Provavelmente será o proverbial “fugir com o rabo à seringa”, mas uma vez que havia discutido este título anteriormente, sob forma de série, sinto-me perfeitamente no direito de me abster de considerações mais alargadas sobre o “conteúdo” deste volume. Falámos de Madoka Machina mal foi lançada no final de 2015, alertando sobretudo para os modos formais e heteróclitos com que se propunha contar a história, e depois no seutérmino, em 2018, já nos abalizando das formas como aborda assuntos das relações entre labor e capitalismo, a (falsa) desmaterialização dos meios digitais e a sacralização/tribalização da sociedade pelas suas inscrições sociais. Este volume, intitulado The End of Madoka Machina, colige todos os seis números originais dos comics, então publicados pela Polvo, com algumas alterações cosméticas, textuais e de menor monta sobre o material édito, e agrega-lhe a curta que havia saído na colectiva All Watched Over By Machines of Loving Grace, sobre a qual conduzimos uma entrevista com os editores, e ainda mais umas 30 e tal páginas inéditas, intercaladas ao longo da narrativa. E ainda contém um largo posfácio do autor, que se reveste de uma importância crítica substancial, já que tem laivos de ensaio e reflexão sobre a própria matéria abordada no livro. Nesse texto, explicam-se raízes, influências, contextos, escolhas, progressos e retrocessos.
Paradoxal, então, que compreendamos este livro como um texto diferente do da série Madoka Machina. Não estamos somente perante uma “expansão”, e muito menos na categoria do “repackaging”, mas no de uma possível reescrita, mesmo que fosse necessária uma análise mais fina para distinguir práticas no campo da banda desenhada destas reformulações. Apesar de existirem mais peças (e ninguém garante que não possam surgir mais no futuro) com estas personagens ou nas vizinhaças deste universo diegético, The End of Madoka Machina é uma unidade com um claro fechamento (limite físico do que entra gravitacionalmente na sua atenção) e finitude (em termos de satisfação emocional do leitor e resolução da intriga).André Pereira, e um blurb da Bedeteca Anónima, sublinham aquela noção geral de que a ficção científica é menos um modo de imaginar o futuro, com intuitos de vaticinadora, do que de atenta observadora da contemporaneidade que, utilizando instrumentos de fantasia e foco tecnológico, auscultam aspectos particulares das maleitas sociais, políticas e económicas que não apenas se adivinham, como têm lugar. O texto de Pereira no fim do volume alerta mesmo para a “ingenuidade” ou visão “grosseira” do autor, em relação ao que se verifica na realidade diária das nossas sociedades. Ainda que se possa ler The End of Madoka Machina como um romance, uma biografia quase comum, um triângulo entre amigos (sub)urbanos, as suas roupagens de ficção laboral, com mais ou menos elementos mágicos, associa o projecto a questões mais alargadas. Uma comparação interessante seria entre aquela constelação de trabalhos que considerámos em Visualising Small Traumas, de autores de uma geração anterior respondendo à crise de 2008 e anos seguintes (quando André Pereira ainda estaria em idade escolar), e a de autores que atingiram a primeira maioridade na década de 2010, e que respondem aos mesmos assuntos e preocupações com uma ironia mais jovial e abordagens estilísticas mais celebratórias, mas nunca menos contudentes. Pensamos em autores como Rodolfo Mariano, Hetamoé, Afonso Ferreira, Rudolfo, Mosi, Rita Alfaiate, que de maneiras bem distintas e em graus de intensidade diversos, abraçam géneros e estilos de “fácil identificação” para os subverter ou instrumentalizar na condução de tensões e traumas. Alguns de forma bem mais radical (Hetamoé), outros de formas bem mais oblíquas (Mariano).
