Temos a ideia de que a banda desenhada, no seu lento mas inexorável crescimento social, quer dizer, tanto na sua exposição a um público cada vez mais alargado e diferenciado como na sua possibilidade de se tornar um meio de expressão também empregue por vontades diferentes, encontra algumas das suas peças decisivas não tanto nas “obras-primas incontestáveis” – imprescindíveis nas suas conquistas internas, no desenvolvimento intrínseco da arte e na conquista integral de um número de novos leitores (como sucedeu com Maus, Persépolis e Fun Home) - como nos pequenos gestos, nas pequenos conquistas, nos pequenos contributos para novas, ainda que circunscritas, atenções. Por outras palavras, em vez de esperarmos que haja disposições absolutas dos autores, das obras, dos públicos, dos agentes envolvidos, acreditamos antes numa atomização das responsabilidades, numa conquista sem centros.
En silence é um livro simples, mas é nessa sua simplicidade que pode ser arvorado como uma conquista.
Por algum grau de coincidência – mas sem dúvida que por afinidades e foco de atenção – falámos nos últimos tempos de autobiografias (Marjane Satrapi, Marco Mendes, Caeto e Topedro). Sensibilizados, como uma emulsão, e por pequenos factores extratextuais, não é irrelevante que nos pareçam surgir elementos que nos fariam imaginar tratar-se este livro de uma recordação de uma experiência vivida. Todavia, não existindo elementos suficientemente fortes, deveremos evitar fazer essa leitura, para mais por não se tornar reveladora das linhas de força do próprio livro.
Um jovem casal de namorados junta-se a uma família para, num recanto paradisíaco do interior francês, se dedicarem ao desporto radical do canyoning, descendo toda a extensão de um rio e o seu ambiente circundante, ora mergulhando nas suas águas, saltando as suas cascatas e desníveis, aproveitando os seus rápidos, ora embrenhando-se na vegetação luxuriosa em seu torno. Mas esse passeio, desenrolado numa só tarde, servirá para Juliette, a rapariga do casal, se indagar a si mesma, no seu íntimo, tentando perceber que frissons ainda sente ao ver Luis, o namorado, ou que anseios sente pela sua ausência, assim como para revisitar, nessa mesma ponderação, as suas memórias partilhadas nessa relação, e então decidir-se o que deve ser preservado ou abandonado dessa relação. O livro opta por uma estratégia, a nível da composição e da verbosidade (repare-se no título), muito suave, cândido, e sem quaisquer histrionismos.
Mas a “conquista” de En silence, a sua linha de força, é feita noutra camada. Para a ela chegarmos, há um outro aspecto que se nos surge pertinente graças a informações extratextuais: é o facto da autora ter trabalhado na indústria da animação. Essa área criativa não deixa de estar aparentada com a da banda desenhada, não tanto por razões temáticas, figurativas e estéticas (isto é, pelo seu desenvolvimento histórico e social, até como tecnologia, se o podemos dizer dessa maneira), mas por uma certa ontologia do desenho, da sua plasticidade transfigurada pela narração (nos casos em que isso ocorre, que é a maioria, mas não legisla em absoluto nem uma nem outra arte). Essa pequena informação ilumina de uma maneira capital as imagens criadas por Spiry neste livro.
Há aqui alguma da sumptuosidade visual – figurativa e cromática – de Brecht Evens, mas onde esse autor parece querer criar uma profunda reflexão sobre as relações mas sai-se limitado pelo seu efeito, Spiry parece mais comedida, mais simples nos propósitos narrativos, mas por isso mesmo consegue fazer libertar das suas pranchas um ar poético, sempre simples, e não desprovido de algumas qualidades. Sobretudo pela exuberância visual, explosiva, animada, metamorfoseante. Há duas tensões no cinema de animação, ou até em todo o cinema, se o quisermos, identificadas e discutidas por Deleuze sob a forma dos seus conceitos da imagem-movimento e imagem-tempo. A complexidade e qualificações desses conceitos impedem-nos que sejam transformados em meras sebentas aplicáveis, mas baste-nos por agora utilizá-los como identificando o primeiro como as instâncias em que a imagem parece sempre servir um propósito narrativo, causal, representativo, completo, claro, e o segundo como aquelas em que a tónica recai sobre a própria duração, a incompleta metamorfose e abertura contínuas das formas, reflexo mais de um devir do que um tornar-se.
