28 de julho de 2023

Sonhonauta. Shun Izumi (Conrad)

Este é um projecto narrativa, temática e simbolicamente ambicioso. Com mais de 300 páginas, com uma trama densa, Sonhonauta recupera um tema antigo da literatura ocidental (e outras), com novas roupagens gráficas, para nos ofertar uma obra que revela mais do seu autor do que de uma centralidade da própria história. Originalment
e publicada online, cuja estrutura episódica se mantém visível em mais que um nível, a sua publicação em papel vem confirmar uma ideia constante – a de que muitos ditos “webcomics” necessitam ainda da cultura do impresso para uma mais longa e substanciada sobrevivência –, além de que uma leitura completa pode insuflar uma dinâmica distinta daquela que os leitores de então experimentaram. 

A história é, até certo ponto, simples. Um homem, jovem, Mendel, com aparentes problemas de memória, com uma vida instável a nível finaceiro, refugia-se no mundo (na verdade, mundos) que lhe é proporcionado pelos sonhos, no qual descobre uma mulher lindíssima – desenhada de uma forma muito clássica que a torna uma espécie de “ídolo de papel” - conhecida por Naíssa. De uma maneira ou outra, ele tem de “atravessar as portas do Sonho” para conseguir alcançar essa “mulher-Quimera”. Estas últimas expressões entre aspas deverão fazer recordar leitores de uma geração mais velha, claro, da série Axle Munshine, o Vagabundo dos Limbos, cuja premissa era precisamente a mesma: um aventureiro espacial em busca da mulher dos seus sonhos, literalmente. Sonhonauta não se inscreve de um modo totalmente encaixado na ficção científica, mas não abdica de todos esses elementos, relançando a dinâmica Orfeu-Eurídice com novas roupagens.

Apesar de começar ancorado, e estar sempre adjacente a uma ficção contemporânea, urbana, brasileira, e até de uma certa cultura slacker, a travessia dos mundos vai permitir à narrativa explorar tropos dos mais diversos géneros clássicos de aventuras, e tem uma faceta de ficção científica. Dessa forma, a intertextualidade é imensa, voluntária ou não, desde Little Nemo, claro, e The Sandman, mas também Until the End of the World, de Wim Wenders. E se, já falando do desenho, a capa fará lembrar Mignola, um episódio homenageia directamente Indiana Jones e Moebius, outro explora alguma arte japonesa ukiyo-e, e até o Disney mais antigo está presente como uma das facetas do “mistério” da infância, que se mistura. Todavia, a trama terá um “nó” mais policial, em torno de um crime, de um mistério, de um segredo, que o lança igualmente a outros territórios, e aí tanto se poderia falar de Total Recall como de The Matrix ou Congresso Futurológico.


Apesar desta descrição, e existirem com efeito episódios de alta octanagem, em termos de acção e aventura – lutas contra monstros, travessias por paisagens incríveis, perseguições e tiroteios, confrontos com personagens misteriosas, que tanto podem ser inimigas, aliadas ou algo mesclado – Sonhonauta pauta-se sobretudo por uma contínua e aturada capacidade de auto-reflexão, quer do protagonista quer da parte do próprio livro, como veremos.

Aquilo que move o protagonista, os seus pensamentos e reflexões, não deixam de ser algo tardo-adolescentes. Há muitos momentos em que parece estarmos a ler os milhentos apontamentos em diários e confessionários de milhentos adolescentes e jovens adultos que ainda não encontraram uma maior solidez na sua integração social, familiar ou outra. Enfim, solitários e desolados contra o mundo inteiro, eis que se abandonam a uma poesia frenética mas estereotipada, e cujo corolário maior é, claro está, a própria relação para com a “musa impossível”. Este “amor” não nasce de uma intimidade verdadeira, de um encontro entre duas personalidades, mas pela mera força das circunstâncias, atracção física e sexual do momento e uma zona de invisibilidade dessa construção que se disfarça no tal mistério: quem é Naíssa? Onde se encontra? Como recuperá-la? E depois de descobrir os primeiros sinais de verdade empírica dela no mundo real: o que aconteceu mesmo? Que tentam esconder sobre o seu destino, etc.? E, diga-se de passagem, a resposta imediata a esse enigma é algo previsível desde a primeira cena, cuja transparência actancial na organização da narrativa é por demais telegrafada, ao ponto de lhe retirar qualquer impacto emocional verdadeiro quando finalmente revelada.

