A opção de eleger um universo com animais antropomorfizados é uma opção que se revela, graças a certos estudos recentes, como um instrumento pedagógico bem mais eficaz do que a tentativa em “falar da realidade” de forma directa. As crianças não são estúpidas, mas há sem dúvida alguma limitação nos processos cognitivos, que se vão formando ao longo da vida (siga-se Piaget ou seja quem for na descrição desse desenvolvimento). Mais, o seu uso para o ensino de mecanismos que possam ajudá-los a se defenderem de vários tipos de ansiedade, de projectarem situações hipotéticas ou imaginárias nas quais jogam a sua afectividade, emoção e poder de decisão, ou até somente como plataforma de aquisição de conhecimentos e experiências está atestado. É um grande desafio e risco escolher esta via para um tema tão premente, e historicamente preciso (não se trata de uma realidade natural ou que faça parte da experiência contínua das pessoas). Será ela uma ferramenta eficaz para compreender situações tão complexas, multifacetadas e permanentemente mutantes como a da “crise económica”, que é tão produto como produtora do tecido social, cultural e político? Por outras palavras, em que se inscreve e que ela mesmo cria, a um só tempo? Se, de acordo com John Morgenstern (Playing with Books: A Study of the Reader as Child) se verifica de facto uma usual repressão de aspectos da vida humana como o horror, a morte, o sexo e a ironia, como abordarmos um tema como este, no qual a distância irónica e a consciência dos abusos permitidos pela situação é necessária?
Não há falta de livros que tentam, de uma forma sucinta e simples, tornar mais acessíveis determinados problemas cuja complexidade muitas vezes parece derrotar quem deseja deles aproximar a compreensão, derrota essa muitas vezes esmagadora logo à partida. Os volumes Para principiantes (da D. Quixote) ou a colecção Já percebi! (de Kellie Gardner e colaboradores, projecto da Flammarion e, por cá, da Eixo) fazem parte da nossa memória pessoal, aplicadas não somente àquelas coisas que as crianças e adolescentes imediatamente quererão saber porque fazem parte do seu mundo visível – as flores, os animais, as máquinas, as estrelas – mas igualmente àquelas que parecem ser mais intangíveis e imateriais (nunca o sendo), como conceitos, pressupostos, categorias culturais. A “crise” é uma dessas realidades, carregada que está numa rede densa de tantos outros conceitos intimamente relacionados, e muitas vezes nem todas as suas facetas são claras, por mais informados que sejamos enquanto cidadãos activos no nosso sistema político, social e cultural. A crise explicada às crianças trata-se portanto de um desse tipo de gestos, e se não mergulha na ironia de forma directa, nem procura explicitar todos os factores envolvidos “na realidade”, apresenta uma versão suficientemente simplificada que permite o início da discussão (um livro dito infantil nunca se lê somente de capa a capa, mas deve tornar-se parte do diálogo permanente entre pais e filhos, educadores e educandos, factor da construção de identidade).
Em breve, falaremos do projecto To Whom Who Keeps a Record (Abonnenc, Pestana, Abranches) o qual faz menção a projectos educativos “de esquerda” dos anos 1970, tal como os livros de propaganda de banda desenhada chineses ou angolanos, ou o Livre d’histoire… Esses são projectos que claramente demonstram como é impossível atingir-se uma qualquer posição para além (ou acima) das ideologias. Quer dizer, não há qualquer discurso ou posicionamento possível que esteja de fora de uma qualquer construção ideológica; a defesa de que se fala a partir de uma “posição a-ideológica”, “neutra”, “objectiva”, as mais das vezes relaciona-se com os discursos vigentes do poder, o que significa, no nosso caso, aos mecanismos de construção societal burgueses, capitalistas e dirigentes. O seu segredo está em apagar a possibilidade mesma de outra alternativa, ou se ela for indicada, será sempre vista como “utópica”, “idealista”, “nefelibata”, “irrealista”, “inconsequente”. De que posição falava afinal Fukuyama para declarar “o fim da história”?
A assunção de uma posição clara, a revelação de quem fala e de onde fala é necessária para a clareza desse mesmo discurso. Ora este livro pretende, através do seu mecanismo aparentemente simples de apresentar duas histórias, duas versões de uma mesma realidade (voltamos aqui à questão de os factos não existirem por si só, mas se constituírem através dos discursos que os apresentam), ser visto como “objectivo”, como “equilibrado”, deixando que os leitores se decidam por eles mesmos conforme a versão que lhes fizer mais sentido. Mas isso ocorrerá de facto?
É que a própria forma como elegemos os elementos a explicar, a opção em tornar visíveis estes e não aqueles factores, o modo como se narra a sua relação e preponderância, fará desde logo surgir uma perspectiva, que não se corrigirá, seguramente, com a tentativa de ver as coisas por outro prisma, uma vez que esse prisma, emergindo como “diferente”, “alternativo” no seio de um outro – que se vê não como “prisma” mas “realidade” – será sempre também visto como “insustentável” senão mesmo “ficcional”. Como se entenderá, a nossa preocupação está em não diminuir a metodologia da leitura crítica da chamada literatura infantil a abordagens temáticas, sobre as suas matérias e conteúdos, mas antes numa atenção particular para com as suas estratégias discursivas, atentando sobretudo à lição estruturalista e pós-estruturalista (ainda que sem abusos) sobre as relações entre a própria linguagem (aqui devendo englobar todo o tipo de estruturas sígnicas, inclusive as imagens e a suposta “realidade”).
