Graças às redes sociais, portfólios online, e aos novos modos de muitos autores criarem expectativas, posts, teasers, trailers, w.i.p.s, etc., Neon tornou-se um daqueles objectos que se ia consolidando como algo merecedor desde logo de uma atenção redobrada. Pessoalmente, graças à oportunidade que tive em manipular arte original de Alfaiate (na Flexágono de 2022), inclusive algumas aguarelas magníficas, associadas à versão final de Tangerina, e o acompanhamento da peça curta que a artista co-criou com André Oliveira para o último número da Umbra, pude testemunhar alguns dos processos de trabalho que revelam um domínio exímio da dimensão artesanal do fabrico de imagens, em termos de composição, enquadramento, diversidade de estratégias visuais, flutuação de registos visuais, que aqui ganham um nível mais vincado ainda.
Apesar do número de páginas, Neon estará mais próximo da categoria do conto, pela concentração dos eventos, das cenas, mas por outro lado procura apresentar de forma crescente, paulatina e certeira, as intensas emoções que atravessam a protagonista sem nome. É, com efeito, um escavar de emoções que arrola toda uma série de relações da protagonista com outras personagens, não necessariamente humanas, e que atravessa categorias de tempo não-lineares. Se a um determinado momento nos parece estarmos a seguir uma clássica estruturação, a outro passo torna-se evidente que é apenas uma armadilha que nos apanha e surpreende.
Curiosamente, para algo de tão concentrado em termos de “número de eventos”, ou “episódios”, um aspecto excelente é a clareza com que os movimentos e transições de vinhetas são feitos, permitindo dessa forma a compreender as acções e a lógica em questão. Precisamente para dar um maior impacto nas emoções sentidas – isolamento, melancolia, medo, tristeza. O facto de estarmos num universo aparentemente “scifi” pouco importa. Afinal, por mais fantástica que as tecnologias sejam neste universo narrativo, há um “peso” na forma como são empregues que as tornam perfeitamente verosímeis, senão mesmo “banais” na enconomia da narrativa.
Como a própria autora confessa, através das notas paratextuais do livro, as primeiras imagens, ou primeiras expressões visuais das ideias que se iam formando em si, tinham apenas o intuito de serem como que uma espécie de “ilustração solta”, tocando muito dos temas desse género literário, protagonizados por uma mesma personagem, num worlbuilding ambivalente, estimulante, mas que não se desejava subsumido necessariamente a uma narrativa linear ou fechada. Um pouco como um Jakub Rozalski ou Simon Stalenhag ou dezenas de outros artistas, cujas imagens parecem prometer uma narrativa, mas não são agenciadas como tal. No caso de Rita Alfaiate, essa transformação verificou-se. Mas ainda como esses outros autores, a narrativa não se tece pelas esferas mais altas de sagas épicas de “high concepts”, mas pelo quotidiano mais banal e humano, nos quais a tecnologia existe, mas quase como um ruído de fundo que apenas existe. Não se trata de utopia nem de distopia tecnológica, é apenas mais uma peça. E o vinco de fantasia não se constrói sobre a tecnologia, mas na memória.
O facto da personagem se encontrar isolada nestas paragens urbanas, levando-a mesmo a ora encernar-se a si mesma como interlocutora das suas próprias acções, ora a ver-se forçada a cumprir certas regras societais – sempre permitidas por um domínio maquínico –, apenas sublinham o substrato pouco significativo da tecnologia. O que importa sublinhar é a perda, a melancolia, a tristeza e aquela constante necessidade de consolo humano. Apesar de Neon, o cão, estar activo, o facto de não ser “de carne” não permite à protagonista a satisfação relacional que parece perseguir constantemente. E isso lança-a na busca que se revelará transformativa.
Também a escolha da letra, particularmente maquínica, poderá ser vista como uma pista de interpretação da “ordem dos eventos”. Afinal de contas? Quem cria quem? Em que nível estamos? Que circularidade de criação está aqui implicada? Neon não é apenas “sobre um cão”, mas antes sobre a própria identidade.
Tal como na saga de Tangerina, Rita Alfaiate parece lançar-se a projectos onde se sentem laivos de auto-ficção, mas cuja interpretação nessa senda levaria a abusos de interpretação e até de confiança. Porém, não pode haver dúvidas de que o livro tematiza e torna visíveis toda uma série de objectos afectivos da autor, de preferências e experiências de vida, talvez. Mas, lá está, temos de nos ater à obra em si. Mas aí também surgem outros pontos em comum, até em termos visuais, pelo “interlúdio negro” deste livro, que se abre à exploração de experiências traumáticas, que jamais serão verbalizadas, explicadas, reveladas como tal, mas informam a narrativa, as atitudes da protagonista e o preço emocional dos próprios leitores. Por outras palavras, é um livro cuja completação estará mais a cargo do trabalho da entrega do leitor, do que da mera leitura.
Uma pequena secção de “extras” permite ver as imagens usadas de partida para todo o projecto, e ainda bem que surgem, pois permitem ver toda a beleza de algumas composições cuja edição enquanto spreads acabam por limitar, na fluidez da narrativa.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo acesso facilitado ao livro.
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