Não deixa de ser uma violência fazer a destrinça entre os elementos que devem compor o todo de uma banda desenhada numa só mole expressiva, mas como dissemos, nem sempre podemos estar à espera que tudo “cante em uníssono”, e podemos ver fulgurâncias maiores num ou noutro aspecto. No caso do presente livro, encontramo-las nessa qualidade plástica das figuras.
O corpo da protagonista, e de outras personagens, por vezes, parece seguir uma plasticidade fluida, que mima a da água em que mergulha, pela qual é transportada, empurrada, amassada. Se existem efeitos que sabemos corresponder aos fenómenos físicos, apenas capturados por instrumentos ópticos que vêem além do olho humano (e bastaria falar da fotografia), como a bolha que o corpo arrasta em seu torno, mesmo quando emerge, a autora parece estar mais interessada porém na fluidez do traço, do pincel, das tintas e da cores, e instilar em algumas cenas essa qualidade líquida, plasmática, animada, sobre os corpos humanos. Há cenas em que o corpo se estica, se deforma, ou até estilhaça, revelando uma plasticidade que tanto deve à água como à plasticidade ou morfologia elástica “clássica” (mas não obrigatória) dos desenhos animados. Mais do que um retrato da realidade ou dos seus efeitos – e isso é procurado ainda assim, como nos momentos em que o excesso da luz solar e das cores digladiando-se entre si estilhaçam os rostos em fragmentos de cor plana -, a autora cria uma liberdade que se dá na superfície do papel e das tintas misturadas. Se uma leitura molecular, analítica, revela “coisas impossíveis”, na sua apreensão global, coordenada, orgânica, é justíssimo e preciso. De resto, no percurso lento da arte, Spiry utiliza instrumentos que foram fundados na pintura por Cézanne, e que encontrará nos Expressionistas alemães (os grupos Der Blaue Reiter e Die Brücke) as suas maiores afinidades, senão influências directas. Mas também poderíamos seguir as pisadas da história da animação, agregando os nomes de Oskar Fischinger ou Georges Schwizgebel, ambos realizadores de alguns dos mais influentes filmes de animação alguma vez feitos, e ambos propensos à sinestésica dança que as cores e a música em conjunção podem proporcionar.
Não estamos a falar, portanto, somente da técnica do squash and stretch, apesar de tudo subsumida à ontologia narrativa, representacional e até humorística de toda uma série de personagens animadas, e que influenciariam igualmente artistas de banda desenhada como Jack Cole ou Kyle Baker, ou artistas de animação que também fizeram banda desenhada empregando técnicas similares, como John Kricfalusi (em vez das simples “versões” de personagens da animação em banda desenhada - vejam-se os livros da Hanna Barbera - que perdiam toda a sua dinâmica especifica nem procuravam uma alternativa). Falamos de um prazer pela exploração própria de uma fragmentação, plasticidade e metamorfose dos corpos quase independente da narrativa. É claro que ainda se poderiam procurar raízes disto em alguns exemplos da banda desenhada do século XIX em que os corpos ainda não se decidiram a seguir regras humanas: vejam-se os corpos de Wilhelm Busch, alguns de Doré, de Grandville. Mas no caso presente temos de tomar em consideração o momento histórico em que o trabalho de Spiry se inscreve, ou seja, enquanto gesto de “resposta” e “distanciação”.
O comportamento das figuras de Spiry com a água do rio, por um lado, lembra a lição de Bruce Lee, “torna-te água”, por outro, o poema de Goethe sobre as nuvens, “sobe, adensa, esgarça, desce”. Não são as fragmentações existenciais de Buzelli, David B., ou outros. E são essas transfigurações momentâneas que fazem imaginar as impressões próprias destas personagens em relação ao ambiente mas também com o estado de espírito delas mesmas, que se abre assim a uma plasticidade emocional que se revela de várias maneiras.
Transfigurações que também constituem as pequenas mas seguras transformações que operam no livro, e que, na sua descida fluida, o fazem conquistar os tais pequenos passos avante.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
19 de junho de 2012
En silence. Audrey Spiry (edição do autor)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:49 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica
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