A questão da auto-reflexão prender-se-á com a sua própria produção, materialidade e imagética. O livro demorou mais de 10 anos a ser desenhado. Em si mesma, essa informação não pode incutir nenhum tipo de juízo de valor sobre o mesmo, já que não podemos medir aos palmos, ou aos tempos, a qualidade de uma narrativa, de um projecto artístico. Mas ajuda-nos a compreender uma das razões pela qual o autor escolheu, propositadamente, empregar de forma sistemática e contínua vários registos de imagem e desenho. O autor realiza isso quer mudando de instrumentos riscadores como de técnicas de desenho, como nos informa no próprio livro e noutros locais. Nesse sentido, há aqui claramente uma demonstração de virtuosismo da linha: há pranchas de um rigor extremo de tramas, texturas e densidades, e outros em que há quase um minimalismo de expressividade; se aqui a personagem é “de borracha”, ali ganha uma qualidade hierática; se num momento é noir, noutro é “HQ independente de SP”...

Enfim, aquilo que usualmente chamamos de “estilo” está constantemente a alterar-se. Se num momento inicial, isso é cumprido de “parte” em “parte”, quase mimando uma travessia dos mundos (por hipótese, marcando a diferença entre o “mundo da vigília” e o “do sonho”), depois poderá mudar de vinheta em vinheta (como numa prancha incrível, reproduzida aqui ao lado, com uma construção que impede a sua leitura linear comum, em que Mendel aguarda num café, com cada vinheta debuxada de modo distinto). Portanto, não há apenas uma preocupação em “traduzir” os mundos ou humores diferentes de cada sonho singular (que sempre são narrativas contidas e potencialmente separadas, ainda que neste livro se explorem os seus pontos de continuidade entre si e contaminação com o mundo da vigília), mas também outro tipo de sensações do protagonista, urgência da acção, relacionamentos diferentes com o ambiente, etc. E, também, quase de certeza, com as decisões circunstanciais do próprio autor: uma cena do protagonista a beber café na cozinha, cujo desenho se repetirá no dossier de extras no final do volume, parece-se por demais com um desenho rápido feito à vista, que encontra um lugar de honra a apropriado na narrativa em curso, mas mantendo a sua qualidade extra-textual.

O livro acaba por se tornar, então, uma espécie de longo exercício através da ficção para explorar o que podem significar os nossos sonhos não apenas como mecanismo de limpeza e defesa psicológica, mas refúgio emocional, fonte de experiência empírica, e até acesso a planos simbólicos, se se acreditarem nesses caminhos. Atenção, estamos longe do tipo de trabalho de um Zograf ou até mesmo de um Roger Omar, como debatemos há uns anos. Estamos no campo da narrativa ficcional, do “plot-oriented”. Shun Izumi criou um livro muito pessoal, idiossincrático, de algum fôlego, mas que no cômputo final tem uma certa leveza. Há espaço aqui para a mais fina ciência em torno das oscilações neuronais como para os arcanos do Tarot, programas de psicoterapia e modos profundos de englobar um cosplay total nas mais díspares fantasias. Mas isto não torna Sonhonauta num compêndio sólido em algumas dessas áreas (não é Promethea), já que passa quase tudo isso pela rama ou apenas na medida em que é útil para o avanço linear da narrativa; sim, pois apesar de tudo, haverá uma subsunção de toda a sua matéria a uma linearidade, causalidade e finalidade naturalizada. Torna-o acima de tudo a “aventura” muito dinâmica, leve e empolgante.

Um site especialmente dedicado foi criado pelo autor, aqui.

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