Sendo um texto passível de ser lido em muitas dimensões, e associando-o a muitas problemáticas dos nossos dias, diríamos talvez que The End é sobretudo uma rábula sobre a fragilidade do contrato social que nos espera, à medida que a compreensão do “labor” deixa de ser uma troca de contribuições reprodutivas: quanto mais “desmaterializado” (apenas para funções burguesas) for o trabalho, quanto mais “nómada”, “móvel”, “flexível” a força laboral (“colaboradores” da máquina, e não “assalariados”, “empregados”, “subalternos”, como se aquela palavra disfarçasse e elevasse a posição hierárquica), quanto mais atomizado e frenético for o consumo cultural desagregado de tradições ou elos localizados, quanto mais a identidade for utilizada como arma de arremesso contra a solidariedade social, mais diluída será a capacidade de uma resposta colectiva ao esboroamento anunciado.
Ao evitar uma inscrição demasiado circunscrita – há uma clara ausência de balizas temporais e de local precisas – mas deixando pistas para uma possibilidade de re-inscrição da realidade portuguesa (através das tabernas frequentadas, um certo substrato religioso, um componente de resistência ou resquícios rurais no meio urbano, certas práticas do dia a dia, seja de consumo ou de lazer, a própria linguagem das personagens, etc., o autor permite que haja uma emergência de um fundo elementar preenchível pelo leitor, que tanto puxará para a “nossa” realidade (Portugal a entrar no segundo quartel do século XXI) como para outras passíveis de comparação (qualquer sociedade ocidentalizada, pós-industrial e da indústria 4.0, que se estende de Casablanca a Shinjuku, de Seoul a Addis Ababa). Essa natureza mais imprecisa, todavia, torna o texto mais apto a tematizar os assuntos políticos e sociais que coloca em primeiro plano. Mais, essa potencialidade de discussão é assegurada pela maneira como a intriga não é, digamos assim, resolvida, mas antes relançada numa nova crise, ou melhor ainda, que nos prende a um emolduramento da escrita de um CV impessoal e aplicável a qualquer circunstância.
Um dos modos de construção dessa politização é o emprego, clássico, da dialéctica, expressa pela junção de aspectos contraditórios ou opostos, que instigam a uma síntese feita pelo leitor. Não nos é dada qualquer resposta cabal, mas apenas os elementos que nos permitem pensarmos por nós mesmos. Essas contradições passam pela organização temporal da intriga, por exemplo, sistematicamente jogando memórias de um passado com a experiência do presente, os temores do futuro imediato e ainda aquelas faixas “fora do tempo” (ainda que toda a narrativa possa ser vista como “fora do nosso tempo”). Também a nível de figuração existem estratégias mais subtis, já que as páginas inéditas intercaladas seguem uma linha mais minimal e simplificada, que o autor tem explorado sobretudo na sua série de Instagram, “O Sufoco” (salvo excepções, insiste-se na ausência de cenários, grandes planos dos rostos das personagens, maior simplificação de composição de página, opções de chibi/cute, etc.). E já havíamos falado da variedade das estratégias em compor páginas, de capítulo a capítulo, muitas vezes querendo sublinhar modos de organizar os eventos pela verticalidade aqui, pela ortogonia normativa ali, por fragmentações recessivas noutros momentos...
De resto, como vimos, existem outras colagens de opostos, como se nota sobretudo no tratamento dos cenários, onde convive a natureza rasa e a mais streamlined das tecnologias, a ocupação do território por sem-abrigo em tendas e os auto-suficientes High-Rises (de Ballard?), a mais crua materialidade dos corpos humanos e seus prazeres (pêlos, suor, cerveja, fumos, a gravidez de Teresa, o sangue de Leonor) e a desmaterialização mágica no éter...
Até certo ponto, aquela fragmentação e atomização dos próprios textos constitutivos ganha agora um só corpo, unificado e mais facilmente commoditized. Agora temos uma “novela gráfica”, pronta a preencher uma categoria mais domesticada. Queiram as leituras atentas compreender a face selvagem que se esconde atrás do seu sorriso.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro. Os originais do livro, e além dele, com estudos, cadernos, etc., estão expostos na livraria-galeria Tinta nos Nervos, na exposição “Sísifo naPlanície”, até 4 de Março.
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