamente a um número fechado de géneros, estratégias de distribuição e circulação e de públicos-alvo, sofreu a consequência de falta de diversidade e de crescimento cultural interno durante um longo período. Contrastando com essa situação, a banda desenhada actual já consegue conquistar vários graus de discurso, ainda que lhe seja difícil conquistar espaço social de discussão idêntico ao de outras linguagens, como o cinema ou a literatura. Não deixa de ser paradoxal ver a Casterman a editar livros tais como Africa Dreams, do casal M. e J.-F. Charles e Frédéric Bihel, ao mesmo tempo que, instada pela Moulinsart, não altera as formas de re-editar os tais “clássicos de herança colonialista”.
Por isso, mesmo as subversões que se poderão verificar de quando em vez, no seio da banda desenhada, na época ou nas épocas subsequentes, servem para “restabelecer as fronteiras” (75), uma vez que essas representações nunca se dirigem a uma crítica verdadeira da violência que o colonialismo representou (representava, representa?) para esses mesmos povos, e muito menos a perpetuação da sua integração nos regimes económico-financeiros imperiais, que ainda hoje sobrevivem mesmo que de formas diferentes.
Como havíamos indicado, trabalhos mais recentes também são estudados e citados, mas não são todos necessariamente conducentes de um discurso anti-colonialista ou crítico em relação à história. Apesar de entrarem “outros factores também, como o grau e as formas de integração política, consciência histórica e identificação étnica da parte dos artistas” (91), isso não significa que se vejam obras de sinal idêntico. McKinney identifica mesmo uma tipologia de abordagem aos colonialismo (sobretudo em relação às exposições coloniais, mas que nos parece ser programático de todo o projecto), a saber, as atitudes “comemorativa-nostálgica”, “carnavalesca colonial” e a “crítica-histórica”, através de estratégias de renovação, reescrita e replicação intertextual. Algumas obras mesmo recentes são vistas como reproduzindo e perpetuando todo o discurso positivo sobre a “missão civilizadora” dos poderes coloniais (Les bâtisseurs d’empire, de Serge Saint-Michel e René Le Honzec), outras algo ambivalentes (Le centenaire, de Jacques Fernandez) e outras ainda “notavelmente” críticas (como Le chemin de Tuan, de Clément Baloup e Mathieu Jiro). Todavia, são muitos os títulos citados e debatidos e contrastados entre si, com maior ou menor profundidade. Na verdade, a prosa de McKinney, empregando um aparato crítico consolidado e vasto, torna-se por vezes contraproducente a uma leitura mais fluida, assegurando-se mais o propósito científico do que o da leitura prazenteira; contudo, será este um problema num objecto desta natureza? O rigor, o ancoramento documental e contextual é mais importante que a breve divulgação superficial.
Um dos argumentos muitas vezes esgrimado na defesa destas obras é que o racismo também existe da parte dos “outros” em relação a “nós”. O problema dessa afirmação não é que seja falsa, mas antes desequilibrada e que dispensa a compreensão das “realidades históricas do colonialismo e do racismo” (28) que a deveria qualificar. A identificação de um problema não é suficiente, é preciso compreender qual é a equação envolvida, e em questões raciais, tais como sexuais, por exemplo, não há comutabilidade: a violência pontual que as mulheres podem exercer sobre os homens não é de forma alguma idêntica à sistemática e estrutural violência que está instituída numa sociedade patriarcal em relação às mulheres, e o racismo que possa ocorrer nalguns locais em relação aos brancos não é de forma alguma ao peso de 500 anos de história de escravatura enquanto princípio basilar de um sistema de exploração económica e especulação financeira, destruição sistémica de culturas e tecidos sociais locais, criação de dependências económicas duradouras nem desinscrição cultural e política dos povos colonizados (ainda hoje em curso, por exemplo, na manutenção da ideia de “clássicos”, “literatura mundial”, “berço da cultura”, etc. em relação a “culturas locais”, “literaturas africanas”, e por aí adiante). Cada caso individual deve ser alvo de justiça, como é óbvio, mas as segundas relações são elemento permanente - por vezes visto como “normal” (“oh, menina, era só um elogio!”, “eh, pá, é ou não verdade que eles não falam bem português?”) - da nossa sociedade, logo, deveremos responsabilizar-nos em primeiro lugar, antes de procurar o que se erra noutras paragens.

O debate de McKinney emprega, portanto, vários instrumentos e dedica-se a várias frentes de atenção, desde os veículos de circulação das bandas desenhadas estudadas até aos complementos autorais possíveis de coligir, sem jamais esquecer a contextualização histórica, em todas as suas dimensões. Estando o foco ancorado nessas obras mais antigas, compreende-se a genealogia estabelecida, mesmo que o autor precise que muitos outros títulos poderiam ser citados e estudados (nos Anexos críticos, encontramos alguns dos instrumentos de identificação e cômputo dos elementos pertinentes). Este é, portanto, um contributo de uma importância extrema, não apenas no que diz respeito ao próprio território da banda desenhada mas até mesmo para o que compõe o tecido social das nossas sociedades contemporâneas. É um gesto que contribui para “um alinhamento com os desenvolvimentos da pesquisa académica, a publicação, e uma intervenção no debate público sobre como perspectivar a história colonial e como tratar as minorias pós-coloniais” (120). Lição a qual deveria ter reverberação em Portugal.
Como já é habitual em relação a obras de cariz académico, colocámos uma série de perguntas ao autor deste volume, que teve a amabilidade de as responder. A entrevista encontra-se aqui.
A pedido do autor, fica aqui a sua página, na qual encontrarão mais informações sobre Mark McKinney. Como havia acontecido com o artigo sobre Tintin, a plataforma Buala publicou este texto no site deles, e aqui fica o link directo. Obrigado!
Nota final. Agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e ao autor, pela sua intercessão e simpatia.
4 comentários:
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