O livro é um instrumento eficaz, curioso e não sem inteligência e humor para dar início a essa aprendizagem, e torna-se ainda mais agudo - para nosso próprio exercício de adultos - tentar compreender o que é deixado “de fora”… Por exemplo, não é explicado que parte das consequências da crise não são suportadas nem pelas abelhas (as quais têm acesso a mel produzido por outras abelhas) nem pelos ursos (que sempre arranjarão maneira de encontrar dietas de engorda alternativas, ou pura e simplesmente aparentes), mas sim por outras criaturas… Se seguirmos a analogia animal que animais escolheríamos? As pulgas? Seja como for, a crise, que de facto é provocada por abelhas e ursos, é “paga” por terceiros, excluídos desta pequena narrativa (a menos que as vejamos integradas no corpo do urso).
Onde estão os conceitos de co-responsabilidade dos emprestadores, e os seus cantos de sereia? A política do trash for cash? As políticas fiscais desajustadas aos contribuintes diferentes? A forma como a conversa do desregulamento apenas funciona numa – permitindo que as abelhas-banco recebem mais mel para voltarem a multiplicá-lo quando o emprestam ao urso, mas não se fecharem colmeias quando não há mel a escorrer? Onde está a correlação entre a dieta do urso e a devolução do mel consumido? Onde está a ordenação das várias espécies de ursos, desde os imensos Kodiak que obrigam os pandas a estarem descansados, que lhes enviavam potes de mel, para depois os fustigarem por não fazer nada mais que mastigar bambu? Onde está a entrada de factores como a energia barata, a resposta concertada às outras florestas, a necessidade de equalizar a produção dos vários ursos entre si? Onde está a promessa gorada da solidariedade da união de ursos ou animais?
É claro que não podemos acusar o livro presente por optar por explicações quasi-monocausais, nem apresentar uma dimensão mais ou menos unitária da direita e da esquerda, mas é a sua existência que nos permite projectar e imaginar como é que a narrativa continuaria ou se moldaria para integrar todos esses problemas.
É então A crise explicada às crianças um instrumento provavelmente necessário para muitos pais e educadores, eles mesmos (nós) forçando-se ao exercício que os autores seguiram de imaginarem o outro lado da questão, e depois procurarem, quer na leitura quer nas vidas reais, perceber que caminho se deve trilhar a partir do centro do livro…
Tendo em consideração a experiência de Nuno Saraiva, no campo da banda desenhada mas também no da ilustração editorial e outros, não podemos dizer encontrarmos aqui um campo de inovadores gestos do autor. Tudo se pauta por uma comedida expressividade, clara, sem dúvida, linear e respeitadora do propósito narrativo do livro, mas sem que se nutra uma qualquer torção interna ora na composição do livro, ora nos vários níveis de significação que poderiam emergir nas imagens. Há uma maior preocupação em criar imagens hieráticas, simbólicas e pontuais de cada passo da narrativa do que lhes insuflar uma dinâmica própria que as tornasse um elemento suficientemente autónomo e paralelo a essa mesma narrativa. Possivelmente a razão disso é estar tudo subsumido ao jogo principal, da inversão quase simétrica das duas histórias especulares, em que cada imagem se vê reflectida na sua correspondente do “outro lado”, algumas com grandes proximidades, outras com maior subtileza, mas sem que as diferenças ou correspondências façam acrescer uma leitura inesperada.
Um aspecto autoral muito equilibrado é o facto de, havendo duas “versões”, duas capas, qe se permite que os nomes dos autores possam surgir alternados, com a primazia dada a cada um deles nas partes em que são assumidos papéis (semi-ficcionais) no interior do livro como os pais das crianças. O próprio código cromático (azul e vermelho), o tipo de letras utilizado no(s) título(s) e desde logo a estratégia do que é apresentado na(s) ilustração(ões), desde os objectos – iPad versus jornal de papel, consola versus ábaco, e a própria representação física das personagens antropomorfizadas, a diferença do humor do urso nas guardas do livro... - sublinham a diferença interna das perspectivas, se bem que mais uma vez através das tais dicotomias absolutas.
Um pequeno fait-divers é a justiça de ter sido o actual ministro das Finanças, Vitor Gaspar, a fazer a apresentação deste livro, levando a trocadilhos também eles justos, pela sua especialidade em “contos da carochinha”…
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
2 comentários:
Thanks for this informative post , keep Sharing like this !
Gostei muito. Excelente na escrita, quer na forma quer no conteúdo. Gostaria de saber como subscrever este blog para voltar cá mais vezes...
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